O Chile em seu labirinto
- Opinión
Para grande parte da imprensa brasileira, os resultados das eleições chilenas de 19 de novembro último foram surpreendentes. Pode ser, mas somente para os que apostaram na vitória do ex-presidente Sebastián Piñera (2010-2014) no primeiro turno – o que ficou longe de acontecer. Teria sido mais apropriado (e honesto) reconhecer que os resultados preliminares foram frustrantes para eles, e não surpreendentes, como foi informado.
Desde o fim da ditadura, em 1990, o eixo de centro-esquerda que sustentou o peculiar progressismo chileno se baseou na aliança entre a Democracia Cristã (DC), o Partido Socialista (PS) e o Partido pela Democracia (PPD). As eleições desse ano representaram uma profunda inflexão desse esquema, que por vinte anos governou o país. Pela primeira vez desde a redemocratização, a DC lançou candidato próprio, desvinculado de coligações. Sua candidata, a senadora Carolina Goic, obteve apenas 5,8% dos votos. Para um partido histórico, que governou o Chile antes e depois da ditadura, trata-se de um resultado sofrível, revelador da crise de representação dos partidos tradicionais naquele país.
Quanto ao PS, sequer se pode dizer que tenha apresentado candidatura própria ou genuína. Seu candidato natural para o pleito de 2017 era o ex-presidente Ricardo Lagos, que governou o país entre 2002 e 2006. Diante da meteórica ascensão do jornalista e sociólogo Alejandro Guillier, eleito em 2013 senador independente pela região de Antofagasta, a convenção do PS renegou o seu líder histórico e abriu mão de uma candidatura própria. Lançado pelo Partido Radical, Guillier tornou-se o candidato do oficialismo, com o apoio do PS e demais partidos que compõem a frente de centro-esquerda que governa o Chile.
Encerrada a apuração, o ex-presidente Sebastián Piñera obteve 36,6% dos votos, seguido de Alejandro Guillier, com 22,7%. Por pouco a candidata da Frente Ampla, Beatriz Sánchez, não foi para o segundo turno. Ela conquistou 20,2% dos votos. Os pequenos grupos que compõem a Frente Ampla (FA) surgiram dos movimentos sociais, sobretudo da luta dos estudantes em favor do ensino público. Todos eles têm em comum uma profunda aversão aos partidos tradicionais. Antes das eleições, a FA contava com apenas dois representantes no Parlamento, além de governar a cidade de Valparaíso, sede do Congresso Nacional. A previsão é que a FA eleja entre quinze e vinte deputados e um senador nessas eleições. Esse sim é um resultado surpreendente, que poderá precipitar uma mudança na configuração do poder.
Como o voto no Chile passou a ser facultativo, as pesquisas não dão conta de estabelecer com precisão o número efetivo de votantes, dificultando as previsões dos principais institutos. Sabia-se que o comparecimento seria pequeno, a exemplo do que aconteceu na primeira eleição sob o novo regime, quando menos da metade dos eleitores compareceu às urnas. Apenas 44% dos chilenos escolheram um dos oito candidatos que se apresentaram para disputar a presidência nessas eleições. Obviamente, isso não justifica o falso favoritismo atribuído pelas sondagens eleitorais a Piñera nem a baixa votação prevista para Beatriz Sánchez. Enquanto os institutos lhe davam de 8% a 10% das intenções de voto, a candidata da FA obteve 20% dos votos no cômputo geral, constituindo-se como a terceira força política.
Com o resultado de 19 de novembro, o desfecho das eleições deste ano se tornou imprevisível. Não há mais favoritos. Ou melhor: o suposto favoritismo de Piñera se desvaneceu. Somados, os partidos de centro-esquerda obtiveram no primeiro turno um percentual de votos superior aos partidos de centro-direita. São maiores as suas chances de vitória no segundo turno.
As alianças serão determinantes para definir quem será o futuro governante do país. Ao contrário de todas as previsões, a Frente Ampla passou a ter um papel fundamental no tabuleiro político-eleitoral. Como não existe transferência automática de votos, tudo vai depender da capacidade de negociação entre os partidos progressistas. Não será tarefa simples. De um lado, não podemos esquecer que Alejandro Guillier é um outsider, que recém ingressou na política, sem traquejo ou cultura de negociação. De outro, os eleitores da Frente Ampla têm profunda aversão à política tradicional praticada no país nos últimos 25 anos. Beatriz Sánchez sabe perfeitamente que seria suicídio trair os seus apoiadores. Porém, seu cacife de 1,3 milhão de votos não é desprezível. Ela está em condições de impor exigências programáticas defendidas por sua base social. Bia, como é carinhosamente chamada, já se declarou disposta a negociar.
É importante lembrar que essas foram as primeiras eleições gerais a se realizar no Chile após a reforma eleitoral. A principal mudança introduzida pela Lei nº 20.840, de 2015, foi a substituição do sistema binominal, herdado da ditadura, pelo atual sistema proporcional, de listas abertas de partidos ou coligações. A reforma diminuiu o número de domicílios eleitorais, de dezenove para quinze; aumentou o número de senadores, de 38 para cinquenta; e de deputados, de 120 para 155. Pela primeira vez foi garantido o voto no exterior. Nessas eleições, 612 chilenos e chilenas residentes no Brasil votaram em um dos oito candidatos à Presidência.
O antigo sistema binominal favorecia a representação parlamentar da segunda maioria, invariavelmente constituída pelos partidos que apoiaram a ditadura (1973-1989). Ao longo dos quatro governos da Concertación (1990-2010), esse modelo impediu a formação de uma maioria no Congresso Nacional capaz de alterar a Constituição de 1980, ditada por Pinochet em uma das fases mais repressivas do regime. Finalmente substituído em 2015, o sistema binominal foi um dos mais clássicos “enclaves autoritários” existentes no país. Sua eliminação corresponde a uma antiga reivindicação dos setores democráticos.
Bachelet se elegeu em março de 2014 com a promessa de entregar uma nova Constituição aos chilenos e varrer de uma vez por todas os “enclaves autoritários” remanescentes no país. Encontrou imensa resistência às suas reformas, não só dos adversários como também dos aliados. Ela termina o mandato sem haver cumprido plenamente sua promessa. A reforma tributária e a reforma educacional, destinadas a mitigar as iniquidades do modelo econômico, também ficaram pelo caminho. A reforma do Código Laboral, por sua vez, não agradou os sindicalistas, cujas organizações permanecem fragmentadas e sem poder de negociação coletiva.
Num ambiente muito mais complexo, caberá ao futuro presidente encarar tais desafios. Para sair do seu labirinto, o Chile precisa acertar contas com o passado. As chances de vitória do progressismo no segundo turno são reais, mas vão depender da capacidade de união (e renovação) das esquerdas. Como mencionado, não é uma tarefa simples. A FA terá que vencer resistências internas para negociar politicamente. Do lado do oficialismo, Guillier terá que aceitar uma inflexão à esquerda para ter o apoio da FA. Em breve saberemos se o progressismo chileno está com os dias contados ou se será capaz de se renovar e apresentar uma nova perspectiva de esquerda para o país.
- Renato Martins é professor adjunto de Ciência Política e Sociologia na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e presidente do Fórum Universitário Mercosul (FoMerco)
Edição 166, 29 novembro 2017
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