Reforma da Previdência: novos discursos, velhas fórmulas
- Opinión
A chamada reforma da Previdência tem se constituído em um poderoso quadro de fundo para o atual governo e seus aliados no Congresso Nacional aprovarem praticamente tudo o que se propuseram ao conseguir o apoio do establishment para implementar o impeachment. Seu maior fracasso até agora foi não terem logrado êxito em aprovar qualquer coisa, a esse título, que servisse como prestação de contas do que lhes foi encomendado.
À medida que o alcance da proposta vai se desidratando, é preciso “salvar os anéis”, escolhendo um bode expiatório que esteja permanentemente sob a mira fácil do maior número de pessoas, inclusive daqueles que receberam a indulgência de se verem excluídos das mudanças na proposta. Nesse caso, nada melhor que eleger os privilegiados, os marajás, em outras palavras, aqueles em relação aos quais o ataque frontal, direto, é o disfarce ideal para alcançar o objetivo final, mas subliminar do avanço liberal: o próprio Estado.
Nesse caso, os servidores públicos civis foram escolhidos como a cereja do bolo, principalmente depois que os militares deixaram de ser considerados como servidores. Ainda que estes representem cerca de um quarto do total – entre ativos e inativos –, as pensões militares respondem por cerca de 45% do total; ou, ainda, que as reformas militares correspondam a mais de 25% do total das aposentadorias.
Tampouco parece causar sensibilização o fato de as despesas com cargos em comissão – segundo o próprio relatório resumido da execução orçamentária, da Secretaria do Tesouro Nacional – atingirem o inacreditável percentual de 50% das remunerações fixas do pessoal ativo (mesmo que grande parte desses cargos seja ocupada por pessoal do quadro permanente). O que é espantoso nessa estatística é a percepção da quantidade de gente que responde aos desígnios dos governantes de plantão, e o quanto custa garantir a adesão da burocracia estatal às políticas oficiais.
Evidentemente, todos esses fatos permanecem encobertos, dada a maciça campanha publicitária promovida com recursos do orçamento público e inflada pela mídia a serviço dos interesses privados (in)confessáveis. Infelizmente, quando a Justiça de 1ª instância suspendeu a propaganda oficial enganosa sobre a Previdência, apareceu – como sempre, em socorro do governo atual – a caneta salvadora (expressão utilizada por Bernardo Mello Franco, na Folha de S. Paulo) do desembargador Hilton Queiroz, presidente do TRF da 1ª Região, derrubando a liminar. A folha de serviços desse magistrado é bem conhecida e por demais extensa em decisões de 2ª instância favoráveis aos interesses do grupo instalado no poder, reforçando a parcialidade com que amplos setores do Judiciário e do Ministério Público têm atuado de forma articulada a favor do interesse dos mais poderosos.
Mas convém refletir sobre todas essas marchas e contramarchas em relação à tramitação da assim chamada reforma. É sugestivo notar, por exemplo, que algumas consequências são inevitáveis pelo simples anúncio da pretensão de alterar as regras da Previdência, como já aconteceu seguidamente em experiências anteriores. Num primeiro momento, há uma verdadeira corrida às aposentadorias por parte das pessoas que já preencheram as condições para pleiteá-las, e estavam dispostas a continuar em atividade, mas temem perder o que já alcançaram, num país em que o próprio não saudoso Malan teria dito que o passado traz mais incerteza que o futuro. (Basta mencionar a esdrúxula situação em que as pessoas que já estão em regime de transição entram em um novo regime de transição, isto é, a transição da transição.)
O resultado é paradoxal: em vez de retardar, antecipam-se as aposentadorias, e o previsível é um agravamento da situação a curto prazo: mais gente se aposentando (que continuaria trabalhando com um simples abono-permanência), menos gente na ativa, o que significa dizer que se teria que repor o quadro de pessoal, realizando novos concursos, ou, simplesmente, comprometer ainda mais a qualidade dos serviços, por falta de reposição de pessoal.
A outra consequência é precisamente – mesmo sem a aprovação da reforma – alcançar os objetivos das instituições financeiras e seguradoras, fazendo com que caiam nos seus braços os servidores que não querem ter uma queda futura de suas remunerações ou, então, trabalhar mais tempo do que haviam planejado para suas vidas.
Esse último aspecto é tão contundente, que, segundo os dados da Federação Nacional de Previdência Privada e Vida (Fenaprevi), divulgados pela Agência Estado, o setor de previdência complementar registrou aumento de 28,9% nas suas contribuições aos planos em setembro deste ano na comparação com igual mês do ano anterior. O volume de aportes no mês beirou os R$ 10 bilhões. Os percentuais de expansão são crescentes: foram de 7,9% na comparação entre os nove primeiros meses de 2016 e 2017, e de 14,19% entre os respectivos terceiros trimestres (mesmo com a crise do emprego e da renda).
O setor fechou setembro com R$ 743,30 bilhões em ativos administrados, aumento de 19,29% em relação ao ano anterior. No mesmo período, o aumento do número de pessoas com planos de previdência privada contratados no Brasil aumentou 8,15% (enquanto nos planos de saúde caía), com 13,7 milhões de pessoas. Dos novos aportes, 88,61% referem-se a planos individuais, o que demonstra o desespero das pessoas atormentadas com o terrorismo manifestado em todos os discursos oficiais e nas entrevistas dos especialistas, que anunciam a inviabilidade de pagamento das futuras aposentadorias.
É despiciendo dizer que esse quantitativo de beneficiários é constituído por reduzida parcela remanescente de privilegiados, que ainda consegue pagar planos privados de previdência, planos de saúde, escolas particulares e outros tantos serviços que o Estado brasileiro se omitiu de prestar, transferindo-os para o mercado, e que não são minimamente acessíveis por uma massa crescente de desprovidos da sorte.
É nessa direção que se promove talvez a mais explícita e desavergonhada negociação entre poderes da República, na tentativa de aprovar qualquer pseudorreforma. Agora, mais do que cargos e liberação de emendas, institucionalizaram-se as remissões, anistias, parcelamentos a perder de vista, recorrentemente; são renúncias fiscais de toda ordem em benefício dos que não pagam os seus tributos e, em alguns casos, são os beneficiários diretos da reforma.
O preço varia segundo o tamanho da bancada que vocaliza os respectivos interesses e o impacto esperado com cada medida proposta. Não é preciso grande esforço para entender que essas renúncias transferem para o conjunto da sociedade o sacrifício que é a contrapartida do benefício de cada grupo específico de favorecidos.
A esse propósito, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco) vem alertando para o desestímulo que essa prática reiterada representa para quem cumpre suas obrigações tributárias. É também uma verdadeira forma de minar a concorrência. Na esmagadora maioria dos casos, evidencia-se não haver qualquer compromisso firme por parte dos beneficiários; o Poder Público não acompanha ou fiscaliza o cumprimento dos presumíveis objetivos de natureza econômica ou social que deveriam nortear a concessão/renovação dos incentivos.
O professor Evilásio Salvador, em alentado estudo para a Revista do Serviço Social, de São Paulo, levantou, para o período de 2008 a 2016,com base em dados oficiais da Secretaria do Tesouro Nacional e da Receita Federal do Brasil, o total das renúncias tributárias, chegando ao astronômico montante de R$ 1,086 trilhão, a valores deflacionados pelo IGP-DI, a preços médios de 2016. Só que esses cálculos têm que ser atualizados a cada mês e, às vezes, a cada semana.
São situações como essas que dão conta do descaso, da irresponsabilidade com a manipulação dos números, reforçando a mistificação do terrorismo disseminado junto à sociedade com as projeções oficiais, altamente questionadas pela CPI da Previdência, no Senado Federal, solenemente ignorada pela mídia e pelos tais especialistas, porta-vozes do sistema.
A confusão deliberadamente provocada nos conceitos que envolvem Previdência e Seguridade Social, sobre o que deveria ser computado entre os seus recursos e o que poderia ser contabilizado na conta de seus dispêndios, gera enorme desconfiança e ceticismo sobre as bases em que as discussões têm sido conduzidas, e estas são um sinal de alerta na sua retomada. Enquanto o processo estiver sob a égide do atual governo, não haverá a menor credibilidade para efetuar uma análise transparente e objetiva.
A questão, nos termos em que tem sido colocada, é tão surrealista que inspirou uma das melhores charges do ano, que mostra uma pessoa dirigindo duas perguntas a uma outra: o que vai acontecer se a reforma da Previdência não for aprovada e o que vai acontecer se a reforma da Previdência for aprovada. A resposta foi a mesma: você não vai poder se aposentar!
Concluo com a frase com que iniciei artigo recentemente escrito para o Correio Braziliense. "Vivemos em tempos de pós-verdade; como no clássico 1984, as palavras ganham o significado que se lhes quer atribuir, para cada circunstância.
- Roberto Bocaccio Piscitelli é professor na Universidade de Brasília
Edição 167, 13 dezembro 2017