O day after do Brasil: a esperança assume o comando
- Opinión
Não é fácil voltar a sonhar depois de submergir na escuridão de um pesadelo sem fim.
Na história dos golpes de Estado, a insônia política revira as vísceras da perplexidade e da decepção.
A prostração física e existencial se realimenta das adversidades materiais magnificadas pela ofensiva do algoz.
Frustrações ferem a autoestima coletiva o que não raro esgarça elos pessoais, até os mais estreitos.
Não atinge apenas ‘a companheirada’ --como o acicate conservador rotula a consciência de classe que tanto sabota porque teme.
A virulenta inoculação de carências, insegurança e autodepreciação desossa a fibra e a energia individual e coletiva.
Sobra descrença. A impotência e o medo do futuro estendem a mão imobilizadora sobre o presente opaco.
A derrota da maioria borbulha no brinde vitorioso das elites em direção aos índices dos mercados, enquanto a destruição física e moral das lideranças e organizações populares ecoa autocongratulações nos editoriais cínicos.
A confraternização do dinheiro com a truculência pode inaugurar um longo ciclo de desmanche capaz de rebaixar o caráter de um povo e o destino de uma nação.
Essa dobra da história está em disputa no Brasil.
Há anos.
Mas apertou o passo quando o delfim mais palatável da direita derreteu ao vivo e a cores na reeleição vitoriosa da Presidenta Dilma Rousseff, em 2014.
O repto veio na forma de uma blitzkrieg fulminante daqueles cujo projeto foi desautorizado pelos eleitores em quatro escrutínios presidenciais sucessivos desde 2002.
A tomada daquilo que o voto negou de forma tão enfática acendeu o incinerador neoliberal a plena carga.
Há pressa e sofreguidão na cena do crime.
Mãos nervosas derretem vidas, renda, empregos, direitos, o patrimônio público, enfim, o pacto da sociedade sem consulta-la
Pontes, nervos e a musculatura que estruturavam a delicada convivência de interesses contrapostos numa das nações mais desiguais da face da terra se desintegram na combustão apressada.
Emerge daí um Brasil em estado bruto.
Desprovido dos contrapesos públicos e sociais arduamente sedimentados, avulta a nostalgia senhorial.
Uma elite que jamais atravessou a soleira da casa-grande para se reconhecer parte de um povo retoma sua obsessão: interromper a construção do Brasil, a eterna construção interrompida denunciada pelo atilado sertanejo Celso Furtado.
O que soa exagerado deixa de sê-lo ao se constatar que seis bilionários brasileiros concentram atualmente riqueza igual a de 100 milhões de pessoas, metade do país.
Não há espetáculo similar no mundo.
Nenhum bunker do 1% mais rico no planeta encerra uma usina de desequilíbrio tão violenta, capaz de tornar risíveis as orações dos muezins do equilíbrio fiscal.
A assunção escancarada do judiciário como partido desse dinheiro e dessa ideologia resume o chão mole de um Brasil fraturado, que se arrasta assim em direção às urnas de outubro de 2018.
Ninguém sabe se chegará lá.
Ou se este ‘1964’ de terno e toga providenciará as fardas de um novo dezembro de 1968, a exemplo do que fez a ditadura civil-militar no AI-5, quando assumiu de vez o papel de braço armado do terror e da tortura a serviço da faxina antissocial e antinacional das elites.
Se o desfecho permanece incerto, até por isso o day after especulado é menos imprevisível do que sugere.
Qualquer que seja o resultado do julgamento de Lula, o passo seguinte da história brasileira está contratado.
Inaugura-se um ciclo de luta social aberta e renhida, escandida pelo monólogo doentio da ganância plutocrática.
Com um notável contraponto de ineditismo porém, que a aliança da mídia com a escória e o dinheiro subestima.
A alternativa à dissolução neoliberal do país requer definitivamente um protagonista social que a conduza.
Significa dizer que a esperança que antes delegava, agora será o comando.
Com ou sem Lula candidato em 2018. Com ou sem Lula no Planalto em 2019.
Ou não haverá mais esperança no Brasil.
O jogo do ‘ganha-ganha’, como ficou conhecida a mediação política delegada nos últimos 17 anos, exercida com reconhecida habilidade pelo ex-presidente para superpor avanços sociais inegáveis aos lucros nunca cessantes, colapsou nos seus próprios termos.
Ao perder o amortecedor do crescimento acomodatício --azeitado pelo boom das commodities, o pêndulo consensual perdeu sua inércia.
O golpe antecipou-se ao esgotamento desse impulso substituindo-o pela lei da selva na qual ‘o vitorioso leva tudo’.
Um saque ostensivo da elite contra o próprio povo se processa aos olhos do mundo.
Explica-se a reticência dos chefes de Estado.
Até Trump hesitou em posar ao lado disso, Temer.
A opinião pública mundial enxerga o que a mídia esconde com unhas e dentes.
O Brasil está sendo varrido por arrastão argentário.
‘Sem um único tiro’, observaria Lula, num espanto cujo esclarecimento convoca a autocrítica da grande lacuna do ciclo abortado.
Ou seja, a ausência da organização popular na construção de uma democracia social que sempre foi delegada.
Não haverá mais indulgência para continuar a fazê-lo.
Esse é o aviso expresso do golpe.
Se a ruptura envia um alarme histórico ao projeto de um Brasil progressista, ironicamente coloca os sentenciadores de Lula também no vórtice de um paradoxo.
Ao condena-lo, reforçam a hora da rua.
Se o pouparem, reforçam a hora da rua.
Se procrastinarem, reforçam a hora da rua.
Em resumo: a página da história está virando diante de nós.
É preciso ler o que diz a seguinte.
Diz que se o povo brasileiro quiser recivilizar uma nação na qual a luta pela democracia social será cada vez mais afrontada pelos limites da costura estrutural que a contradiz, terá que deixar o papel coadjuvante para encarnar o protagonismo de seus próprios anseios.
Sem um salto de organização permanente, será impossível reaver o que já foi subtraído.
Mais que isso: avançar em direção a conquistas novas só críveis no bojo de um ciclo estável de investimentos e ganhos de produtividade.
Esse é o nó górdio.
A luta contra o golpe e a governabilidade pós-vitória são água da mesma fonte.
Não se separam.
A organização política do povo brasileiro hoje é a única variável capaz de injetar coerência macroeconômica à matriz do desenvolvimento amanhã.
O resto é arrocho. Com sua escalada inescapável de repressão.
A farsa liberal consiste justamente em cevar o Estado autoritário ao ter como meta o desmanche de sua principal barragem institucional: a Carta de 1988, sob a curetagem grosseira dos cirurgiões des-emancipação social impiedosa e insustentável.
O jornalismo embarcado lambuza o fel com um glacê rudimentar de Adam Smith.
Ataca-se o ‘populismo estatizante’ –‘a escravidão do Bolsa Família’, como sugere o ‘presidenciável da Febraban, Rodrigo Maia, em nome de um auto-interesse virtuoso.
Daí se extrapola a prescrição da engenharia social em que o ‘cada um por si’ leva ao fastígio coletivo.
Adam Smith era menos tosco que os neoliberais dos trópicos.
Genuinamente religioso, ele condicionava a centralidade do interesse próprio à irrepreensível obediência a referências morais e éticas que ajustariam o individualismo em um trilho de irrepreensível civilidade.
Os impulsos individuais assim disciplinados convergiriam para um cimento de valores impecavelmente compartilhados.
Nesse ambiente sacro o papel profano do Estado seria mínimo.
Não é difícil –aliás é muito fácil— deduzir o resultado da supremacia do interesse egoísta em sociedades complexas, nas quais, ao lado da luta desesperada de milhões de desvalidos, avultam interesses corporativos de dimensões globais, sobretudo aqueles cujo produto é o dinheiro, sua reprodução e as consequências da sua desregulação.
Lula é o símbolo contraposto ao que se quer desmontar na medida em que foi sob o guarda-chuva de sua liderança que o pacto social inscrito na Carta Cidadã de 1988 ganhou, finalmente, a estatura de política de Estado.
De certa forma, é como se o verdadeiro liberalismo, o de Ulysses Guimarães, que presidiu e proclamou a Carta de 88 ‘como a lamparina dos desgraçados’, fosse sacrificado junto com Lula no banco dos réus do tribunal de Porto Alegre.
Neles o conservadorismo condensa o entulho a ser removida no caminho dos livres mercados.
Não é pouco.
Mais de 60 milhões de novos consumidores ingressados na economia a cobrar cidadania plena desde 2004.
Cerca de 22 milhões de novos empregos formais que recrudesceriam a pertinência da CLT e do pleno emprego.
Um salário mínimo 70% maior em poder de compra a dificultar a compressão geral dos assalariados
Um sistema de habitação popular subsidiado.
Bancos públicos a se impor à banca privada.
A Petrobras e o BNDES fechando as lacunas da ausência de instrumentos estatais na coordenação do desenvolvimento.
Políticas de conteúdo nacional a devolver um impulso industrializante ao país.
Desdobramento de um acróstico –os BRICS– em instrumentos de contrapeso à hegemonia dos mercados financeiros globais…
Etc.
A faxina é tão virulenta que requisitou da coalizão golpista um árduo trabalho de escovão e detergente ideológico para dissolver a resistência alojada em estruturas de consumo, serviços e participação instituídas para atender a apenas 1/3 da sociedade.
Não basta, portanto, tirar Dilma
É preciso executar, picar, salgar e pendurar Lula aos pedaços em praças e avenidas do país.
Matar a audácia pela raiz.
Somente assim a virulência nua e crua do neoliberalismo poderá ser exercida em sua plenitude: em uma sociedade desprovida da gordura do Estado de Bem Estar Social faz-se mister cortar no osso.
Imagina-se que a cabeça de Lula é o pedaço mais duro desse percurso.
Pode ser um engano.
Esse é o cerne da dificuldade conservadora para definir uma candidatura e impedir de fato a força de Lula no palanque: a elite senhoril não tem projeto de país no qual caiba o povo brasileiro.
O jornalismo embarcado sonega esse traço central da encruzilhada brasileira.
A ofensiva golpista não é uma consequência da crise econômica.
A crise é a própria elite.
Portanto, não existe uma ‘macroeconomia responsável’ (a do arrocho) que vai tirar o Brasil da espiral descendente.
O que existe é um acirramento da luta de classes, a exigir uma repactuação política do desenvolvimento brasileiro.
E nisso Lula mostrou-se imbatível.
E continuará a sê-lo.
Porém, não mais como delegado da esperança.
E, sim, como voz da esperança mobilizada.
Não episodicamente.
Organicamente nucleada na base.
Verdadeiramente dotada do discernimento político propiciado pela informação plural.
Apta, assim, a exercer sua consciência esclarecida em referendos e plebiscitos sobre as escolhas do desenvolvimento brasileiro.
A saber: reforma política, para capacitar a democracia a se impor ao mercado; a reforma tributária, para buscar a fatia da riqueza sonegada à expansão da infraestrutura e dos serviços; a reforma do sistema de comunicação, para permitir o debate plural dos desafios brasileiros –que são poucos, nem se resolvem sem ampla renegociação do desenvolvimento.
Quem rumina desalento diante do gigantismo da tarefa menospreza o salto histórico percorrido pela consciência democrática e progressista nos últimos três anos.
Ao desalento aspergido pelo golpe contrapõem-se agora a liberdade de se dar as coisas o seu nome.
Quem duvida deve recorrer de novo a Lula.
Basta conferir a sua verbalização dos requisitos incontornáveis à retomada da democracia e do desenvolvimento brasileiro.
Exatamente por isso, a engrenagem capitalista puro-sangue escoiceia indicadores inquietos no chão do estábulo.
Aguarda que as togas lhe tragam a liberdade para matar de vez a nação e redimir o engenho, que eles chamam de ‘eficiência de mercado’.
Como se houvesse aí o apanágio de competência, em contraposição ao ônus do ‘lulopopulismo’
Às réguas, pois.
Tome-se o ritmo de implantação do metrô em São Paulo, em duas décadas e pico de poder tucano.
Compare-se a extensão duas vezes maior da rede mexicana.
Ou a dianteira expressiva da rede argentina e da chilena.
O padrão não muda com outras fitas métricas.
Lula criou 18 universidades em oito anos.
A elite levou 420 anos para erguer a primeira.
Fernando Henrique Cardoso não fez nenhuma.
Há lógica na loucura neoliberal.
Para que serve uma universidade se não faz sentido ter projeto de nação?
Uma elite para a qual a soberania é um atentado ao mercado não reserva qualquer espaço à principal tarefa do desenvolvimento, que é civilizar o mercado para emancipar a sociedade e universalizar direitos.
O que a elite preconiza aqui é de uma violência inexcedível em regime democrático e muito provavelmente incompatível com ele.
As togas da exceção que o digam. E elas estão dizendo.
Vergonhosamente, perante a comunidade jurídica mundial e a História.
Executar Lula é a contribuição histórica das togas ao projeto conservador para o Brasil do século XXI.
Não há erro no alvo.
Mas no prognóstico talvez.
Paradoxalmente, a condenação liberta o símbolo dos seus limites.
Faz mais que isso.
Convoca os simbolizados a se imantarem a ele como a única força coletiva capaz de libertar o passo seguinte da história brasileira da opressão e da iniquidade.
Um ciclo se fecha, mas o que engatinha deixará saudade no conservadorismo.
Será tarde demais quando perceberem.
21/01/2018
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