Debate FSM2018:

A ofensiva conservadora contra o direito à comunicação na América Latina

Foram abordados os retrocessos em matéria de legislação e políticas públicas para a democratização da comunicação e o impacto da concentração monopólica no setor de Internet.

24/03/2018
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Foto: ALAI
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A atual ofensiva conservadora na América Latina, assim como as resistências a ela, foi um dos temas destacados em diversos espaços no Fórum Social Mundial 2018, realizado em Salvador, na Bahia. O tema ganhou dimensão ainda maior após o assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL, no Rio de Janeiro.

 

O impacto desta ofensiva conservadora nos direitos à comunicação foi a pauta colocada em cena pela iniciativa do Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América (FCINA), ao lado do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), do Brasil. Neste marco, foram abordados os retrocessos em matéria de legislação e políticas públicas para a democratização da comunicação, o impacto da concentração monopólica no setor de Internet e a experiência da Mídia Ninja e do Facción como alternativas de comunicação no Brasil e América Latina.

 

Bia Barbosa, do Intervozes e do FNDC, fez uma breve retrospectiva sobre a concentração dos meios de comunicação no Brasil e o papel preponderante deles na história dos nossos países, que atualmente sofrem fortes ataques à democracia, o que reflete no direito à comunicação.

 

Assim, nos mesmos país onde, durante um curto período, deram-se passos concretos para democratizar a comunicação, permitindo ao menos ampliar um pouco a diversidade e pluralidade dos meios a fim de garantir mais liberdade de expressão, agora estão ocorrendo graves retrocessos. Na Argentina, por exemplo, uma das primeiras medidas tomadas por Mauricio Macri foi eliminar a autoridade fiscalizadora criada pela lei de meios audiovisuais, além de reduzir os limites estabelecidos para a concentração da propriedade de veículos, atendendo explicitamente aos interesses do grupo Clarín.

 

Ao referir-se ao caso brasileiro, Barbosa recorda que “o pouco que conquistamos, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC, empresa de caráter público), foi um dos primeiros alvos a ser atacado pelo governo de Michel Temer, através de uma lei que dissolveu sua autonomia e seu caráter público, convertendo a EBC em uma empresa de propaganda governamental”. Ela enfatiza, ainda, que sem levar a cabo mudanças profundas para democratizar o setor, a democracia estará sempre ameaçada. Neste sentido, Barbosa recordou que não basta ganhar as eleições: no Brasil, que tem pleito previsto para outubro próximo, pode-se até ganhar o governo, mas se não mexe no sistema de comunicação, tudo pode voltar a se repetir

 

Há Estados que entendem as comunicações como um serviço privado que deve ser prestado apenas por meios privados. O dever do Estado se limitaria a distribuir as frequências, sem considerar que se trata de um bem público, exigindo a garantia de que o direito seja exercido por diversos setores da população. Isto tem a ver “com a visão mais ampla do papel do Estado na América Latina, com a visão neoliberal em matéria de economia e com a visão conservadora em matéria de costumes, entendendo a comunicação como uma parte legitimadora desta visão de mundo”, o que afeta o direito à comunicação.

 

 

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Foto: ALAI
 

Internet monopolizada

 

Por sua vez, Sally Burch, da Agência Latino-Americana de Informação (ALAI), abordou a temática desde a perspectiva das tecnologias digitais. Iniciou sua participação com uma resenha do contexto global onde há, cada vez mais, uma concentração monopólio nas grandes plataformas da Internet. Mais que isso, está em vigência uma geopolítica mundial, principalmente entre Estados Unidos e China (e suas respectivas empresas transnacionais) em torno de quem dominará o mundo digital e o âmbito da inteligência artificial.

 

Dado que a base desta economia digital são os dados (nova fonte de valor), as empresas transnacionais e seus respectivos Estados impulsionam acordos “comerciais” (em tratados como o TPP - Parceria Transpacífico - ou na Organização Mundial do Comércio, etc), cujo propósito real não é estimular o comércio, senão impedir que se regule os livres fluxos de dados (por exemplo, para proteger a privacidade dos dados pessoais). Ou seja, manter destravado o fluxo e armazenamento para que estejam sob o controle destas grandes empresas.

 

Os países da região que assinaram o TPP, ou que apoiam a proposta de negociar o comércio eletrônico na OMC, estão, na prática, renunciando a qualquer soberania tecnológica e à possibilidade não apenas de proteger os dados de seus cidadãos, mas também de adotar medidas para que os dados beneficiem, em primeiro lugar, aos interesses da própria comunidade. O que se poderia realizar, como bloco, neste sentido, por exemplo na Unasul, agora repousa praticamente descartado pelo boicote que enfrenta esta entidade por parte dos governos conservadores.

 

Entre as implicações desta situação para os direitos e para a democracia na região, está a redução do espaço dos meios alternativos na Internet, quando empresas como Google e Facebook manipulam seus algoritmos de busca, ou bloqueiam conteúdos, com o pretexto de serem supostas “fake news”, que na realidade podem apenas ser conteúdos críticos ao sistema.

 

E tem mais: o uso que está se fazendo dos dados pessoais por parte da direita, em eleições de diversos países como os Estados Unidos e, aparentemente, o México, inclui a manipulação da votação por parte de empresas que compram bancos de dados para processá-los e interpretá-los, com o objetivo de dirigir mensagens personalizadas à população suscetível a mudar sua decisão de voto.

 

Oliver Kornblihtt, das redes de comunicação populares Mídia Ninja e Facción, questionou, ante este contexto, qual o papel dos meios alternativos e do midiativismo nesta disputa que se vive na região. “Qual é nosso lugar de luta, de onde falamos, de onde construímos, quando nos enfrentamos a um Estado no qual, como no México, matam a jornalistas? Um Estado que nos persegue e não nos protege? Como no Brasil, onde a polícia, que deveria cuidar-nos, é militarizada e assassina gente como a Marielle e a outras pessoas nas favelas diariamente?”. Para ele, há que seguir construindo redes, construindo outra comunicação, a nível nacional e regional, pois “a comunicação é uma frente de batalha fundamental neste momento”.

 

No caso da Mídia Ninja, prossegue, a iniciativa se considera “um movimento social dentro da comunicação, posicionado ao lado de outros movimentos sociais e culturais”. É uma rede de comunicadores e comunicadoras que vem da cultura e do Brasil profundo. “A partir das redes sociais, do trabalho em tempo real, da disputa estética e narrativa, vem se criando uma máquina de comunicação grande e forte, com capacidade para disputar o espaço dos grandes meios concentrados. Estamos todos os dias nas ruas e nas redes. Não temos medo de tomar posição política: defendemos Lula”.

 

O que se enfrenta diariamente é uma guerra, por parte do Estado e dos grandes meios, a fim de nos deslegitimar, negando que fazemos jornalismo e desqualificando o ativismo como “fake news”. Agora, o ataque também vem de grandes corporações como o Facebook, que na última semana alterou seus algoritmos de maneira que a conta da Mídia Ninja, dona de uma base permanente mínima de dois mil seguidos, chegando a mais de dois milhÕes deles, agora aparecem apenas 150, em momentos que se transmite um debate de grande interesse nacional. Kornblihtt considera que esta manobra de deslegitimação busca justificar novos ataques.

 

A construção de redes, no Brasil e na América Latina, afirma o comunicador, é fundamental porque permite a troca de experiências, tecnologias e a geração de novas ferramentas. “Quando ocorreu o golpe parlamentar contra Fernando Lugo, no Paraguai, armou-se uma antessala para outros golpes, mas talvez não demos tanta importância porque era um país pequeno”, mas vimos no que deu. “Então o que podemos aprender hoje, do México, que caminha para eleições?”, pergunta.

 

Ações e campanhas comuns

 

Para concluir o debate, Renata Mielli, coordenadora do FNDC, sintetizou as ideias-chave do seminário, com ênfase na urgência de uma maior articulação regional para definir pontos comuns da luta pela democratização da comunicação frente aos velhos monopólios midiáticos comerciais, mas também aos novos monopólios como Facebook, Google e Amazon - plataformas gigantes que tentam “aprisionar nossas comunicações”. Em tal sentido, o FCINA tem dado um exemplo para a região ao replicar conteúdos entre os meios e organizações participantes e impulsionar um debate sobre a democratização da comunicação e das tecnologias.

 

Mielli ressaltou também a necessidade de ações e campanhas comuns em defesa, por exemplo, da neutralidade da rede, uma problemática regional e mundial, além de fortalecer mutuamente os coletivos que fazem comunicação contra-hegemônica no continente. Neste marco, é preciso refletir conjuntamente sobre um enfoque político para a comunicação e a luta por sua democratização.

 

Foi enfatizada a importância de contribuir e ajudar a fortalecer, desde a região, a construção do Fórum Social da Internet, como um espaço mundial para aprofundar o debate e a busca de alternativas, desde diversos enfoques e setores, visando o resgate de uma Internet cidadã em detrimento ao poder crescente dos monopólios.

 

As organizações que participaram da mesa são membros ou aliados do FCINA, assim como a Associação Latino-Americana de Educação Radiofônica (ALER), que ficou responsável pela moderação.

 

Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América (FCINA)

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/191819
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