Fim do futebol-nacional
- Opinión
O futebol-nacional é o zumbi de um esporte sem alma. Navega à deriva; o dinheiro comanda sua viagem sem sentido. O capitalismo transformou o futebol numa fonte de acumulação; nesse esporte, a corrupção dissolveu o que era sólido e profanou o que era sagrado. O Padrão-FIFA de corrupção amputou o espírito do futebol para esse “fazer dinheiro” e não a alegria do povo. Como arte, o futebol-nacional não resistiu; morreu o futebol-do-povo. O jogo bonito do futebol-de-equipe de seleções nacionais é um fogo fátuo que se esvai na imaginação de gerações do século XX; gerações sub-20 só conhecem o futebol-arte através do YouTube. Em 2010, a Copa parecia uma “Eurocopa ampliada” onde, para fins comerciais, a estética melódica das vozes humanas das torcidas nacionais foi substituída pelo uníssono som metálico das irritantes Vuvuzelas.
Não se joga futebol como antes. Só importa o resultado e não a forma de alcançá-lo. O drible já não é o protagonista do jogo; o número de faltas já supera o número de jogadas bonitas. A habilidade já não é o único critério para contratar jogadores, que são mais altos e mais fortes no futebol-força, um esporte-de-contato que exige a intervenção de um Árbitro de Vídeo. Sem espetáculo, a violência aumenta entre torcidas insatisfeitas dentro e fora dos estádios. No campo não vemos brilhar o nosso time; estrelas solitárias brilham como ouro-de-tolo e queimam-se na fogueira das vaidades. Autênticos jogadores-artistas —Pelé, Maradona— ganharam sua aura no futebol-nacional e nunca perderão seu carisma. Jogavam para a alegria do povo, como Garrincha. Hoje, estrelas cadentes de brilho efêmero perdem sua aura em plena carreira. Sob a pressão de um salário milionário, jogadores-infiéis de brilho fugaz jogam mal para seu povo e só têm bom desempenho em seus clubes-corporações. Em suas seleções, jogadores-apátridas jogam para os dirigentes de seus clubes e não para suas torcidas nacionais. O exemplo extremo é Messi, que parece ter nascido na Argentina por acidente geográfico; nunca jogou um campeonato nacional no futebol-arte argentino. Na Copa de 2010, ex-melhores jogadores do mundo voltaram sem fazer um único gol por seus países: Cristiano Ronaldo, Kaká, Rooney, Cannavaro, Ribery, inclusive Messi, o melhor daquele ano. Iludindo as sociedades de origem desses jogadores, locutores da Eurocopa fazem um esforço patético e contraditório para fingir que eles ainda são “nacionais”. Quando Neymar joga pelo Barcelona, esses locutores gritam “Goool do brasileiro Neymar”, mas quando ele joga pelo Brasil eles gritam “Goool de Neymar do Barcelona”.
O jogador-commodity viabiliza o futebol-comercial. Ele é premiado pelo individualismo e não por seu jogo-em-equipe. Frente a adversários, ele prefere perder a bola tentando um gol impossível do que passá-la para colegas melhor posicionados. Obcecado com seu desempenho individual, ele privilegia a falta para buscar o resultado para seu clube e não para sua equipe. Se ele avança com a bola e lhe falta habilidade para driblar o adversário, o derruba; se um adversário avança com a bola e lhe falta habilidade para roubá-la, o derruba. Na perturbadora ausência de jogadas bonitas, a televisão mostra a falta como protagonista abusando da câmara lenta para “naturalizar” a supremacia da força sobre a habilidade. Países que transnacionalizaram seus jogadores formam sua seleção com jogadores-infiéis e novatos que anseiam ser jogadores-apátridas. Não são solidários; competem entre si. Seu país já não lhes emociona; é o contrato no exterior a fonte de pesadelos dos antigos que competem para não perdê-lo, e de sonhos dos novatos que competem para consegui-lo. Em 2010, brasileiros naturalizados noutros países jogaram contra o Brasil, enquanto brasileiros tinham como adversários colegas do mesmo clube-apátrida que conhecem o seu modus operandi. Seleções ex-campeãs mundiais dificilmente voltarão a sê-lo, como a Argentina em 2010, mesmo tendo Maradona como Técnico, e o Brasil em 2014, mesmo sendo anfitrião da Copa. Quem foi o campeão de 2018? Não foi a França, mas a África onde têm origem 14 jogadores (Kimpembe, Umtiti, Pogba, Mbappé, Dembelé, Tolisso, Kanté, Matuidi, Nzonzi, Mandanda, Fekir, Sidibe, Mendy e Rami) entre os convocados para a seleção francesa. Floresce o futebol-transnacional. Antes da prevalência do Padrão-FIFA, o apogeu do futebol-arte incluiu seleções nacionais alcançando resultados com graça: dribles individuais e lindas jogadas coletivas próprias do futebol-de-equipe. Às vezes, um resultado 0x0 deixava torcidas nacionais satisfeitas com o espetáculo apresentado. Em 2010, jogadas feias emulavam lutas do MMA; na partida final brilharam doze cartões amarelos e um vermelho e a jogada que ficou na memória não inclui a bola, foi o chute de Kickboxing do holandês De Jong no peito do espanhol Xabi Alonso, emulando o patético gesto do francês Zindane em 2006, que surpreendeu o mundo ao despedir-se de seu futebol-arte com uma violenta cabeçada no peito do italiano Materazzi.
O capital transnacional penetrou o futebol-nacional. O líder do processo foi o brasileiro João Avelange, Presidente da FIFA por 24 anos, com apoio de cúmplices nacionais, como seu genro Ricardo Teixeira, Presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) por mais de 20 anos. Eles inviabilizaram no Congresso brasileiro um projeto de Pelé para moralizar nosso futebol, levando-o a renunciar ao cargo de Ministro do Esporte pela impotência para evitar o fim do nosso futebol-nacional. A corrupção foi usada para matar o futebol-nacional e construir a indústria do futebol-global. O futebol-arte foi inescrupulosamente minado e o futebol-comercial foi institucionalmente fabricado. Já não existe motivação intrínseca entre jovens futebolistas. Sua motivação não é a sua sociedade, como no Brasil aonde o sonho último de jovens talentos já não é chegar à seleção canarinha, mas um contrato no exterior. O futebol foi transnacionalizado sob a lógica da mercadoria. Uns transnacionalizaram seus jogadores, como Brasil e Argentina, vendendo-os como commodities, e outros transnacionalizaram seu futebol, como Espanha e Itália, lucrando com o mercado dessas commodities. Mas, sem emoção não há paixão e sem paixão não há compromisso. Esses países assistem à decadência de sua seleção nacional ainda contando com muitas estrelas individuais, como o Brasil em 2006, mas que não jogam como constelação.
A “maldição das campeãs” não existe, como querem analistas de estatísticas estéreis ao responder: Por que toda seleção campeã numa Copa é eliminada na seguinte? A derrota do Brasil em 2014 não se deveu a um “apagão”, como “opinou” Felipão, nem ao “aleatório” em 2018, como “opinou” Tite, e menos à premissa de que “futebol é assim mesmo”, popular entre comentaristas não treinados na arte da interpretação. É o fim do futebol-nacional praticado por jogadores-transnacionais indiferentes ao fim do jogo bonito que fazia a alegria de seu povo.
O futebol jamais será o mesmo. Mudadas pela FIFA, patrocinadora oficial da corrupção no futebol, as Copas Mundiais do futuro serão entre clubes-corporações e não entre nações, como na Fórmula-1 onde competem as escuderias e não os pilotos, que representam seus proprietários e não seus países. Na colonização, para aumentar sua riqueza material, impérios do Norte colonizaram o Sul para saquear nossos tesouros naturais. Esse Colonialismo continua. Na globalização —recolonização por outros meios— impérios futebolísticos do Norte saqueiam talentos futebolísticos do Sul (Messi, Neymar). Mas, assim como o Ocidente não conquistou o mundo por ser “naturalmente” superior; tampouco é “natural” a superioridade do “futebol europeu”. Na Eurocopa, assiste-se futebol na —e não futebol da— Europa; poucas estrelas são europeias. Refletindo a europeização do futebol-nacional, as primeiras Copas do século XXI antecipam a estética do futebol do futuro. O campo já não é o teatro para espetáculos que nos encantam com a arte do futebol-nacional. O campo já é uma arena comercial disputada por mercadores sem escrúpulos onde gladiadores impiedosos —jogadores sem encanto— denigrem o esporte com faltas sem sentido e resultados alcançados sem a ginga do jogo bonito. Até quando? A que custo?
- José de Souza Silva é pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) onde é especialista em inovação institucional e Investigador das relações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade no processo de inovação. O texto foi escrito no final da Copa de 2010, já antecipando que o Brasil não seria hexacampeão, e atualizado em 16/07/2018.
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