Veto a Autoridade coloca em risco Lei de Proteção de Dados Pessoais
- Opinión
O Brasil finalmente conta com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Ao longo dos últimos anos, escrevemos diversas vezes neste blog sobre a importância do país aprovar uma legislação para regular especificamente este tema e frear de alguma maneira a coleta massiva e o tratamento indiscriminado de nossos dados. Os riscos deste uso abusivo para os cidadãos, como mostramos, são enormes. Agora, um passo fundamental para mudar esta realidade foi dado, com a sanção da lei realizada em cerimônia no Palácio do Planalto na última terça-feira 14 e sua publicação nesta quarta-feia 15 no Diário Oficial da União.
Apesar de só entrar em vigor dentro de 18 meses – este foi o prazo dado pelos legisladores para que empresas e poder público se adaptem às novas regras – a Lei 13.709/2018 traz resultados positivos imediatos ao criar um arcabouço legal que coloca o direito à privacidade, ao lado da segurança jurídica para a inovação tecnológica, no centro das possibilidades de tratamento de dados pessoais. Mais do que isso, o Brasil agora se torna um dos primeiros países a ter uma lei em sintonia com o regulamento geral de proteção de dados pessoais da Europa, que entrou em vigor no final de maio.
Um aspecto, entretanto, preocupa especialistas em direitos digitais, organizações da sociedade civil que defenderam a aprovação da lei – como o Intervozes –, setores acadêmicos e até as empresas: ao sancionar a lei, Michel Temer vetou a criação da Autoridade Nacional de Dados Pessoais, alegando vício de iniciativa.
Segundo o Planalto, o PL que resultou na Lei 13.709/2018, apesar de ter sido escrito pelo Executivo e enviado ao Congresso - na época, pela presidenta Dilma Rousseff - não previa explicitamente a criação da Autoridade. Daí os artigos 55 a 59, que tratam do tema, terem sido excluídos para a sanção. Segundo o governo, um novo PL deve ser encaminhado ao Parlamento nas próximas semanas para resolver a questão.
O vácuo normativo deixou muitos setores alertas. Em nota pública lançada nesta quarta-feira, a Coalizão Direitos na Rede, que reúne mais de 30 organizações da sociedade civil que atuam na defesa de direitos digitais, declarou que espera que o formato de composição da Autoridade, sua autonomia administrativa, suas atribuições e seu modo de funcionamento, assim como a criação, composição e atribuições do Conselho Nacional de Proteção de Dados sejam mantidos no novo PL, da mesma maneira como aprovados originalmente pelos deputados/as e senadores/as.
O Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, também vetado por Temer, seria um órgão multissetorial vinculado a Autoridade, responsável por propor diretrizes estratégicas e fornecer subsídios para a elaboração de uma política nacional para o setor, assim como para a atuação da própria Autoridade de Proteção de Dados.
“Qualquer proposta que vier do governo deve preservar o caráter de independência da Autoridade, que só pode cumprir efetivamente seu papel se, ainda que vinculada ao Ministério da Justiça, não fique sujeita a interferências políticas de governo. Do contrário, a efetividade da Lei estará de fato comprometida”, afirma a nota da Coalizão Direitos na Rede.
“Seguiremos acompanhando de perto a continuidade deste processo, o que envolve a análise dos vetos presidenciais pelo Congresso e a tramitação do novo PL no Legislativo (…) Não descansaremos enquanto o país não contar com uma legislação efetivamente protetiva e com mecanismos para ser plenamente implementada”, declararam as entidades.
Outros artigos vetados
Se considerados todos os pedidos de veto solicitados pelos ministérios à Casa Civil, nada menos do que 86% da lei corriam o risco de ser eliminados pela caneta de Michel Temer. Ou seja, o texto seria totalmente desfigurado e deixaria de existir na prática.
Num trabalho intenso de diálogo e esclarecimento sobre proteção de dados, as organizações que haviam participado ativamente do processo de construção da lei no Congresso conseguiram convencer o Planalto de que sancionar a lei na sua integralidade seria o melhor para o país. E então os vetos se reduziram significativamente, e hoje podemos dizer que a lei “para de pé”.
Além da criação da Autoridade Nacional e do Conselho de Proteção de Dados, o governo vetou artigos relativos às sanções administrativas a quem descumprir as previsões da lei. Um deles excluiu a possibilidade de se punir infrações à lei com a suspensão parcial ou total da atividade de tratamento de dados, assim como do funcionamento do banco de dados vinculado à infração. A medida reduz significativamente o poder sancionatório do órgão responsável por monitorar a implementação da lei e deixa as empresas mais à vontade para praticar abusos.
Outro veto imposto tratava da obrigação do poder público dar publicidade ao uso compartilhado de dados pessoais entre órgãos e entidades de direito público. Para o governo, o artigo poderia inviabilizar "ações de fiscalização, controle e polícia administrativa".
Vale lembrar, entretanto, que o detalhamento previsto para essa publicidade certamente não atrapalharia a investigação de casos pontuais. O artigo em questão tinha o objetivo de dar transparência e conhecimento ao cidadão da enorme e constante troca de seus dados feita dentro do poder público – algo que sequer passa pela cabeça da maioria das pessoas. Mas Michel Temer preferiu manter a prática longe do escrutínio da sociedade.
Por fim, o Planalto também vetou um artigo que garantia a proteção dos dados pessoais dos cidadãos requerentes de acesso à informação, ou seja, que usam a Lei de Acesso à Informação para questionar o poder público. Com o veto, a identificação do requerente deixa de estar protegida e situações de perseguições e retaliações por parte de agentes públicos, como já registradas, podem continuar.
Não são vetos insignificantes, apesar de numericamente menores do que o que chegou a ser colocado sobre a mesa para a análise de Temer. Cabe analisar agora se há espaço para derrubá-los no Congresso Nacional. A maior preocupação segue, porém, com a proposta de criação da Autoridade de Proteção de Dados que será enviada ao Parlamento. Se os rumores, que seguem no Planalto, se confirmarem – como o de criar um conselho sem autonomia administrativa e submetido a um ou outro ministério –, corremos o risco de termos em vigor uma lei robusta e moderna, mas sem garantias de que será implementada na prática. Ou seja, a batalha continua.
- Bia Barbosa é jornalista, mestra em Políticas Públicas, integra a Coordenação do Intervozes e a Coalizão Direitos na Rede.
15/08/2018
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