"Inimigos de Lula não buscam uma sentença justa, mas uma vitória política"
- Opinión
"Na realidade, tenho uma relação especial com Lula, que não nasceu no meu governo, porque ele foi presidente depois de que eu fui presidente da Colômbia, mas que foi quando eu fui secretário-geral da Unasul. Tive a oportunidade de conhecê-lo e compreender a grande pessoa que se escondia detrás dessa importante figura". Com a recordação do primeiro encontro pessoal que teve com Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente colombiano e ex-secretário geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), Ernesto Samper, começou a coletiva de imprensa com meios alternativos e populares, nessa quarta-feira (22), em São Paulo (SP), véspera do dia em que o ex-mandatário da Colômbia visitou Lula em Curitiba (PR), onde ele se encontra preso desde o dia 7 de abril.
O reencontro entre os dois ex-presidentes nesta quinta-feira (23) é mais um gesto de solidariedade internacional junto a Lula, considerado por Samper um preso político com seus direitos violados, como exemplificado pela tentativa de impedi-lo de se candidatar nas eleições presidenciais deste ano. "A cada dia [é] maior a convicção internacional de que Lula é um preso político e que, como tal, deve ser liberado para que possa seguir trabalhando por um Brasil democrático, inclusivo e reconciliado, o que ele segue sonhando desde a prisão", declarou Samper à imprensa após a visita na Superintendência da Polícia Federal na capital paranaense.
A força de Lula é a memória trazida por Samper ao relembrar o primeiro encontro com o brasileiro. "Eu conheci o presidente Lula em um ato realizado em Guaiaquil [Equador], quando eu comecei como secretário da Unasul. Primeiro, falou o presidente uruguaio José Mujica, e as pessoas enlouqueceram, porque ele sabe alcançá-las. E logo depois foi a vez de Lula, que falou em português, e ninguém entendeu nada, mas todos aplaudiram, porque ele transmitia uma energia que, apesar de não sabermos o que ele estava dizendo, atingia a todos, e todos o aplaudiam fortemente. Isso é o Lula: energia".
Se o passado é saudoso, o futuro é incerto. Em um cenário político de muita preocupação para o Brasil e para a América Latina, Ernesto Samper faz a defesa de que não só é um direito garantir que Lula possa disputar as eleições, mas é necessário que ele vença o pleito de outubro. "Minha opinião é que, hoje em dia, os inimigos de Lula não estão buscando uma sentença justa, mas sim uma vitória política. Isto é um tema político, mais que jurídico. Há que se ganhar nas instâncias jurídicas, sim, porque, lamentavelmente, eles estão usando de uma matéria-prima muito importante que é a liberdade. Até onde podem chegar, eu não sei, o que sei é que se não ganha Lula, este país volta 20 anos ou mais."
Ainda sobre o futuro, vindo de um país onde os diálogos de paz entre organizações marxistas guerrilheiras e o governo estão caminhando a passos largos atualmente, o colombiano Samper acredita que o caminho para o Brasil também deve ser de diálogo, e não de revanches.
"Eu vejo o ambiente do Lula muito diferente fora do Brasil do que eu vi há um ano. Muita gente já afirma que, sim, Lula é um preso político. Todos os meios de comunicação condenaram Lula antes que o julgassem, como acontece em todos os casos que lhes interessam. Mas o ambiente internacional me parece que mudou substancialmente. Mudou tanto que creio que o dilema do PT é ver como dão uma saída decente aos inimigos de Lula. Ou seja, se isto se apresenta em termos de revanche, de vingança. Pois não é que eles causaram danos ao PT, causaram danos ao Brasil."
Confira os principais momentos da entrevista com Ernesto Samper.
Imagem de Lula no exterior
"Na medida das minhas possibilidades, eu ajudava [Lula] a manejar um pouco no cenário internacional, o que resultou em algo muito positivo e favorável ao presidente Lula, por razões de forma e de conteúdo. As razões de conteúdo é que, sem dúvida, a imagem que Lula tem no exterior é a de uma pessoa que mostrou a cara do Brasil ante o mundo, e o mostrou com suas políticas Sul-Sul, que, de alguma maneira, recuperaram a ideia da necessidade de apoiar a África; pela conformação dos BRICS, que é uma espécie de classe média internacional; com seus programas sociais, que mudaram as políticas sociais em toda a América Latina. Hoje, os programas de combate à fome têm características que são as do Lula.
Há ainda relações de amizade que eu encontrei por todo o mundo, relações quase pessoais de diversos dirigentes com Lula. Como o Papa Francisco, o ex-primeiro ministro da França Dominique de Villepin, o ex-primeiro ministro espanhol Felipe González, o ex-presidente da Espanha José Luis Rodriguez Zapatero, o ex-primeiro-ministro da Bélgica Elio Di Rupo. E no caso da América Latina, estão [os ex-presidentes] Rafael Correa, Cristina Kirchner, Michelle Bachelet, Sebastián Piñera, Juan Manuel Santos.
Lula tem amigos, não está sozinho internacionalmente."
Dupla face do golpe
"Acredito que a causa de Lula também serviu para que se examine, que se ponha em contexto, o que foi o golpe branco contra a presidenta Dilma Rousseff. São fatos que estão encadeados, não são fatos isolados. O golpe contra a presidenta Dilma e a prisão de Lula são duas faces de uma mesma moeda, que é o avanço na América Latina de poderes golpistas. São atores políticos que estão fazendo política sem responsabilidade política.
E que, de alguma maneira, terminaram por substituir os partidos políticos. Estou falando dos grandes grupos de comunicação e empresariais, de juízes e procuradores que estão apoiados midiaticamente, ONGs internacionais que interferem em nossos assuntos internos, agências qualificadoras de risco – que acabam com um país com uma simples qualificação. Estes poderes não estão só no Brasil, mas na Argentina, na Colômbia, em muitas partes do mundo, e que são, no meu entendimento, a maior ameaça à democracia nestes países.
De alguma forma são os que puderam criar as condições para tirar a presidenta Dilma do poder, e foi o ponto final que me fez sair da Unasul, e são as mesmas forças que conduzem o julgamento do presidente Lula.
Eu tenho acompanhado de perto todo o desenvolvimento do processo. E não precisa ser um advogado, o que eu sou, para se dar conta que não há um só dos princípios universais do devido processo que não foram violados no caso do presidente Lula. A presunção de inocência, a controvérsia da prova, o direito à intimidade, direito às instâncias."
Saída de Samper da Unasul
"A Carta Democrática da Unasul, diferente da Carta Democrática da OEA [Organização dos Estados Americanos] estabelece que, quando em um país há evidências de uma ruptura democrática, os países de Unasul podem pedir que se constitua uma comissão para que, de maneira preventiva, vá até o país onde ocorre o risco de ruptura e sugiram as correções necessárias.
Em uma conversa que tivemos com os chanceleres da Unasul, na presença de [assessor especial para Assuntos Internacionais durante o governo Lula] Marco Aurélio Garcia, e nessa época o ministro de Relações Exteriores brasileiro era Mauro Vieira, nessa reunião eu apresentei a eles e lhes disse que eu acreditava que ali havia uma ameaça de ruptura, no caso da presidenta Dilma Rousseff, que foi acusada na Câmara dos Deputados e no Senado sem que houvesse nenhuma prova contundente de sua culpabilidade e muito menos de um dano, porque ela não foi acusada de um delito, mas de uma falta administrativa, que não gera em nenhum caso uma destituição.
Lamentavelmente, a maior parte dos chanceleres sustentaram a tese de que tudo o que se estava fazendo no Brasil, se estava fazendo dentro do ordenamento legal brasileiro, que seria um ato de intervenção que se enviasse essa comissão. Eu, inclusive, havia feito uma carta e a entreguei ao Marco Aurélio, para que ele se consultasse com a presidenta Rousseff, para considerar com o governo a carta. No entanto, nessa mesma reunião nos demos conta de que não havia ambiente para acompanhar a comissão e isso foi o que me levou, semanas depois, a tomar a decisão de me retirar da Unasul.
Não eram todos que defendiam essa suposta legalidade, como é o caso da Venezuela, da Bolívia e do Uruguai.
Desde o momento que se produziu o golpe no Brasil, começou a crise na Unasul. Sobretudo com a chegada de Temer, o Brasil se retira do cenário internacional.
Quando eu cheguei na Unasul, no final de 2014, o Brasil era um ator poderoso, tanto à esquerda quanto à direita. Sabia se movimentar muito bem. Se havia uma decisão a ser tomada, o Brasil se movia para cá e para lá e alcançava o consenso.
Nesse momento se começava a notar o sinal de mudança ideológica na região. Nos últimos três anos, a região passou a ser de direita. Na Argentina, no Chile, no Peru, no Equador, no Brasil, no Paraguai. Então, a região que eu conheci, que havia nove países progressistas, dos quais haviam sido fundadores da Unasul ou vinculados a ela, como Lula, Chávez, Maduro; essa região mudou totalmente.
O futuro da Unasul depende se Lula ganha as eleições no Brasil. Realmente, não há um ator nesse momento que possa convocar o consenso na região. Esse seria Lula."
Papel dos EUA
"É um paradoxo que nós estejamos falando de desintegração quando a região nunca havia estado tão ameaçada como estamos com o senhor [Donald] Trump, que é a maior ameaça que se tem hoje em dia em política exterior latino-americana. Sua agenda não é somente para que nós a compartilhemos como no passado, que vinham e nos diziam: 'hoje vamos lutar contra o terrorismo, contra o narcotráfico'. Mas hoje a agenda é antilatino-americana.
Por exemplo, o muro com o México não será só para o México, será para toda a América Latina. Segundo, a questão dos migrantes; estes 10 milhões de migrantes que estão sendo retirados dos EUA, 7 milhões são latino-americanos, e a maior parte mexicanos. Retirada dos EUA dos acordos climáticos, e isso nos afeta na região com o aquecimento global. Aumentou todos os tributos. Então, é uma política totalmente agressiva.
E no caso das estratégias de defesa, eu tenho um temor de que Trump utilize o que hoje em dia é evidentemente uma relação muito tensa entre Colômbia e Venezuela para fazer uma intervenção militar disfarçada de colombiana. É um perigo que existe.
Então, uma região que esteja desintegrando diante de ameaças dos EUA, para onde vamos? Para a OEA pedir garantias? Uma entidade em que 60% da moeda é dos EUA?
Temo que eles possam reviver a questão das bases militares que Uribe quis por na fronteira com a Venezuela. É uma maneira de intervir.
Lamentavelmente, nós não necessitamos que os EUA se convidem para intervir na região, nós os convidamos para que intervenham. Digamos que América Latina caminhou ao redor de duas políticas internacionais. Uma que olha para o Norte, que é sincronizada com os EUA. E outra que é olhar em direção ao Sul, e isso foi o que fez Lula, que os países olhassem para a América Latina, a África, seus similares.
Os governos mudam de signo ideológico e a região se endireitou e, imediatamente, começa a se estabelecer a opção interamericana, ou seja, para a OEA.
Se há sinais de que os EUA patrocinaram isso? Seguramente o fez, por políticas como a questão dos cultivos ilícitos na zona andina, impondo condições para a erradicação dos cultivos. Quiçá a única notícia positiva para nós foi a decisão dos EUA de não entrar na Aliança do Pacífico, que era uma resposta de integração de livre-comércio frente aos processos de integração como os da Unasul.
Papel do Judiciário e direita na América Latina
Não é um mistério que o papel dos partidos na América Latina vem caindo. Os partidos, com algumas exceções, já não representam os interesses populares e sociais. Quem está representando-os? Outros atores políticos. E isso é o que dá espaço para o fenômeno da judicialização da política. Os debates que antes tramitavam nos cenários democráticos, como um Congresso, uma assembleia, um conselho de uma cidade, hoje em dia se transladaram para espaços judiciais. Então, colocamos para os juízes definir ou dirimir nossas diferenças políticas.
Mas isso teve uma segunda etapa, que é a politização da Justiça, que é que os juízes se converteram em atores políticos, e essa transformação a estão aproveitando os meios de comunicação empresariais, os que têm interesses econômicos, para utilizar os juízes como instrumentos políticos para produzir fatos como o de Lula, de Cristina Kirchner, de Rafael Correa. A maior parte dos que estão hoje em dia em processos judiciais com implicações políticas são pessoas de esquerda, porque quem está detrás disso é a direita.
Aqui um grupo muito importante de comunicação [a Rede Globo] está por detrás do que acontece com Lula, o grupo Clarín com o que acontece com Cristina, o grupo El Comércio está no de Correa, porque existe uma conspiração desses poderes golpistas para apagar do mapa todas as possibilidades de um projeto progressista na América Latina. Esta é uma ameaça contra as forças progressistas.
É interessante observar, dentro desse contexto, que esse fenômeno do governo dos juízes não é um fenômeno que ocorre só no Brasil, é um fenômeno que está se dando em várias partes, na Europa também.
A má relação entre Justiça e democracia é o que está produzindo estas distorções. Este é um fenômeno que está preocupando não só os progressistas, mas também os democratas.
Saídas para a judicialização da política
As saídas variam de acordo com os países, mas em termos gerais eu acredito que é preciso voltar a valorizar o papel das forças políticas, e isso tem muito a ver com a possibilidade de que se renovem as alianças entre os partidos e os movimentos sociais. O que dá legitimidade aos partidos é que tenham boas relações com as forças sociais.
Eu poderia ir um pouco mais adiante, eu diria que parte do problema é o excessivo presidencialismo que temos na América Latina. Esse presidencialismo está, de alguma maneira, acabando com os partidos, porque os partidos estão clientelizados por conta do presidencialismo. Esse debate se fez aqui no Brasil duas vezes de fazer um trânsito para um sistema parlamentar, mas cada vez que um presidente está em apuros, propõe uma reforma para um regime parlamentar. Eu não acredito que a região está preparada para um regime parlamentar estilo Espanha ou Inglaterra, mas sim um regime parlamentar estilo Quinta República francesa. um presidente eleito por maiorias diretas e um chefe de governo acordado com o Parlamento, de tal maneira que haja um equilíbrio de poderes dentro dos mesmos poderes. Mas isto é uma visão mais acadêmica (risos).
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira
23 de Agosto de 2018
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