A deposição de Vargas e as lições da História recente

Ainda há tempo de partidos e organizações de esquerda olharem menos umbigos e mais para o interesse do país e de seu povo, ameaçados por conservadores

30/08/2018
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
getulio-vargas.jpg
-A +A

No agosto findo completaram-se 64 anos da deposição e suicídio de Getúlio Vargas. Mal havíamos transitado da ditadura do Estado Novo para a democracia prometida pela Constituição liberal de 1946. Era ainda uma democracia tímida, que não comportava partidos de esquerda ou voto do analfabeto.

 

Nosso país havia aderido, unilateralmente, à Guerra Fria, e os militares exerciam, naquele então, um papel de proeminência e intervenção na vida civil. Falavam sobre todas as coisas, intervinham nas questões de Estado, na política social, e ainda se julgavam os depositários exclusivos dos valores da Pátria, por eles privatizada.

 

Haviam participado da Revolução de 1930 e da implantação do Estado Novo (1937) e, sem qualquer autocrítica, haviam deposto (1945) o ditador cujo poder asseguraram por largos e penosos oito anos. Nas primeiras eleições pós-redemocratização havia sido eleito presidente da República o marechal Eurico Dutra, ministro da Guerra do Estado Novo e também comandante da deposição de Vargas, que, no entanto, o apoiaria e o elegeria na primeira eleição do Brasil democratizado.

 

Por obra e graça do processo histórico – uma esfinge que os historiadores não conseguem decifrar – o primeiro governo civil, de bases populares e democráticas, seria o de Vargas (eleito em 1950, sucedendo ao seu antigo ministro de Guerra), derrotando nas urnas o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato do estamento militar, da direita urbana e do grande empresariado.

 

O presidente, comandando o país nos estritos termos da ordem democrática de então – nesse plano inscrita absoluta liberdade de imprensa –, intentava retomar as bases políticas e ideológicas daquilo que se convencionou identificar ora como ‘trabalhismo’, ora como ‘varguismo’, uma visão antiliberal de país e de mundo, mais ou menos resumida em dois pontos: o Estado como indutor do desenvolvimento e a soberania nacional (condicionada pelo desenvolvimento) como princípio.

 

O varguismo não se altera no período democrático: persiste no projeto de organização do Estado, na intervenção em áreas fundamentais para o desenvolvimento e a segurança nacional, como a siderurgia, a energia elétrica e o petróleo, sem cujos recursos seria impensável a industrialização tardia.

 

Finalmente, com vistas a inserir o país atrasado na economia capitalista que se montava lá fora a partir de Bretton Woods, a criação de um grande mercado de consumo, para o que vinha a calhar sua ‘opção pelos pobres’, a defesa e ampliação dos direitos trabalhistas e a correção digna do salário mínimo como instrumento de distribuição de renda.

 

(Lula nega essa influência, mas as premissas do varguismo, acima enunciadas em breve resumo, seriam o ponto de referência dos governos petistas, e dela não se livrará o programa costurado por Fernando Haddad, provável substituto do candidato escolhido pelo povo e provavelmente vetado pela ordem judiciária).

 

Essa política, porém, não agradou ao grande empresariado nacional, naquela altura – quase tanto quanto hoje – desvinculado do desenvolvimento nacional, pois seus interesses, na rota de sua matriz ideológica, estavam nos EUA.

 

São Paulo, o único estado industrializado, todavia, resiste; fracassara a política de aliança com a burguesia urbana. Resiste o Congresso, onde o governo é minoritário, resiste a grande imprensa em unânime oposição. As Forças Armadas, que haviam assegurado a política do governo da ditadura, resistem agora ao presidente democrático.

 

Foge-lhe a classe média, mobilizada pela grande imprensa, e não acorrem em sua defesa as massas populares e sindicais, desorganizadas e perdidas, quando os comunistas do PCB saem às ruas para, vocalizando o discurso da oposição golpista, pedir a renúncia do presidente que perdera a burguesia por defender os interesses dos trabalhadores.

 

(Recordo-me da resistência de setores do PT atuantes na Frente Brasil Popular condicionando a defesa do mandato de Dilma Rousseff à prévia autocrítica da presidente à política econômica que adotara.)

 

O atentado frustrado ao principal líder oposicionista civil, o jornalista Carlos Lacerda, é o imã que vai unificar as Forças Armadas e a montagem do que se convencionou chamar de República do Galeão, tantos anos antes da República de Curitiba.

 

Um IPM comandado por coronéis da Aeronáutica, a pretexto de apurar um crime comum (no atentado morrera seu guarda-costas, um capitão da FAB), rasga a Constituição e as Leis, com o claro propósito de humilhar o presidente e transformá-lo em presa de suas maquinações, atapetando o caminho para o golpe de Estado que estava marcado para a noite de 24 de agosto, quando o presidente se descobre absolutamente indefeso. Seu próprio ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa, é um dos insurgentes.

 

Tancredo Neves, jovem ministro da Justiça, é voz isolada quando sugere a resistência. Os líderes da oposição estão no Copacabana Palace festejando a vitória (o golpe seria apresentado como pedido de licença sem retorno de Vargas) quando as rádios anunciam o suicídio do presidente.

 

As grandes massas são despertadas de seu torpor, os trabalhadores saem às ruas, a dor explode em gritos, mas não há mais um governo por defender. Restava apenas prantear a morte de um presidente solitário.

 

A historiografia de superfície reduz a oposição a Vargas à pregação da UDN (o PSDB de então), apresentando à sociedade como corrupto um presidente honrado. Essa forma pobre de reduzir a história ao meramente aparente tem por objetivo esconder as razões reais, profundas, que radicam no sempre contestado projeto de desenvolvimento nacional autônomo, associado com a emergência social e econômica das grandes massas.

 

Esta contradição, de sempre, opõe os interesses da casa grande aos interesses da avassaladora maioria, os interesses do 1% do topo da pirâmide social aos 99% restantes. E a massa, o ´povão`, sempre assusta a pequena-burguesia quando ousa deixar a coxia para se apresentar no centro do palco, quando abandona o papel de figurante para exigir as luzes que iluminam os atores. Quando enfim decide escrever, ele mesmo, a sua História.

 

Talvez esta lição nos ajude a compreender o Brasil de hoje. Mas há outros ensinamentos a colher. A derrota das forças populares é a consequência inelutável da divisão das forças de esquerda. Ela foi decisiva na construção do 24 de agosto de 1954, alimentada pela dificuldade, perdurante ainda hoje, de compreender o significado do varguismo nos estreitos limites daquela crise.

 

Essa lição também pode ser lida pelo seu inverso; a unidade das forças populares asseguraram, no ano seguinte ao golpe, ou seja, em 1955, a vitória de Juscelino-Jango e, em seguida, o contragolpe de novembro daquele ano, que garantiu a posse dos eleitos, contestada pelos agentes do golpe de 1954, como foi contestado – também sem base qualquer – o pleito de 2014 pelo inconformismo tucano. Foi ainda essa unidade, ampliada com o apoio de correntes democráticas e liberais, que assegurou, na crise de 1961, a posse de João Goulart, frustrando a tentativa de mais um golpe militar.

 

Ainda há tempo, nessas eleições, de os partidos e organizações de esquerda olharem menos para seus respectivos umbigos e mais para o interesse maior do país e de seu povo, ameaçados pelos conservadores, pelo reacionarismo, pela direita, e pela promessa de um governo protofascista.

 

*

 

Memória (1) – Há 38 anos, em 27 de agosto de 1980, nos estertores da ditadura militar, D. Lyda Monteiro morreu em um atentado a bomba praticado por agentes do Exército Brasileiro. Tinha 59 anos e era secretária da OAB/RJ. A explosão arrancou seu braço e queimou metade de seu corpo. Lyda morreu a caminho do hospital. No mesmo dia, outra bomba explodiu na Câmara dos Vereadores do Rio da Janeiro, atingindo o funcionário José Ribamar de Freitas, que perdeu um braço e uma vista.

 

Memória (2) – Há 37 anos, em abril de 1981, dois terroristas, um oficial e um sargento, ambos do Exército e em missão, tentaram explodir o Riocentro (centro de convenções do Rio de Janeiro), quando lá uma multidão de milhares de jovens participava de um espetáculo musical. Eventos sombrios, que precisamos lembrar para jamais permitir que se repitam.

 

Marielle, ainda – Quando a polícia fluminense e a força militar interventora anunciarão os nomes dos mandantes e dos executores do assassinato da vereadora Marielle Franco? Ficaremos esperando, assim de braços cruzados, até que chacina caia no esquecimento?

 

- Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

 

Leia mais em: www.ramaral.org

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/195032
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS