Grande Porto Rico

05/11/2018
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Porto Rico é um “estado associado” dos EUA. Anexado em 1898 pelos norte-americanos, após a guerra contra a Espanha, Porto Rico é um território subordinado, que não faz parte dos Estados Unidos. Seus habitantes, embora tenham a cidadania norte-americana, não podem votar para eleger o presidente, senadores ou deputados. No Congresso, Porto Rico tem apenas um Resident Commissioner, com direito a voz, mas sem direito a voto.

 

Dessa forma, Porto Rico não é nem um Estado soberano nem um Estado dos EUA. Porto Rico fica num limbo de soberania. É, na verdade, uma colônia dos EUA. Tal status é reconhecido até pela ONU. Com efeito, o Comitê Especial das Nações Unidas sobre a Descolonização declarou que os EUA deveriam “permitir que o povo de Porto Rico tome decisões de maneira soberana e enfrente seus urgentes problemas econômicos e sociais, incluindo o desemprego, a marginalização, a insolvência e a pobreza”. Em vão.

 

Entretanto, o caso de Porto Rico, embora extremo, não chega a ser exatamente um ponto totalmente fora da curva, na América Latina. A bem da verdade, muitos países da região, mesmo não sendo colônias formais, têm uma forte relação de dependência, em relação aos EUA.

 

O Brasil, por suas vastas proporções territoriais, demográficas e econômicas, era, até pouco tempo, uma exceção parcial a essa realidade latino-americana.

 

Com efeito, tivemos períodos em que nos alinhamos subordinadamente aos interesses geopolíticos norte-americanos, como no período Dutra, nos governos Castelo Branco e Médici e nos governos FHC. Mas também tivemos períodos em que o Brasil tentou ativamente afirmar seus interesses próprios no cenário regional e mundial de forma mais autônoma. Foram os casos, por exemplo, da Política Externa Independente (PEI) do período de Jânio Quadros e João Goulart, do “pragmatismo responsável” de Geisel e, sobretudo, da política externa “ativa e altiva”, implantada nos governos do PT.

 

Nesse último período, o Brasil fez avanços extraordinários em seu protagonismo mundial. Investimos muito na integração regional, fortalecendo o Mercosul e criando a Unasul e a Celac. Demos prioridade à vertente Sul-Sul da política externa e estabelecemos sólidas parcerias estratégicas com outros países emergentes, como a China, a Índia e a Rússia. Reaproximamos-nos à África e criamos laços de cooperação inéditos com regiões como a do Oriente Médio, por exemplo.

 

Com isso, diversificamos muito nosso comércio exterior e nosso fluxo de investimentos, bem como ampliamos extraordinariamente nossas exportações e nossos superávits, algo que foi fundamental para a superação da vulnerabilidade externa da nossa economia, a qual vivia pendurada no FMI.

 

Criamos o grupo dos BRICS, contribuindo para conformação de uma ordem internacional mais multipolar. Fomos indispensáveis para a transformação do G7 em G20 e exercemos nossa respeitada liderança em todos os grandes foros mundiais.

 

Lula converteu-se no primeiro presidente brasileiro a ter dimensões mundiais. O “cara”, segundo Obama.

 

Todos esses avanços estão sendo celeremente destruídos pelo golpe. Como se sabe, hoje temos uma política externa passiva e submissa. Voltamos a nos alinhar aos interesses norte-americanos na região e no mundo.

 

Porém, temos, agora, um sério agravante. Esse sério agravante chama-se Bolsonaro, o “capitão-que-bate-continência-para-a-bandeira-dos-EUA”.

 

Com efeito, se fizer o que está acenando, Bolsonaro fará com que a política externa do Brasil se converta num ponto totalmente fora da curva, em relação à sua história e às suas tradições.

 

Uma coisa é aliar-se aos EUA, mantendo, porém, alguns espaços para a defesa de seus interesses próprios, como o Brasil fez, por exemplo, na era FHC. Na época, mesmo priorizando as relações com o grande irmão do Norte, não abandonamos a integração regional e as relações com alguns países emergentes.

 

Outra coisa, entretanto, é a promessa de terra arrasada de Bolsonaro. A total submissão do país aos interesses dos EUA, em nome de um feroz anticomunismo totalmente deslocado e extemporâneo, que faria até McCarthy corar. O que se prenuncia é a inteira perda de soberania.

 

O novo superministro da economia do capitão já deixou claro, de forma bastante grosseira, que o Mercosul e a Argentina não são prioridades, não terão qualquer relevância. Isso causou grande rebuliço num bloco que é fundamental para economia brasileira e para a paz em nossa região.

 

Trata-se de completa ignorância, por parte de quem pretende governar o Brasil.

 

A Argentina já foi nosso primeiro parceiro comercial. Mesmo depois da crise, é nosso terceiro parceiro comercial. Entre 2003 e este ano exportamos para o Mercosul nada menos que US$ 276 bilhões, com um superávit a nosso favor de cerca US$ 100 bilhões. Saliente-se que as exportações brasileiras para o bloco são, em mais de 90%, de produtos industrializados, com alto valor agregado. Em contraste, no que tange às nossas exportações para a União Europeia, a China e os EUA, os percentuais de manufaturados são de 36%, 5% e 50%, respectivamente. Portanto, o Mercosul compensa, em parte, a nossa balança comercial negativa da indústria.

 

Entretanto, o “posto Ipiranga” talvez não ligue para isso, pois já avisou que não terá políticas para promover nossa industrialização. Ao contrário, terá políticas para inviabilizá-la, pois pretende abrir totalmente nossa economia e extinguir o BNDES, nosso grande instrumento de financiamento da indústria. De agora em diante, a indústria brasileira só terá desincentivos.

 

Obviamente, essa negligência criminosa em relação ao Mercosul estender-se-á a toda a integração regional, bem como às alianças estratégicas com blocos e países emergentes. O único relevante, agora, será a relação privilegiada com EUA e aliados, como Israel, por exemplo.

 

A aliança firme com Trump, evidenciada pelas declarações de Bolsonaro, pelo efusivo e único comunicado de felicitações do presidente dos EUA ao recém-eleito e pela recente visita do embaixador norte-americano ao capitão, bem como à talvez decisiva participação de Steve Bannon na campanha eleitoral, já suscitou a advertência severa de Beijing, que não admitirá retrocessos em sua parceria estratégica com o Brasil, o qual nos beneficia enormemente.

 

A China é nosso primeiro parceiro comercial. No ano passado, exportamos para lá US$ 47 bilhões, com um superávit a nosso favor de US$ 20 bilhões. Em contraste, exportamos apenas US$ 26, 8 bilhões para os EUA, com um superávit a favor do Brasil de somente US$ 2 bilhões, dez vezes menor que o obtido com a China.

 

Ademais, é a China que alimenta o Banco de Desenvolvimento dos BRICS (NDB) e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA), instrumentos financeiros que poderiam contribuir muito para nosso desenvolvimento. O posto Ipiranga e o capitão parecem ignorar esses fatos que são do conhecimento de alunos do primeiro ano do curso de Relações Internacionais.

 

A sabujice política e ideológica do capitão chega ao ponto de anunciar a transferência da embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém e o fechamento da embaixada da Autoridade Palestina no Brasil, emulando Trump.

 

Trata-se de uma estupidez inacreditável, de uma ruptura clara não apenas com política externa ativa e altiva, mas com toda nossa tradição diplomática no tratamento do tema. Com efeito, o Brasil é um defensor histórico da solução dos “dois Estados” para a solução do conflito israelo-palestino e, por isso, acompanha a determinação da ONU, inscrita na Resolução 181 de sua Assembleia Geral, de que Jerusalém é uma cidade de status internacional. É por isso também que à exceção dos EUA de Trump, do Brasil do capitão e da Guatemala, um satélite norte-americano, todos os países mantém embaixadas em Tel Aviv.

 

Os países árabes e muçulmanos estão adorando essa iniciativa desastrosa do capitão. Exportamos US$ 11,6 bilhões para o Oriente Médio, em 2017. Para Israel, exportamos somente US$ 466 milhões. Tal decisão é, como se vê, muito pragmática e inteligente. Está em perfeita sintonia com os interesses da nossa agroindústria e com os milhões de descendentes de árabes que temos no nosso país.

 

Mas isso é só o começo. O ex-embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon, já anunciou que apoia a humilde solicitação do capitão, no sentido do Brasil entrar na OTAN.

 

O que um país do Atlântico Sul fará na OTAN não parece muito claro. O que é evidente é que tal decisão fará o Brasil rumar para o fundo do “posso”, em termos de soberania.

 

Se concretizada, essa preclara decisão tornará o Brasil um satélite definitivo, que orbitará fielmente, de forma canina, os interesses geoestratégicos dos EUA no mundo. Obviamente, tal iniciativa inviabilizará a participação do Brasil no BRICS. Nem Beijing nem Moscou aceitariam um membro da OTAN no seu clube.

 

O que virá depois? Uma aventura militar na Venezuela? A liderança, na América do Sul, contra o “marxismo cultural”, seja lá o que isso for? Medidas protecionistas contra a China, acompanhando Washington? A extinção do Mercosul e da Unasul? Um pedido para que o Brasil se torne Estado associado dos EUA, como Porto Rico? Não sabemos. Contudo, pelo andar da carruagem (seria melhor dizer carroça), só falta isso mesmo.

 

O que é certo é que a combinação de ultraneoliberalismo do posto Ipiranga com a subordinação política e ideológica do capitão que bate continência para a bandeira dos EUA rompe com todo resquício de soberania que nos sobrava, após o golpe.

 

Com tal combinação, que subverte por inteiro a nossa tradição diplomática, mesmo a do período neoliberal anterior, nos tornaremos uma nulidade geopolítica.

 

Não seremos apenas um país menor, seremos um país desprezível. Formal ou informalmente, seremos colônia, a exportar commodities para quem conseguirmos exportar. E não serão muitos os países, pelo visto.

 

Trump, aquele que aprisionou crianças brasileiras, e os grandes interesses do capital estão adorando esse novo país que engatinha, de quatro, pelo cenário mundial, sujando as suas fraldas, seus interesses e sua memória.

 

Só falta batizá-lo. Que tal “Gran Puerto Rico”?

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/196325
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