Governabilidade, só se combinarem com o povo (II)
- Opinión
Organização, esperança e o papel do líder (para além de determinismos ou derrotismos confortáveis): mais pontos para reflexão diante da aposta das elites no caos que ameaça e desmoraliza o país.
(continuação)
VI- Força da utopia e pessimismo da razão: Gramsci, Engels e uma história de Mao
Segundo o aforismo de Gramsci – que reforça o princípio marxista da “práxis” (teoria relacionada com a prática e por ela comprovada) –, devemos manter o “pessimismo da razão” (a avaliação correta do pior quadro possível) sempre em diálogo com o “otimismo da vontade” (a utopia concreta que impulsiona à ação).
Certos autores criticaram Engels por supostamente ter cometido o pecado do “determinismo evolucionista” (pois teria entendido o socialismo como “fim natural”). Contudo, em uma leitura mais atenta, vê-se que o companheiro de Marx foi vigoroso defensor da práxis revolucionária. Alguns discursos seus foram indevidamente compreendidos como análises científico-sociais (objetivas, necessariamente frias), quando em realidade se tratavam de falas enérgicas de um líder, (adequadas portanto ao calor do contexto que o envolvia).
Há que se ponderar caso a caso para quem se escreve, diz Sartre (em “Que é literatura?”), para quem se dirige cada mensagem; e assim se distinguir os momentos de reflexão teórica, daqueles de discurso e ação prática.
O grande comandante tem que enaltecer em seus camaradas as possibilidades da vitória – sem, logicamente, ser desonesto e ocultar os perigos da derrota.
Conta o professor da Universidade de São Paulo, militante e historiador Wilson Barbosa que durante a Revolução Chinesa, Mao Tsé-Tung, recuando em certo momento diante da superioridade das tropas nacional-conservadoras de Chiang Kai-Chek, ao Sul, dirigiu seu exército ao Norte. Questionado sobre o motivo da mudança de planos, responde: “Estamos indo enfrentar e expulsar o invasor japonês!”. Ainda que de fato o Japão tivesse invadido o território chinês, Mao naquele momento provavelmente apenas fugia. Porém, tinha consciência de que a um líder cabe sempre produzir ânimo (“alma”) em suas tropas.
Assim agem as destacadas lideranças militares ou sociais. E por sua vez, no campo inimigo, assim atuam também os opositores dos direitos humanos: vide o exemplo da falsa imparcial Folha de S.P., e dos assumidos Estadão, Ibope, Globo, Record, STB (estratégicos divulgadores dos interesses da máfia conservadora), no caso clássico dos sempre subtraídos 2% ou 3%, sistematicamente “errados” para baixo nas pesquisas eleitorais “dominantes”, no que se refere aos candidatos de esquerda – cuja mais reveladora prova foi a “vitória prévia” de Aécio, hoje chacota nacional.
VII- Fantoche impotente do sistema: mas perigoso, se não domado
Quando se diz que Bolsonaro é impotente, que não parece ter poder de diálogo parlamentar para tornar viável seu governo, e que nasce frágil com 61% de oposição (ou no mínimo desconfiança), isso decerto não significa que se possa afirmar de antemão que ele não conseguirá terminar o mandato; ou que não obterá alianças para atropelar direitos sociais, aprovando os projetos neoliberais de contra-reformas (trabalhista, previdenciária, etc) – requisito para que a elite entreguista continue apostando nele.
Tampouco se pode sugerir com isso que a esquerda deve baixar a guarda, esperar passiva as agressões que devem vir em janeiro, a partir da (possível) virada de ano 2018/1964.
Pelo contrário, o intuito é mostrar que é não hora de temor, mas de união, serenidade e cabeça erguida – pois o inimigo tem fragilidades e graves contradições. Por exemplo, a explosiva mistura entre um militarismo caduca, mas com ânsia de reconhecimento enquanto potência regional, e o neoliberalismo entreguista.
Dentro das regras impostas pela institucionalidade vigente, o capital não tem por que estar tranquilo com o capitão – e não está. Só passarão os tantos pacotes de maldades previstos, em se desmoralizando ainda mais as decadentes instituições conservadoras, estes dejetos não reciclados da ditadura militar – como de fato ocorreu nessas eleições, cujas fraudes corroeram o já sofrível nome brasileiro diante do mundo.
Portanto, de uma maneira ou de outra, o campo reacionário sofrerá derrotas: ora políticas, ora éticas. Cabe aos progressistas atuarem nestes erros com as forças que têm: as mobilização nas ruas; a Constituição cidadã (o que resta de suas estruturas); e também o apelo aos observatórios de direitos humanos internacionais (que já começaram a se pronunciar, com suas críticas que, normalmente “eurocêntricas” e falso-moralistas, costumam impor freios ao empresariado troglodita nacional, ao ameaçarem seus lucros, mediante embargos econômicos).
VIII- Esperança e resistência são decisivas: construir a não-governabilidade
Apostar no fracasso de Bolsonaro não se trata de predição otimista, mas sim de apontar brechas e oferecer um sopro de ânimo à resistência, frente a uma realidade que está posta. Trata-se, em suma, de nos organizarmos para construir a sua não-governabilidade.
A esperança, a “fé racional” nesta utopia que é a liberdade – como destaca Mariátegui – é uma força que fez o povo andino preservar seus costumes e resistir por séculos aos genocídios europeus. Uma força que frequentemente surpreendeu os desígnios da História.
Bolsonaro é sim fascista, no sentido historiográfico do termo. Mas – ainda – não conseguiu, e não dá mostras de que conseguirá, no atual “semi-presidencialismo” em que vivemos, instaurar um regime fascista no país, unindo as destoantes vaidades militares e subjugando todos os outros poderes, tão fortes, fisiológicos e sujos como ele (judiciário, midiático e parlamentar).
Recordemos que Lula, quando se encaminhava para ter mais de 80% de aprovação popular, quase foi derrubado pelo eixo midiático-judiciário-parlamentar, que adornou o velho conhecido caixa-dois com as lantejoulas de um “imperdoável” pagamento mensal de aliados. [*Breve digressão: apesar da crença pregada por certo esquerdismo purista – desatualizado quanto a nossa real baixeza política –, não passa de metafísica o culto à ideia de que a semi-presidência lulista foi todo-poderosa.]
Diz Lukács: só podemos saber o resultado global das ações particulares planejadas por cada grupo ou indivíduo “post festum” – postumamente.
Acusar as debilidades do fraco Bolsonaro é pagar para ver – mas sem deixar de empunhar os escudos da resistência. É apostar na fé das ruas, que subitamente se reforçou em um momento de agonia. E é fazer a tal autocrítica generalizada: petista sim, mas pedetista, psolista, ultraesquerdista e sobretudo, do esquerdismo caviar, festivo, da marxologia acadêmica de vitrine. A festa pode estar pra acabar.
IX- Governabilidade: mas a que custo?
A contradição maior que paira sobre o governo Bolsonaro é: até que ponto a burguesia dominante vai permitir ter sua ideologia nacional diminuída, ridicularizada por um “projeto” pífio de país que tende à estagnação? Que farão quando os efeitos da crise econômica mundial se aprofundarem, motivados pela desastrosa política externa amadora que se avizinha?
Decerto que Bolsonaro podia se eleger – como se elegeu. Porém, utilizou-se de métodos desonestos e (ainda) passíveis de impugnação. Quando muitos disseram que ele não iria se eleger, que era o quadro mais fraco da direita, essa não foi exatamente uma análise “equivocada”, mas uma aposta – e talvez a única saída naquela conjuntura: um chamamento ao que restava de racionalidade no campo das elites, uma aposta na “vergonha na cara” das instituições. Ambições frustradas.
O monstro poderá agora obter também a improvável governabilidade. Mas a que custo? Ao custo da desmoralização total do Judiciário, com o estúpido Moro alçado à política, onde desde sempre esteve (em trajetória que vai do neoliberalismo tucano ao autoritarismo descarado); este funcionário do líbero-fascismo cuja óbvia função é pressionar a rapa de congressistas desonestos para que atuem alinhados ao governo.
Mas isso não se dará sem um alto o custo de deterioração do nome do Brasil no exterior – como o próprio “murista” FHC (incapaz de se posicionar diante do caos) reconheceu há algumas semanas.
X- Combinaram com os russos?
A Monstruosidade nos imporá com violência os projetos neoliberais impopulares, ou ao menos tentará. Mas quantos serão mortos, quantos mártires serão criados?
E aliás, como diria o sagaz Garrincha: eles “combinaram” com o povo que será massacrado economicamente? Com as multidões que vendo suas existências ameaçadas sairão às ruas, com ou sem repressão?
Combinaram com os órgãos europeus de direitos humanos – este centro global do “poder moral” que promoverá suas sanções (como mencionado, eurocêntricas, mas algo funcionais)?
Combinaram com os árabes, com os chineses, com os argentinos – parceiros estratégicos que respondem por mais de 50% de nosso superávite comercial – infantilmente agredidos ainda antes da posse? [Aliás, parabéns ao Egito pela primeira porrada dura no bolsonazismo “exterior” – cancelando reunião diplomática e deixando com a cara na porta dezenas de nossos empresários golpistas, que já tinham voado ao país africano].
O caso da China merece destaque: é hoje nossa principal parceira comercial, antes dos estadunidenses e europeus. Será que o ministério bolsominion já planejou ao menos como se desculpar pela estúpida visita a Taiwan feita pelo capo há uns meses (aventura tola que sugere o caos de nossa política externa vindoura)? [O vice-presidente Mourão neste ponto parece mais sensato que o fantoche eleito, e se encontrar espaço, pode ganhar protagonismo].
E quanto ao desejo de realinhamento subalterno aos EUA (que até o entreguista PSDB vê como exagerado)? O líbero-fascismo já pensou que o Império tem uma bolha financeira prestes a explodir, segundo afirmam diversos economistas (inclusive renomado “prêmio Nobel”)? Sabem que o dólar vem sendo paulatinamente preterido nas transações internacionais, dado que seu valor está inflado, e que isso pode acelerar sua quebra súbita?
As quedas da bolsa a cada fala torpe da equipe de transição, prenuncia que o namoro da burguesia com o fascista eleito será breve.
- Yuri Martins Fontes é Pesquisador acadêmico pós-doutorado em Ética e Filosofia Política (USP), e em História, Cultura e Trabalho (PUC-SP). Analista de Política Internacional. Coordenador do Núcleo Práxis da USP.
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