Políticas públicas e participação popular no radar da Campanha da Fraternidade
A reforma da Previdência e o pacote Moro foram duramente condenados em posicionamentos de Pastorais Sociais e de lideranças eclesiásticas católicas.
- Opinión
“De modo especial, àqueles que se dedicam formalmente à política – à qual os Pontífices, a partir de Pio XII, se referiram como uma ‘nobre forma de caridade’ (cf. Papa Francisco, Mensagem ao Congresso organizado pela CAL-Celam, 1/XII/2017) – requer-se que vivam ‘com paixão o seu serviço aos povos, vibrando com as fibras íntimas do seu etos e da sua cultura, solidários com os seus sofrimentos e esperanças; políticos que anteponham o bem comum aos seus interesses privados, que não se deixem intimidar pelos grandes poderes financeiros e midiáticos, sendo competentes e pacientes face a problemas complexos, sendo abertos a ouvir e a aprender no diálogo democrático, conjugando a busca da justiça com a misericórdia e a reconciliação’ (ibid.).”
Papa Francisco,
Mensagem por Ocasião da Abertura da Campanha da Fraternidade 2019
Todos os anos, desde 1964, a Igreja Católica, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), propõe um grande tema nacional ao debate durante a Campanha da Fraternidade. Formalmente organizada nos quarenta dias da Quaresma, período que antecede a Páscoa, a campanha acaba pautando a ação da Igreja no tema proposto pelo menos durante o ano em que se realiza. Afinal, entre os objetivos da Campanha da Fraternidade sempre estão suscitar a reflexão e impulsionar ações sobre o tema proposto, e as maiores e mais lembradas campanhas são justamente aquelas cujos efeitos práticos sobre a Igreja e a sociedade brasileira mais se consolidaram.
Neste ano, o tema escolhido é “Fraternidade e Políticas Públicas”, e como lema o texto do Antigo Testamento, do profeta Isaías, que prega ao povo oprimido de seu tempo: “Serás libertado pelo Direito e pela Justiça” (Is. 1, 27). Seu objetivo geral, apresentado pelo texto-base oficial, é “estimular a participação em políticas públicas, à luz da palavra de Deus e da Doutrina Social da Igreja, para fortalecer a cidadania e o bem comum, sinais de fraternidade”.
Antes de mais nada, portanto, a CNBB propõe através dessa campanha um exercício de cidadania, na construção e defesa de políticas públicas – aquelas que, sob responsabilidade do Estado e com participação da sociedade, efetivam, consolidam e promovem direitos de todos e todas. Nesse sentido, longe dos paradigmas neoliberais, o conceito básico de política pública adotado pela Igreja é aquele conjunto de políticas sociais, macroeconômicas, administrativas e setoriais que asseguram direitos como responsabilidade precípua do Estado.
Tema quente, portanto, no contexto político de questionamento e ataque a esse conceito pelos governos derivados do golpe de 2016 e de seus programas de gestão, que implicam desregulamentar, privatizar e reduzir a inserção do Estado na economia e na prestação de serviços à sociedade.
Em carta aberta dirigida a toda a Igreja por ocasião dessa Campanha da Fraternidade, em 24 de fevereiro último, a Conferência dos Religiosos do Brasil e a Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB põem o dedo na ferida: “Em confronto a esse direcionamento, estão sendo tomadas iniciativas pelo governo eleito e pelos parlamentares que o apoiam no Congresso: estamos entrando em uma fase aguda de um rápido processo de desmonte de direitos políticos e sociais, como saúde, educação, trabalho e renda; desestruturação de organizações sociais; desconstrução de princípios educativos consolidados; perda do patrimônio nacional; destruição ambiental através do modelo extrativista predatório; deterioração das relações diplomáticas e do comércio internacional; exprimindo, assim, o egoísmo dos privilegiados e o descaso dos atuais governantes com a vida em nosso país”.
Em apenas dois meses de governo Bolsonaro, já são muitos os posicionamentos de organismos da CNBB contra medidas anunciadas de desmonte das políticas públicas. As duas principais medidas do governo, a reforma da Previdência e o pacote Moro, foram duramente analisadas e condenadas em posicionamentos de Pastorais Sociais e de lideranças eclesiásticas católicas. O alerta dos militares em relação ao crescimento da oposição dos católicos às medidas do novo governo já se fez sentir no anúncio de investigações levadas a cabo pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República sobre o Sínodo da Amazônia, convocado pelo Papa Francisco para outubro deste ano de 2019, e o contundente documento preparado pela Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam) para o início dos debates.
Um dos elementos centrais dessa Campanha da Fraternidade, que nada tem a ver diretamente com os humores da Igreja em relação ao governo Bolsonaro, visto que os temas são definidos anos antes da sua realização, é a defesa de consolidar como políticas de Estado as políticas de governo que, ao longo de anos, foram se desenvolvendo no sentido de promover direitos e oportunidades para os mais vulneráveis. Daí a conclamação à participação dos cristãos na construção das políticas públicas – através de audiências públicas, conselhos gestores ou de direitos, conferências, fóruns e reuniões de organizações da sociedade civil e movimentos sociais.
A participação popular na construção das políticas públicas tem uma centralidade na conquista de importantes legislações sociais e ações governamentais nas áreas da saúde, da criança e do adolescente, da juventude, dos sem-terra e dos sem-teto, desde a Constituição de 1988 e ao longo dos governos encabeçados pelo PT. De fato, a construção de direitos pela luta dos sem-direitos dirigidas ao Estado foi definidora de políticas públicas que melhoraram a vida, as condições de trabalho, de alimentação, de remuneração e moradia, entre outras, de milhões de pessoas em todo o mundo e aqui no Brasil em particular.
Esse estímulo à participação popular é com certeza o mais forte influxo da Campanha da Fraternidade. Um desafio para dentro e para fora da Igreja. Para dentro, pois com certeza os papados conservadores de João Paulo II e Bento XVI desestimularam fortemente o compromisso político dos cristãos católicos, rompendo com os influxos no Brasil e na América Latina da Teologia da Libertação e o forte engajamento social que essa vertente teológica significou até os anos 90 do século passado. Bem diferente é a conclamação de Francisco: “Ninguém pode exigir de nós que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional. Uma fé autêntica – que nunca é cômoda nem individualista – comporta sempre um desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela” (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, EG, n. 183).
Mas um desafio também para fora, num momento de forte interdição ao legado da participação social de sucessivos governos pelo novo governo. Em menos de três meses de governo, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, já encaminhou vários procedimentos de questionamento ao cerceamento, por ministérios e outros órgãos da administração federal, à ação de conselhos nacionais e à organização de conferências nacionais previstas para 2019.
A capilaridade da Campanha da Fraternidade, atingindo comunidades em todos os municípios do Brasil, leva esse debate a rincões que outras organizações não são capazes de chegar. Em circular dirigida a todas as dioceses, a CNBB oferece uma oportunidade concreta de participação nesse momento mesmo em que a campanha acontece em defesa da saúde pública. Ao afirmar que “a aprovação de duas emendas constitucionais (EC 86 e EC 95) deflagrou uma brutal ofensiva e um estrangulamento da sustentabilidade econômico-financeira do sistema público de saúde, agravando, ainda mais, o caótico cenário da manutenção dos direitos sociais do país”, a CNBB estimula “padres, agentes pastorais, comunidades e movimentos a conhecerem e participarem ativamente da etapa municipal preparatória para a 16ª Conferência Nacional de Saúde”.
A Campanha da Fraternidade é sempre um momento oportuno para o estabelecimento de pontes de diálogo político do PT com o mundo católico e suas entidades, buscando o bem comum, a defesa da soberania popular e dos direitos humanos. Ainda mais nessa conjuntura, em que a defesa das políticas públicas ameaçadas pela avalanche ultraliberal do novo governo federal vai exigir a mais ampla unidade de ação da resistência democrática.
- Renato Simões é membro da Executiva Nacional do PT, foi secretário Nacional de Participação Social na Secretaria Geral da Presidência da República no segundo governo Dilma
EDIÇÃO 182 - 20/03/2019 -