A alma brasileira está doente

11/04/2019
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Foto: Guilherme Santos
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Tudo que é sadio pode ficar doente. A doença sempre remete à saúde. Esta é a referência maior e funda a dimensão essencial da vida em sua normalidade.

 

As dilacerações sociais, as ondas de ódio, ofensas, insultos, palavras de baixo calão que estão dominando nas mídias sociais ou digitais e mesmo nos discursos públicos, revelam que a alma brasileira está enderma.

 

As mais altas instâncias de poder se comunicam com a população usando notícias falsas (fake news), mentiras diretas e imagens que se inscrevem no código da pornografia e da escatologia. Esta atitude revela a falta de decência e do sentido de dignidade e respeitabilidade, inerentes aos mais altos cargos de uma nação. No fundo, perdeu-se um valor essencial, o respeito a si e aos outros, marca imprescindível de uma sociedade civilizada.

 

A razão deste descaminho se deve ao fato de que a dimensão do Numinoso ficou obscurecida. O “Numinoso” (numen em latim é o lado sagrado das coisas) se revela através de experiências que nos envolvem totalmente e que conferem densidade à vida mesmo no meio dos maiores padecimentos.  Ele possui um imenso poder transformador. A experiência entre duas pessoas que se amam e a paixão que as torna fascinantes, configuram uma experiência do Numinoso.  O encontro profundo com uma pessoa que no meio de uma grave crise existencial nos acendeu uma luz, representa uma experiência do Numinoso.  O choque existencial face a uma pessoa, portadora de carisma, por sua palavra convincente ou por suas ações corajosas, nos evoca a dimensão do Numinoso.  A Presença inefável que se faz sentir face à grandeur do universo ou de uma noite estrelada, suscita em nós o Numinoso.  Igualmente os olhos brilhantes e profundos de um recém nascido.

 

O Numinoso não é uma coisa, mas a ressonância das coisas que tocam o profundo de nosso ser e que por isso se tornam preciosas.  Transformam-se em símbolos que nos remetem a Algo para além delas mesmas.  As coisas, além de serem o que são, transfiguram-se em realidades simbólicas, repletas de significações.  Por um lado nos fascinam e atraem e por outro nos enchem de respeito e de veneração.  Elas produzem em nós um novo estado de consciência e perfecionam nossos comportamentos.

 

Esse Numinoso, na linguagem dos místicos como do maior deles, o Mestre Eckhart ou de Teresa d’Ávila, bem como da psicologia do profundo à la C.G. Jung é representado pelo Sol interior ou pelo nosso Centro irradiador.  O Sol possui a função de uma arquétipo central.  Como o Sol atrai à sua órbita todos os planetas, assim o arquétipo-Sol sateliza ao seu redor as nossas significações mais profundas.  Ele constitui o Centro vivo e irradiante de nossa interioridade.  O Centro é um dado-síntese da totalidade de nossa vida que se impõe por si mesmo.  Ele fala dentro de nós, nos adverte, nos apoia e como o Grande Ancião ou a Grande Anciã nos aconselha a seguir os caminhos mais certos.  E então nunca seremos defraudados.

 

O ser humano pode fechar-se a este Centrou ou a este Sol.  Pode até negá-los mas jamais pode aniquilá-los.  Eles estão ai como uma realidade imanente à alma.

 

Esse Centro ou o seu arquéitipo, o Sol, nos conferem equilíbrio, harmonia pessoal e social e a convivência dos contrários sem se exacerbarem pela intolerância e pelos comportamentos de exclusão.

 

Ora, foi esse Centro que se perdeu na alma brasileira.  Ofuscamos o Sol interior, apesar de ele, continuamente, estar aí presente, como o Cristo do Corcovado.  Mesmo escondido por entre as nuvens, ele continua lá com os braços abertos.  Assim o nosso Sol interior.

 

Ao perder nosso Centro e ao ofuscar a irradiação do Sol interior, perdemos o equilíbrio e a justa medida, bases de qualquer ética, da sociedade e de toda convivência.  Desequilibrados, andamos errantes, pronunciando palavras desconectadas de toda civilidade e compostura.  Apequenamo-nos e abandonamos a lei áurea de toda ética: ”trate humanamente a todos e a cada um dos seres humanos.”  Nesse momento no Brasil, muitos e muitos não tratam humanamente a seus semelhantes.  De eventuais adversários no campo das ideias e das opções políticas ou sexuais são feitos inimigos a quem cabe combater e eventualmente exterminar.

 

Temos, urgentemente, que curar nossa alma ferida, resgatar nosso Centro e nosso Sol interior, mediante a acolhida das diferenças sem permitir que se tornem desigualdades, através do diálogo aberto, da empatia face aos que mais sofrem.  Como dizia o perfil de uma mulher inteligente no twiter: ”ao nos colocarmos no lugar do outro, fazemos do mundo (da sociedade) um lugar para todos”. Esta é nossa urgência, caso não quisermos conhecer a barbárie.

 

- Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu Virtudes para um outro mundo possível (3 vol), Vozes 2012.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/199269?language=es
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