A opção pelo “corte eterno” começa a ruir

30/05/2019
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A Cegueira de Sansão (1613)
Imagem: Rembrandt
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No apagar das luzes de 2016, a equipe de Michel Temer achava que estava com a bola toda. O vice-presidente havia conseguido afastar, de forma definitiva, Dilma Rousseff do Palácio do Planalto, graças à articulação e à aprovação de um golpeachment sem nenhum embasamento jurídico consistente. Passados pouco mais de três meses após a votação do afastamento pelo Senado Federal, o comando da economia estava em mãos de Henrique Meirelles e o financismo havia articulado com os grandes meios de comunicação a sedimentação de uma narrativa tão triunfante quanto falaciosa. Afinal, o Brasil ingressava na fase da bonança: não havia dúvidas de que tudo se acertaria dali em diante. Mas para tanto, as elites exigiam novamente o sacrifício da maioria.

 

A exemplo do que já vinha sendo implementado desde o início do segundo mandato da Presidenta, os novos responsáveis pela economia apenas deram continuidade à política do austericídio. Pegando carona nas medidas encaminhadas por Joaquim Levy em 2015, a duplinha dinâmica composta por Meirelles & Goldfajn encontrou o caminho pavimentado para aprofundar o desmonte do Estado e a destruição das políticas públicas voltadas à maioria da população.

 

Com o diagnóstico de que o maior problema da economia brasileira era o gasto público excessivo, a gestão da austeridade fiscal obnubilada ganha fôlego e amplia seu apoio no interior das classes dominantes. Além da gestão cotidiana das contas públicas na base da tesourada, a equipe de Meirelles teve a grande “sacada” para tornar essa administração criminosa do Orçamento uma regra permanente. Não contentes com as regras draconianas já existentes e presentes no interior da Lei de Responsabilidade Fiscal, os assessores de Temer resolveram introduzir na própria Constituição Federal as diretrizes destiladas pela ortodoxia e pelo monetarismo. Um verdadeiro crime contra a Nação.

 

EC 95: regime fiscal nada “novo”

 

 Assim foi concebida uma Proposta de Emenda Constitucional criando aquilo que ficou conhecido como o “Novo Regime Fiscal”. Na Câmara dos Deputados ela tramitou como PEC 241, tendo sido aprovada em segundo turno no dia 25 de outubro. No Senado Federal, ela circulou sob a etiqueta de PEC 55 e foi aprovada em segundo turno no dia 13 de dezembro. Trágica coincidência essa, em que uma medida como a PEC tenha sido aprovada na mesma data em que, 48 anos antes, havia sido decretado o AI-5. Por meio desse expediente, a ditadura militar escancarava as portas para a morte, a tortura, a prisão, a cassação e a censura de seus opositores.

 

Na verdade, trata-se de um regime fiscal que não tem nada de “novo”. A única novidade – se é que se pode dizer algo assim – refere-se à ousadia demolidora de introduzir no texto constitucional um engessamento das regras de uma das dimensões mais relevantes da política econômica em qualquer país do mundo. Afinal, parece mais do que óbvio que não faz sentido algum amarrar em dispositivo da Carta Magna procedimentos que exigem flexibilidade e agilidade de respostas por parte dos responsáveis governamentais a cada nova conjuntura que se abre no horizonte.

 

A medida converteu-se na Emenda Constitucional 95 e acrescentou 8 artigos ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Por meio dela ficam estabelecidas as regras e as condições operacionais para a vigência do tal Novo Regime Fiscal. De acordo com os dispositivos propostos por Meirelles, ficam congeladas por 20 anos as despesas orçamentárias da União. A cada novo exercício os valores serão apenas corrigidos pelo índice de inflação oficial relativo ao período. Além disso, vale ressaltar um pequeno “detalhe” escondido – como quem não quer nada – no interior do texto: a restrição refere-se apenas às “despesas primárias”. Vale dizer que as despesas financeiras seguem livres e soltas para crescer o quanto quiserem os governantes.

 

A apresentação e a insistência pela aprovação de uma peça tão equivocada como essa só pode ser explicada pelo clima de entusiasmo artificialmente construído pelo povo do financismo. A partir da vigência de uma hegemonia absoluta no interior dos meios de comunicação, não foi dada a oportunidade para nenhum contraponto. Afinal, não faltam argumentos para explicar a impropriedade da proposta. As visões críticas, inclusive nos segmentos do próprio conservadorismo, foram esmagadas em nome de uma nova fase que supostamente se abriria para a sociedade brasileira.

 

Os efeitos da aplicação de tais diretrizes estão sendo tragicamente sentidos ao longo desses quase dois anos e meio de sua vigência. O conjunto da política econômica só promoveu o aprofundamento do quadro recessivo, com a explosão dos índices de desemprego e falências. Em uma conjuntura onde as necessidades de suporte às políticas sociais inclusivas e compensatórias se fazem mais do que urgentes, a resposta dos governos tem sido a repetição monótona e mentirosa da surrada cantilena do “não temos verbas”. Mas tudo isso pouco importa para esses dirigentes. Na visão da tecnocracia cooptada pelos interesses do financismo, as consequências trágicas no lombo da maioria da população pobre e trabalhadora não passam de elemento que atrapalha o cálculo certeiro oferecido pela planilha eletrônica infalível.

 

O único caminho é revogar a EC 95

 

No entanto, nada como um dia após o outro. À medida que a receita de política econômica de Paulo Guedes continua na mesma trajetória de fracasso, amplia-se o arco de setores das próprias classes dominantes que começam a apresentar seu descontentamento com os resultados oferecidos pela EC 95. Afinal, a promessa de redenção no paraíso do crescimento do PIB não se realizou e a questão fiscal continua como uma espada sobre a cabeça de todos. De um lado, há vozes no interior do próprio conservadorismo recomendando flexibilização da crueldade austericida, a exemplo das sugestões de André Lara Rezende. De outro lado, são revelados os sinais de integrantes do próprio governo que não se sentem confortáveis com orçamentos minguados e reduzidos em suas respectivas pastas.

 

A sociedade se movimenta e também passa a exigir que Bolsonaro recue em suas intenções de demolir a Previdência Social e em seu aval para que Paulo Guedes se encarregue de concluir o extermínio do restante das políticas sociais. Esse é sentido dos movimentos da comunidade da educação contra os cortes já realizados e os novos anunciados, com a segunda jornada de luta marcada para o dia 30 de maio. Essa é também a direção das manifestações programadas pelo movimento sindical, com ampla adesão social, para a greve geral no dia 14 de junho contra a Reforma das Aposentadorias.

 

Ao que tudo indica, a situação fica cada vez mais complicada para a continuidade dessa abordagem extremada da austeridade. As instituições e os indivíduos percebem que essa rota só nos leva na direção do abismo. Toda e qualquer alternativa de condução da política econômica passa necessariamente pela flexibilização da orientação fiscal. E isso exige a revogação da EC 95.

 

- Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

 

29/05/2019

https://outraspalavras.net/crise-brasileira/economia-a-opcao-pelo-corte-eterno-comeca-a-ruir/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/200115?language=es
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