A revelação divina que chega com atraso
- Análisis
Sem dúvida, para os povos amazônicos, é boa notícia que o papa Francisco tenha convocado um sínodo dos bispos católico-romanos de todo o mundo para refletir sobre os apelos que a Amazônia faz à Igreja Universal (compreendida como o conjunto de Igrejas cristãs do mundo inteiro). Como afirmou Dom Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário no Brasil (CIMI), “O Sínodo sobre a Amazônia praticamente começou em janeiro de 2018, em Puerto Maldonado (Peru), no encontro do papa com os povos amazônidas”1.
De fato, o Sínodo dos Bispos é uma instituição que retoma antigo costume das Igrejas e sinaliza a vocação que a Igreja tem de ser sinal e instrumento de unidade para a toda a humanidade. (O termo sínodo vem do grego e significa “caminhar juntos”).
Na Igreja Católica, foi depois do Concílio Vaticano II que o papa Paulo VI, em 1967, recriou a instituição do Sínodo, encontro que reúne bispos de todo o mundo para, de tempos em tempos, refletir com o papa sobre assuntos que dizem respeito à Igreja universal ou a problemas humanos e pastorais de determinada região (cânon 342 do Código de Direito Canônico). É o caso desse Sínodo especial para a Amazônia, convocado pelo papa para outubro de 2019, conforme o cânon 345 do mesmo código. Esse sínodo tem como tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”.
No dia 17 de junho deste ano, se tornou público o documento que servirá de base para o diálogo e os trabalhos do Sínodo (Instrumentum laboris). Elaborado na metodologia latino-americana, o documento tem três partes, correspondentes ao Ver, Discernir (julgar) e Agir. Na primeira, o documento retrata a realidade do território e dos seus povos a partir dos relatos e testemunhos das comunidades. Por isso, a proposta é escutar a voz da Amazônia à luz da fé. Na segunda, busca-se responder ao clamor da terra e dos povos por uma Ecologia Integral. Finalmente, na terceira parte, Igreja profética na Amazônia, desafios e esperanças, tentam-se discernir caminhos novos para a missão profética das Igrejas na Amazônia.
É consolador saber que esse documento e os assuntos que serão tratados no Sínodo foram formulados a partir de consulta que envolveu as comunidades amazônicas, grupos (católicos ou não) e acolheu posicionamentos de estudiosos/as e pessoas que acompanham a realidade amazônica nos diversos países que cobrem a região.
Infelizmente, ainda há - e não são poucos - os bispos, padres e grupos católicos que não reconhecem a Ecologia Integral, a situação social dos povos e a Política como assuntos que dizem diretamente respeito à missão da Igreja. Parecem esquecer ou ignorar que Jesus definiu a sua missão como sendo a de curar os doentes, libertar os prisioneiros e anunciar aos empobrecidos a boa notícia da libertação. Para isso, ele foi enviado pelo Espírito Divino que recebeu (Lucas 4, 16- 21). À luz dessa compreensão do evangelho do reino, convido vocês a aprofundarmos a novidade que esse Sínodo pode representar para a Igreja e para o mundo e como podemos dele escutar uma palavra que nos renove e nos anime na missão.
1 – Para vinho novo, odres novos
Há mais de 50 anos, o papa João XXIII e o Concílio Vaticano II nos ensinaram a assumir “os sinais dos tempos” como elemento a partir do qual, aprendemos a discernir a palavra de Deus e o que ele pede de nós. Na América Latina, olhar a realidade social e política para discernir nela os desafios para a missão foi o próprio tema geral da 2ª conferência geral do episcopado católico em Medellín (1968). A partir daí, se tornou a proposta teológica e espiritual das comunidades cristãs, inseridas no meio dos pobres. Nas últimas décadas, a Teologia da Libertação tem tomado formas diversas e novas, assumindo os caminhos próprios das teologias afro, indígenas, feministas, gays e outras reflexões autônomas que se situam na mesma linha libertadora. No entanto, para o magistério romano e os bispos reunidos em um sínodo em Roma, é a primeira vez que, depois do Concílio Vaticano II (1962- 1965) e, para a América Latina, depois de Medellín (1968), a realidade social e política é assumida realmente como “categoria teológica”.
Por isso, podemos afirmar que essa escuta da realidade e o reconhecimento do lugar teológico das diversas tradições espirituais dos povos originários é como revelação divina que chegou atrasada. Embora elas já sejam tão antigas, só agora a hierarquia católica está verdadeiramente reconhecendo que ali há uma revelação divina e está disposta a acolher.
Na Exortação Apostólica Episcopalis Communio (2018), o papa Francisco já havia insistido que “o Sínodo deve ser instrumento privilegiado de escuta do povo de Deus” (EC 6). O que certamente é a maior novidade dessa preparação para o Sínodo tem sido realmente levar a sério essa postura até o último ponto. Embora sempre os sínodos sejam antecedidos de questionários para os bispos e dioceses, nenhum sínodo anterior a esse cuidou tanto de escutar a voz da realidade através dos testemunhos das bases e dos/as missionários e estudiosos que ali trabalham. Esse documento de trabalho preparatório fala em Igreja como ouvinte e destaca a importância do processo de escuta sinodal que já deixou frutos na região (articulação dos diversos países a serviço da região amazônica, atenção para os desastres ecológicos e para a ação nefasta das mineradoras e do desflorestamento) e o documento deixa claro que esse processo sinodal de escuta deve continuar mesmo depois do evento do Sínodo em Roma (n. 3).
Todos sabemos das reações contrárias que o papa Francisco enfrenta no Vaticano. Sabemos que até mesmo o fato de dedicar uma sessão do Sínodo à Amazônia está sendo contestado por alguns, inclusive cardeais2. Além disso, o Sínodo é órgão consultivo, sem nenhum poder deliberativo e é coordenado por cardeais e bispos, dos quais a maioria nem conhece bem a região. Por isso, para muitos irmãos e irmãs missionários e inseridos nas bases, esse processo sinodal de escuta que o Sínodo já suscitou e agora foi oficializado no documento de trabalho garante que o Sínodo vá além de seus próprios limites e se torne como alguns chamaram, uma amazonização da Igreja ao se inserir na realidade do território e dos povos e uma aliança da humanidade pela Vida.
Nesse sentido, através do diálogo, esse processo sinodal já conseguiu formar na parte da Igreja que deseja a inserção um consenso básico que consiste no apoio às comunidades indígenas, ribeirinhas e diversos segmentos amazônicos. Denuncia claramente a ação nefasta das madeireiras, mineradoras e grandes empresas pesqueiras. E instaura uma missão eclesial baseada na escuta, no diálogo e no respeito às culturas e espiritualidades dos diversos povos e comunidades. O documento de trabalho do Sínodo chega a reconhecer a Amazônia como “repleta de vida e sabedoria” (n. 5).
2 – Por trás das palavras e nas entrelinhas
Todos sabemos que parte dos bispos e do clero mesmo na região amazônica rejeita e se mantém distante de todo esse processo como se o ignorasse. Mas, assim mesmo, em cidades e arquidioceses nas quais o arcebispo e parte do clero não participam de nada que diga respeito a esse Sínodo e à consulta, o processo está ocorrendo nas bases e tem sido fecundo.
Evidentemente, a construção do consenso e mais ainda da preparação do Documento Final a ser entregue ao papa no final do Sínodo exigem que “caminhemos juntos”. Para isso, é normal que se ceda um pouco aqui e ali para concentrar forças nos pontos que parecem mais essenciais.
Certamente uma vitória desse documento e do processo que ele expressa é uma leitura mais sistêmica da realidade e a denúncia de um sistema que ameaça a vida na Amazônia. Também é uma conquista ver em um documento emanado do Vaticano o reconhecimento claro de que até hoje a Amazônia enfrenta a invasão de “novas potências colonizadoras” (n. 7), a confissão de que “a Igreja foi (ou tem sido) cúmplice dos colonizadores, sufocando a voz profética do Evangelho” (n. 38). Antes, papas como João Paulo II pediam perdão pelos erros de “alguns filhos da Igreja”, mas nunca reconheciam que a Igreja, em si mesma e como Igreja tinha pecado...
Por trás desse documento há uma Missiologia diferente da que, embora reconheça a missão da Igreja em relação à justiça e a paz, continua vendo o evangelho como “doutrina cristã”, identifica Igreja e reino e sublinha a missão como pregação do evangelho aos descrentes. Nesse documento de trabalho, embora nem sempre a linguagem consiga ser totalmente clara, consegue-se expressar claramente que a missão só pode ser vivida em diálogo com as sabedorias ancestrais dos povos amazônicos (n. 29) e deve ser um diálogo a serviço da vida e do futuro do planeta (n. 35). Portanto de modo algum é diálogo como mera estratégia pedagógica para assim fundamentar melhor a doutrinação ou a conversão religiosa de fieis.
É outra concepção de missão. Mesmo quando a linguagem parece visar a Igreja é sempre supondo uma Igreja em saída e cuja missão se vê como sendo a Ecologia integral e a defesa da vida no planeta.
É também importante perceber que o documento valoriza as espiritualidades autóctones dos povos originários e a religião popular das comunidades mesmo católicas da Amazônia, não apenas por questão de respeito aos direitos dos povos de terem sua cultura religiosa, não apenas por um diálogo tático e pedagógico, mas porque espiritualmente reconhecemos que essas espiritualidades são caminhos que procuram desvendar o mistério insondável de Deus (n. 39), são expressões do Espírito Divino presente e atuante nos povos (28) e assim como o território e a realidade social e política, também as espiritualidades tradicionais dos povos são para nós lugar teológico a partir do qual os povos podem se reerguer, recuperam sua saúde (n. 87) e podem ser elementos de transformação da realidade e da missão (n. 93- 94). É esse último elemento que queremos aqui aprofundar mais.
3 - O que o Espírito diz hoje às Igrejas
Começo por uma experiência que vivi na África. Logo depois do Fórum Mundial de Teologia e Libertação, em Nairóbi (janeiro de 2007), visitei uma comunidade africana tradicional. Ali conheci uma senhora, sacerdotisa de Tamobi, a deusa da água. Para provocá-la, perguntei:
- Como tendo aqui uma sacerdotisa da deusa da água, essa região é tão seca? A senhora não consegue que Tamobi faça chover?
Ela me respondeu francamente:
- Eu sou sacerdotisa da água e não dona da água.
Para mim, aquilo tinha sabor de lição a ser aprendida. Aquela senhora me ensinava a diferença entre espiritualidade e simples magia. Ela era sacerdotisa de Tamobi, não controladora ou proprietária do mistério divino (tendência do clericalismo).
Tinha sabido que ali perto, uma empresa tirava areia para levar à cidade e destruía todo o leito do rio. Provoquei de novo:
- Como a sua espiritualidade poderia defender o rio que está ameaçado de secar?
Ela me respondeu:
- De fato, a empresa está com dificuldade de continuar o seu trabalho porque, através de mim, Tamobi avisou aos homens daqui que trabalhavam no transporte de areia do rio:
- Vocês estão destruindo a cama em que me deito com a natureza. Se vocês destroem o meu leito conjugal, eu vou tirar a potência sexual de qualquer um de vocês que continuar esse trabalho de transporte de areia.
Todos os empregados se demitiram. A empresa diminuiu muito e teve de buscar operários na cidade.
É claro que a realidade amazônica é muito diferente da África. No entanto, uma grande energia de resistência para as comunidades poderia ser fruto de um diálogo de inserção nas espiritualidades indígenas. Além da colaboração com a justiça e a Política que índios e índias de diversas etnias têm vivido nos diversos campos do Direito, da Justiça na Terra e na atividade política, a valorização das próprias espiritualidades indígenas é a intuição fundamental de filmes documentários sobre a realidade dos índios Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul e é a contribuição do extraordinário livro do Xamã Yanomami Davi Copenawa (A queda do céu) e do trabalho que, por todo o Brasil, índios como Kaká Veras realiza para resgatar o sentido próprio das espiritualidades indígenas na construção de uma nova sociedade3.
O documento de trabalho do Sínodo propõe que se organize o ensino da Teologia indígena pan-amazônica em todas as instituições educativas (n. 98. 3). É importante discernir com mais clareza o que significa “teologia indígena” e espiritualidade indígena. É estranho que o documento fale disso no plural depois de reconhecer que são centenas de povos indígenas diferentes e além dos índios, há tantas outras comunidades e grupos autônomos. Além da necessidade de sempre falar de teologias e espiritualidades indígenas no plural, também é bom distinguir as que são teologias e espiritualidades originárias (por exemplo, no livro “A queda do céu” o Xamã yanomami Davi Kopenawa descreve a sua fé nos Xapiris e como a dança dos Xapiris na floresta é importante para o equilíbrio do ecossistema e a vida dos povos da floresta4. Os livros e palestras que o tapuia Kaká Veras realiza por todo o Brasil expressam uma teologia e espiritualidade originária do seu povo. É diferente de uma teologia e espiritualidade também indígena e muito válida mas já de comunidades e grupos que leem a fé cristã a partir de suas culturas próprias (seria uma teologia índia cristã). Isso está bem desenvolvido e já tivemos no continente latino-americano ao menos nove encontros continentais de Teologia índia (cristã)5. Missionários como Eleazar Lopez Hernandez no México, Diego Irrazaval nos Andes e Paulo Suess no Brasil têm sempre buscado unir esses dois ramos diversos da Teologia índia e ajudar no diálogo com as outras teologias cristãs.
As espiritualidades indígenas e afrodescendentes podem ser uma força na luta. Em suas expressões originais, elas têm sido elementos de resistência e têm ajudado as comunidades a retomarem a sua identidade cultural e sua dignidade própria. Quando falamos de espiritualidades indígenas ou afro cristãs, pensamos nas contribuições próprias desses grupos para que a Igreja viva realmente a catolicidade e uma missão que seja geradora de vida.
Atualmente, existe várias expressões de Xamanismo urbano, algumas mais autênticas e ligadas a uma eco-teologia ecumênica e feminista. Outras mais de classe média alta e de butique. Isso tem sido denunciado até na Bolívia, entre os Quétchua e os Aymara. No entanto, cada vez mais os povos indígenas têm descoberto que ao recuperar as suas culturas originais, reencontram a força de suas tradições espirituais.
Ao falar em resistência e reconstrução da dignidade coletiva de povos, podemos voltar ao livro "A queda do céu", do Xamã Yanomami Davi Kopenawa, escrito junto com o antropólogo inglês Bruce Albert6. Nesse livro, vemos justamente três momentos na vida do narrador indígena: a visão cultural de criança na cosmologia antiga. Depois, na juventude, certo afastamento dessa tradição e entrada na cultura ocidental. Uma terceira etapa mais madura foi quando depois de ter conhecido bem a sociedade dominante e ter mesmo tido ocasião de ir a Europa e Estados Unidos, ele decidiu voltar a viver na aldeia e retomar a tradição espiritual antiga agora a partir de um novo olhar e fazendo uma síntese nova.
Alguém contou que um pai de santo do Candomblé quis participar dos encontros e reuniões da REPAM (Rede eclesial Pan-amazônica). E um bispo que coordenava a reunião onde se discutiu o desejo do pai de santo decidiu: Quem quiser entrar na nossa, venha.... Essa abertura já é boa e espiritual. No entanto é ainda ambígua porque pode ser compreendida como inclusiva no sentido de que assume o outro se ele entrar na nossa... , isso é, no nosso modo de ser, de pensar e agir. Essa postura precisa ainda ser alargada espiritualmente. A espiritualidade da REPAM e desse novo modelo de missão que o Sínodo pode suscitar deve ser buscar o que Deus nos revela através do pai de santo. Não para deixarmos de ser cristãos, mas para sermos melhores cristãos como Jesus quis, ele que, como diz o evangelho desses domingos, mandou e forçou os discípulos a "passarem para o outro lado do lago", isso é, o lado dos pagãos, dos estrangeiros, dos que tinham outra religião e outra cultura. Essa é a proposta do papa Francisco quando fala em uma "Igreja em saída". A REPAM deve pertencer a essa Igreja em saída e não compreender sua missão em uma perspectiva aberta e solidária, mas sempre em uma visão de Igreja neocristandade, triunfante, autossuficiente e autocentrada. Somente a partir do outro é que podemos ouvir e obedecer ao que "o Espírito diz, hoje, às Igrejas" (Ap 2, 5).
4 - Para ritos litúrgicos amazônicos
A celebração judaico-cristã é memorial das maravilhas de Deus. Ao recordar (trazer ao coração) as ações de Deus em favor do seu povo, acreditamos que, a cada dia, sua ação salvadora se renova conosco e para toda a humanidade. Por isso, na véspera de sua paixão, ao cear com seus discípulos e discípulas, Jesus disse: Fazei isso em memória de mim. E, ao ser o primeiro a escrever sobre essa tradição, Paulo afirma: “Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste vinho, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha”(1 Cor 11, 26).
Em cada época e para cada povo ou comunidade, a celebração da ceia do Senhor, ao recordar a Páscoa do Senhor, a atualiza, até que ele manifeste visivelmente sua presença libertadora no meio de nós. Para fazer isso, de modo eficaz e fecundo, precisamos traduzir suas palavras e gestos na linguagem e nas culturas próprias de cada região e de cada época. Por isso, devemos ter dois cuidados que, no fundo, são os dois critérios apontados pelo papa João XXIII para a renovação que o Concílio Vaticano II, em sua época, deveria realizar: a volta às fontes e o que o papa chamou “aggiornamento” (trazer o mistério celebrado e vivido para os dias de hoje).
4. 1 – Como celebrar o louvor de Deus na realidade amazônica.
Ao lembrar o sofrimento do povo de Deus no exílio da Babilônia, o salmo fazia a pergunta: Como cantar os cânticos do Senhor em uma terra estrangeira? (Sl 137, 4). Nos anos 80, Paulo Suess, atualizava o salmo em um poema que perguntava: “Como celebrar o louvor de Deus às margens dos rios da Amazônia?”. É justo e possível celebrar o louvor de Deus quando os sofrimentos e as opressões sofridas contradizem aquilo que se celebra? Não se trata apenas da dificuldade ou mesmo impossibilidade humana de nos alegrar e louvar, quando temos vontade de chorar. Isso é real e deve pesar, mas há algo mais sério e grave: quem é o nosso Deus? Ou como diziam os teólogos e teólogas em recente encontro para preparar o Sínodo da Amazônia: De que lado Deus está? De que lado, Jesus está? Já nos anos 60, Dom Helder Camara se perguntava: “Como cantar: o Senhor é meu Pastor, nada me falta, se em torno de nós falta tudo?”
É correto falar de ressurreição e vida onde o que impera é morte e destruição? Essa questão teologal (de fé) e teológica (de expressão da fé) muitas vezes, foi colocada a partir do holocausto judeu. Ao celebrar em meio à opressão dos filhos e filhas de Deus, estamos louvando-o, ou o nosso louvor acaba sendo uma ofensa a Deus? Estamos falando bem dele ou estamos ridicularizando sua Palavra e sua promessa de salvação?
Na época do Nazismo em um campo de concentração, esperando a morte, Etty Hillesum, judia holandesa de 28 anos, escreveu em seu caderno de Diário como via Deus a partir da tragédia do Nazismo. No dia 12 de julho de 1942, ela escrevia: "Vou te ajudar, meu Deus a não te apagar de dentro de mim, mas não posso garantir nada. O que vejo com clareza é que não és Tu quem pode nos ajudar e sim nós, (judeus) que podemos ajudar a Ti e, ao fazer isso, podemos ajudar-nos a nós mesmos. Isso é tudo o que, nesse momento, podemos salvar e também a única coisa que conta: um pouco de Ti em nós, meu Deus. Talvez, possamos também fazer que venha à luz (apareça) a tua presença nos corações devastados dos outros"7.
Quem vive na América Latina e sabe que a conquista e a colonização do continente foram realizados em nome dos impérios ibéricos e da fé cristã, não pode deixar de considerar as palavras daquela jovem judia, mártir do Nazismo. Afinal, como mostram Marcelo Grondim e Moema Viezzer, calculam-se em 70 milhões as vítimas do genocídio praticado contra os povos indígenas no continente8. Nem as comunidades de Israel no cativeiro, nem as Igrejas em situação de grande sofrimento, nem também nós, no mundo dos pobres, queremos renunciar a celebrar o culto de Deus e o memorial da ceia de Jesus. O que colocamos em questão é o como celebrar.
No continente latino-americano, mas de modo mais forte ainda na realidade da Amazônia, não deixa de conter um cinismo cruel celebrar o louvor de Deus e a ceia de Jesus, como se estivéssemos em Portugal, na França ou em Roma. Queremos ser fieis ao memorial de Jesus. Amamos sua palavra nas Escrituras Sagradas, nos sentimos enriquecidos com as expressões belas e profundas da tradição litúrgica e não queremos ignorá-las ou deixá-las de lado. No entanto, estamos convencidos de que elas não nos bastam. Não é suficiente usar tal qual o rito romano e atualizá-lo para a região amazônica apenas através de cânticos, do uso de tambores indígenas e instrumentos ou das vestes adaptadas dos celebrantes. Precisamos mais do que isso. Não basta mudar o invólucro da celebração. É o próprio coração da fé e da celebração que deve ser tocado. Queremos fazer o memorial de Jesus na ceia, as celebrações de batismo, de matrimônio e o louvor divino nos cultos, novenas e ofícios, de forma que, em cada celebração possamos sentir o que Jesus disse ao reler a Escritura na sinagoga de Nazaré: “Hoje, se realiza essa Palavra que vocês acabam de escutar” (Lc 4, 18).
4. 2 – O rito e o estilo
O rito é o conjunto dos gestos, palavras e sinais com os quais recordamos e expressamos para hoje a ação divina no meio de nós. O estilo é o modo com o qual recordamos e expressamos. O rito contém o esqueleto e o núcleo mais profundo da Liturgia. O estilo significa não apenas o revestimento cultural e momentâneo do rito. É mais do que isso. Seria como se o rito fosse uma família e o estilo fosse a pessoa aqui e agora que pertence a família, traz no sangue e na pele traços fisionômicos comuns, mas é uma pessoa própria e diferente. Assim, há ritos como o ambrosiano, o galicano e o mozárabe que têm elementos próprios, mas são da mesma família do rito romano. Quando no final dos anos 60, Roma permitiu o chamado “rito zairense” se tratava de uma celebração da mesma missa latina no rito romano, mas com vários elementos próprios da cultura e expressão de fé do povo da atual República Democrática do Congo. Queremos mais do que isso.
Rito não se improvisa e, realmente, não há como pensar agora em criar um rito próprio amazonense. Nem seria o caso já que a própria realidade amazonense é múltipla e teríamos de ter um rito para comunidades indígenas, outro para ribeirinhos, outro para cidades, etc. Provavelmente, o que parece mais concreto e urgente é encontrarmos uma forma amazonense – um estilo próprio – para celebrar o rito latino (romano), mas precisamos ter, isso sim, liberdade para buscar, para pesquisar e como o próprio papa tem insistido: coragem para criar.
Pelo momento, imaginamos uma Liturgia comum a todos, a partir da matriz latina, mas com a flexibilidade de incorporar no rito elementos simbólicos e expressões próprias de cada realidade regional ou local. Isso supõe uma cultura teológica suficientemente aberta para compreender que o Espírito de Deus atua nas diversas culturas e nos fala através delas.
Queremos acolher profundamente e integrar em nossa forma de expressar a fé e celebrar o que Deus quer nos revelar e nos dizer através do outro. Foi isso que Paulo se propôs a fazer quando anunciou a fé judaico-cristã às comunidades de cultura greco-romana. Isso lhe dava o direito de afirmar: “Eu me fiz judeu com os judeus e sem lei com os que estavam sem a lei” (1 Cor 9, 20 – 21).
4. 3 – Propostas concretas para um modo de celebrar amazônico
A Revista de Liturgia já dedicou um número ao tema: “Sínodo da Amazônia – novos caminhos” com bons artigos e propostas importantes9.
Aqui ouso continuar essa reflexão, agora tomando como tema a sugestão e a proposta de um rito litúrgico com elementos amazônicos.
Isso nos faria distinguir ao menos três propostas diversas de celebrações:
1 – Celebrações com pequenos grupos específicos como índios da mesma etnia ou ribeirinhos do mesmo local.
2 – Celebrações com uma assembleia mais identificada com a tradição católica comum mas desejosa de celebrar a fé de forma mais ligada à vida e às culturas concretas nas quais a assembleia litúrgica está inserida (Pensemos por exemplo, em celebrações para comunidades religiosas, grupos católicos e missionários na região amazônica).
3 – Celebrações paroquiais e realizadas em Igrejas grandes e assembleias heterogêneas de fieis. Ainda aí, precisamos possibilitar o protagonismo concreto de toda a assembleia a partir de suas realidades. E ligar a liturgia com a vida pede de nós incorporar elementos litúrgicos próprios da Amazônia.
Além do pão e do vinho, como elementos litúrgicos da ceia, as comunidades cristãs do primeiro e talvez mesmo do segundo século, tinham nas liturgias o peixe e em outros lugares leite e mel como símbolos da esperança messiânica. Assim também, precisamos pensar quais alimentos e símbolos amazônicos precisamos incorporar na celebração como sinais de comunhão e sinais da esperança de tempos novos.
Em algumas comunidades de base do Centro-oeste e da Amazônia, as celebrações sempre terminam com bolos de mandioca e café ou sucos. E não se trata apenas de um lanche oferecido depois do encontro ou da celebração. Aqueles alimentos, embora não substituam o pão e o vinho fazem eles também parte da comunhão, como há séculos, em algumas Igrejas orientais há o costume litúrgico de, depois da comunhão eucarística, se distribuir um pão abençoado. Os fieis recebem este pão e podem até levar para casa para partilhar com pessoas queridas que não puderam vir à celebração.
Como na Amazônia valorizar como sacramento da unção dos doentes os tantos rituais de cura e de energização que nos vêm das diversas tradições de tipo xamânico? Do mesmo modo, é preciso ver se é possível valorizar os homens e mulheres de sabedoria e que nas aldeias e malocas já exercem uma função de conselheiros e sábios. Na linha da descentralização dos ministérios, seria possível lhes confiar o ministério da reconciliação e da confirmação do perdão divino.
Mesmo nas celebrações em grandes assembleias e com grande afluência de povo, é possível dar muito mais realce e importância aos ritos de acolhida.
4. 1 – acolhida afetuosa.
A acolhida afetuosa é elemento fundamental para que se crie uma verdadeira assembleia litúrgica, primeiro sinal sacramental da comunhão, seja na celebração eucarística, seja nas celebrações do louvor de Deus e de outros sacramentos (principalmente, Batismo e Matrimônio).
O caráter afetuoso da celebração não é acidental ou facultativo. Só se cria clima de verdadeira celebração se as palavras de saudação forem acompanhadas de gestos nos quais as pessoas se sintam verdadeiramente acolhidas. Que em cada celebração se apresentem ao menos as pessoas que vêm de fora da comunidade ou que celebram ali pela primeira vez.
Há comunidades que nesse momento da acolhida usam símbolos como a água ou um pouco de perfume que as pessoas quando entram na Igreja tocam ou se dão umas às outras...
4. 2 – a escuta da Palavra na Vida e nos acontecimentos.
A memória da vida é um elemento incorporado nas celebrações das comunidades e grupos populares, desde os tempos de redação do ODC. Antes de se escutar a palavra de Deus nas leituras bíblicas, se escuta nos acontecimentos da vida da comunidade, do povo brasileiro ou do mundo.
Há comunidades que fazem isso espontaneamente. Há outras que encarregam irmãos e irmãs de servirem de antenas e terem essa função de recordar alguns acontecimentos, sejam do país e do mundo, sejam da própria comunidade local. Não se trata tanto de comentar, ou de fazer intenções de preces nesse momento e sim de tentar escutar a Palavra de Deus através dos fatos do dia a dia. Há comunidades que concluem esse momento ou mesmo entre as diversas intervenções dos irmãos, cantam um mantra ou refrão de algum cântico que tenha a ver com o que se está falando.
4. 3 – a respeito das leituras
As realidades são muito diversas. O lecionário atual, em geral, bem pensado e bem organizado, supõe frequência da missa dominical (no caso do Lecionário dominical) ou diário (no caso do lecionário semanal).
Para a nossa realidade valeria a pena um lecionário mais simplificado que atendesse a realidade das comunidades do interior que não conseguem se reunir todo domingo ou que celebram uma vez única na semana (por exemplo, na quarta-feira à noite). Nesses casos, seria mais proveitoso que a comunidade escolhesse entre os domingos do mês a leitura que mais está ligada com a vida da comunidade e a mesma coisa para quem celebra uma vez durante a semana. Ter a liberdade de escolher.
Outra questão é se já houve uma escuta da Palavra na vida, há comunidades que preferem mesmo no domingo ficar só com duas leituras e não três e aí escolher com liberdade entre a primeira e a segunda, a que melhor se presta a aquela comunidade.
4. 4 – a veracidade dos sinais sacramentais
Não adianta o esforço de tornar mais verdadeira e mais inserida a celebração se este esforço toca apenas no que se chama “a liturgia da Palavra”. É um escândalo contra a fé e a espiritualidade o que ainda ocorre em algumas assembleias de romarias da terra e celebrações da caminhada nas quais os bispos permitem criatividade e participação comunitária na primeira parte da missa até chegar o momento de preparação das oferendas. A partir dali, nada se pode mexer e o que se tem é o rito clerical e romano de sempre e em um estilo fechado. A ceia de Jesus é o ato no qual ele se entregou a nós do modo que o quarto evangelho expressa: “amou até o fim” (até onde o amor pode ir). É triste ver a ceia do Senhor ser celebrada em meio à arrogância clerical de bispos e padres que nesse momento excluem pastores e pastoras de outras Igrejas e recitam um rito distante e em franca contradição com a festa que se viveu até que se comece o ato propriamente eucarístico.
Como sobre isso, as normas litúrgicas continuam muito rígidas e fechadas, as comunidades têm preferido que, nesses momentos da caminhada se faça um ágape ecumênico e de caráter eucarístico no sentido de ação de graças e comunhão, mas sem a rigidez romana de uma Missa.
Atualmente no Brasil, muitas comunidades no domingo celebram assim. Não se trata somente de uma Liturgia da Palavra, nem do que em alguns ambientes, se costumou chamar de “celebração na ausência do presbítero”. É a celebração dominical da comunidade e com todo o caráter de uma Igreja local que renova a aliança de Deus e celebra o memorial do Senhor. Para essas celebrações, vários formulários de cânticos próprios (louvações) e orações recitadas têm sido propostos. Muitos deles, excelentes, estão à disposição na série de livros publicados por Marcelo Guimarães e Penha Carpanedo: O Dia do Senhor10.
Esse resgate do costume das primeiras comunidades cristãs que celebravam a memória de Jesus e de sua ceia em um ágape fraterno com mais estilo de confraternização e de comunhão é bom. Mas, não substitui a responsabilidade da hierarquia da Igreja de reaproximar a atual forma de celebrar a missa de um rito mais simples, mais fraterno e mais ligado à sacramentalidade de uma refeição. Como dizem os primeiros textos do Novo Testamento: a refeição do Senhor.
Já o Concílio Vaticano II pedia que se cuidasse mais da veracidade dos sinais litúrgicos: que o pão seja pão e pão repartido e o vinho seja considerado elemento essencial da eucaristia partilhado a todos e não somente para mostrar ao povo e o padre ou o clero presente comungar.
Essa veracidade dos sinais litúrgicos já faz uma grande diferença para a inserção da liturgia na realidade da vida dos nossos povos.
5 – Algumas conclusões pobres e provisórias
Talvez alguém se pergunte porque dar tanto destaque à questão celebrativa. De fato, todos sabem o quanto na realidade cultural de nossas comunidades, o culto e os ritos são importantes. Precisamos acreditar que a espiritualidade original e suas expressões podem ser instrumentos de reafirmação da identidade cultural das comunidades e elementos de transformação social e mesmo política. Em um mundo no qual se celebram fóruns sociais, caminhadas e manifestações de multidões nas praças, os ritos de Igreja precisam voltar a ser expressivos e proféticos.
Na década de 90 em São Félix do Araguaia, um grupo de teatro fazia uma peça cujo título era muito sugestivo: Segure o taxo que o fogo vem de baixo. É preciso ter claro isso: não será um Sínodo em Roma que poderá transformar a realidade da Amazônia.
Esperamos profundamente que o Sínodo para a Amazônia aceite a proposta de descentralizar as estruturas de nossa Igreja e não continue a pensar a Igreja a partir do esquema clássico de dioceses, paróquias e capelas do interior. É preciso acreditar em uma Igreja comunhão e eliminar a divisão entre clero e leigo. É claro que isso pede uma transformação profunda de espírito e de compreensão da missão, mas seja como for, podemos propor. Trata-se de um processo.
Agradecemos a Deus termos um papa, pastores e agentes de pastoral que “seguram o taxo”, isso é, dão força e apoiam a caminhada das bases, mas o decisivo será sempre a realidade local e a inserção das Igrejas locais. Ora, algumas dessas estão ainda muito reticentes e distantes de tudo isso. É preciso retomarmos a mística da eclesialidade das pequenas comunidades com sua liberdade e seu direito de viver a fé no reino e o seu caminho próprio.
Isso que aqui está sendo proposto é um primeiro passo de um processo que se realizará à medida que ocorrer o diálogo e a inserção com as culturas e a alma dos povos amazônicos. Esse é um processo lento e dialético no qual, assim como Deus, assim como cada um/uma de nós, também as nossas celebrações se revelam inseridas e mostram com clareza de que lado estão. Aí sim se realizará de novo entre nós o que canta o salmo: “Da boca dos pequeninos e mesmo dos recém-nascidos, tu procuras um louvor capaz de reduzir ao silêncio os teus adversários e inimigos” (Salmo 8, 2).
- Marcelo Barros é monge beneditino e escritor.
1 - PALOSCHI, ROQUE, O Sínodo da Amazônia: grito à consciência, memória da missão, opção pela vida, in Vida Pastoral, maio-junho 2019, ano 60, n. 327, p. 17.
2 - Herético y apóstata. El cardenal Brandmuller excomulga al Sínodo para la Amazonia, Revista IHU, 27/ 06/ 2019.
3 - Ver KOPENAWA, Davi e ALBERT, BRUCE, A queda do céu, , Palavras de um Xamã Yanomami, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2015.
VERÁ, Kaká, O Trovão e o Vento, Um caminho de evolução pelo Xamanismo Tupi-Guarani, São Paulo, Ed. Polar, 2016.
4 - Cf. KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce, A queda do céu, Palavras de um Xamã Yanomami, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2015.
5 - Ver HERNANDEZ, Eleazar Lopez, Teologia india: antologia, Michigan, Ed. Verbo Divino, 2000. Ver também: IRRAZAVAL, Diego, Un Cristianismo Andino, Quito, Ed. Abya Yala, 1999. Também do mesmo autor: Reimplantação teológica da fé indígena, in TOMITA, Luiza, VIGIL, José Maria e BARROS, Marcelo, (organizadores) Pelos muitos caminhos de Deus, Goiás, Ed. Rede 2003, p. 87- 97.
Ver ainda no Brasil: RUFINO, Marcos Pereira. O código da cultura: o CIMI no debate da inculturação. In: MONTERO, Paula (Org.). Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. p. 235-75.
6 - KOPENAWA, DAVI e ALBERT, A queda do céu, Palavras de um Xamã Yanomami, São Paulo, Companhia das Letras, 2015.
7 - ETTY HILLESUM, Diario, (1941- 1942), Milano, Adelphos, 1998, p. 110.
Cf. P.LEBAU, Etty Hillesum, un itinerario espiritual, Sal Terrae, Santander, 2000, p. 110.
8 - MARCELO GRONDIN e MOEMA VIEZZER, O maior genocídio da história da humanidade: mais de 70 milhões de vítimas entre os povos originários das Américas, Toledo, PR, GFM Gráfica e Editora, 2018.
9 - Cf. PENHA CARPANEDO (organizadora), Vários autores, Sínodo da Amazônia, novos caminhos, Revista de Liturgia, vol. 269, setembro-outubro 2018.
10 - Cf. MARCELO GUIMARÃES e PENHA CARPANEDO, Dia do Senhor, Guia para as celebrações das comunidades, Ciclo do Natal ABC, vol I; Ciclo Pascal ABC vol II; Tempo Comum, vol III – ano A, vol IV – ano B, vol V – ano C, São Paulo, Ed. Paulinas e Apostolado Litúrgico, 2002 e 2003.
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