As quatro capas de proteção constitucional do The Intercept: imprensa, expressão, informação e verdade histórica
- Análisis
Não se trata apenas de liberdade de imprensa a dar cobertura constitucional ao trabalho do The Intercept, mas também de liberdade de expressão, do direito à verdade e do direito (de acesso) à informação, quatro capas jurídicas imbricadas que garantem absoluta legalidade e o dever de proteção estatal ao trabalho dos jornalistas liderados por Glenn Greenwald.
As revelações são mais que jornalismo, pois permitem a realização do direito à verdade histórica. Permitem a revelação do que vinha sendo denunciado por juristas em todo o país: a disfuncionalidade de setores do sistema de justiça e o conhecimento de eventuais crimes cometidos por funcionários públicos num trabalho de inestimável valor à sociedade brasileira.
A Constituição de 1988 tem mania de liberdade e repudia a censura prévia. O artigo 5º, dispõe sobre a liberdade de expressão para brasileiros ou estrangeiros residentes no país, assegurando a manifestação e a expressão independentemente de censura ou licença. Apesar do repúdio à censura, a liberdade de expressão não é absoluta. Ao direito correspondem deveres e limites comuns a qualquer liberdade, cujos abusos implicam responsabilização de condutas caluniosas, injuriosas e difamantes. Daí decorre o sentido geral de vedação ao anonimato, como forma de possibilitar a responsabilização das condutas abusivas.
Já a liberdade de imprensa tem finalidade diversa, embora complementar ao caso em tela. Trata das garantias ao exercício profissional na realização do jornalismo como forma de noticiar, denunciar e dar publicidade a fatos visando o direito à informação e o interesse público. Somente a imprensa livre e o respeito à soberania investigativa podem assegurar o bom funcionamento democrático e uma sociedade liberta da censura.
Tanto quanto a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa também usufrui do rol de garantias e limites constitucionais. Ao mesmo tempo, é necessário que a liberdade de imprensa receba um tratamento específico para que seja protegido o correlato interesse público de acesso à informação. É o caso do anonimato que, quando indispensável ao exercício profissional, é flexibilizado para permitir o sigilo da fonte.
Vê-se claramente, portanto, que ambas as categorias de direito envelopam o trabalho dos jornalistas do The Intercept nas revelações sobre a Lava Jato. Tanto a liberdade de imprensa, e o respectivo sigilo da fonte, como a criteriosa curadoria antes de cada revelação, imbricam as duas categorias de direitos fundamentais. Tanto o trabalho de imprensa livre, protegendo a fonte, como a liberdade de expressão e opinião dos jornalistas a respeito dos fatos estão plenamente protegidos pela Constituição, havendo uma indiscutível união de liberdades – expressão e imprensa – atuando lado a lado para garantir um direito maior, o direito da sociedade saber o que realmente está acontecendo nos bastidores da Operação Lava Jato.
A descoberta da verdade como papel da imprensa livre exige, como contrapartida, a proteção do exercício profissional, ou seja, a garantia de que o jornalista poderá falar e escrever livremente, publicar, denunciar, ir e vir sem se sentir ameaçado, sabendo-se protegido pelas leis e pelo Estado no cumprimento de um serviço de interesse público.
A imprensa livre pressupõe o sentido do agir profissional em prol de uma sociedade igualmente livre e democrática, capaz de arbitrar os próprios rumos. E supõe, precipuamente, o engajamento ético com a verdade jornalística, o compromisso de não sonegar informações, de não distorcer, não alterar ou modificar o sentido original, em suma, o compromisso de não deformar ou falsear as informações.
E é aqui que reside o mais importante e estrutural sentido do exercício profissional da liberdade de imprensa, o que lhe serve de alicerce de legitimidade porque responde ao soberano e irrenunciável direito à verdade dos fatos para o bom arbítrio dos rumos de uma sociedade democrática. O site The Intercept, ao receber o material de fonte anônima e tomar a decisão de publicá-lo na integra, guardadas as limitações e cuidados legais, realiza o acesso à informação e o direito à verdade.
Nunca é demais ressalvar que a liberdade de imprensa não se confunde com a liberdade de empresa, o que, não raro, remete ao abuso discursivo das liberdades em proveito dos monopólios midiáticos. Coisa diversa é a liberdade de imprensa, legitimada pelo interesse público, que deve ser preservada inclusive como forma de denunciar os interesses dos grandes grupos e a sonegação da verdade.
Ainda que o direito à verdade não tenha previsão explícita no texto constitucional, a sua fundamentalidade é reconhecida tanto do ponto de vista formal como material, sendo a transparência e a publicidade dos atos do poder público um arrimo do Estado Democrático de Direito. Com o avanço e a consolidação da democracia, a sociedade brasileira têm aprendido a reivindicar o direito de acesso às informações relevantes como forma de exigir, cotidianamente, a transparência na gestão pública.
Por evidente, a ideia de Estado constitucional e democrático é avessa ao segredo. Ainda que o direito à verdade e o acesso à informação encontrem óbices que podem justificar o sigilo individual ou coletivo, o grau de transparência e de acesso às informações públicas são um termómetro de saúde democrática.
Esse é o sentido histórico e de acúmulo constitucional da Lei 12.527 de 2011, a chamada Lei de Acesso à Informação (LAI). A lei, plasmando a ideia do acesso em detrimento do segredo, estabelece mecanismos para que qualquer pessoa possa solicitar informações públicas a órgãos competentes e foi duramente atacada logo no início do governo Bolsonaro. Quando considerada ao lado da liberdade de imprensa, a LAI empresta um sentido público ainda mais denso ao trabalho do The Intercept, já que a legislação estabelece, como objetivo central, que todas as informações produzidas ou sob a guarda do poder público, são informações públicas e, como tal, devem ser acessíveis à cidadania, ressalvadas informações pessoais e hipóteses de sigilo legalmente estabelecidas.
Aqui entra todo o debate a respeito da conduta de procuradores, juízes, policiais federais envolvidos em atos de conluio, seus aparelhos de telefone funcionais, o dever de transparência, o princípio da imparcialidade a as violações ao devido processo legal, todas questões afetas à transparência e à publicidade dos atos do poder público e que superam qualquer dissimulação a respeito de hackers e crimes informáticos.
E por tudo isso que o trabalho de Gleen Greenwald e sua equipe precisa ser defendido. O que eles fazem é mais que jornalismo. Realizam um inestimável trabalho de reconstituição da verdade histórica em tempos bloqueados pelo arbítrio judicial e pelo saudosista das sombras do passado.
- Carol Proner é Doutora em Direito, professora da UFRJ, diretora do Instituo Joaquín Herrera Flores – IJHF
25 de julho de 2019
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