Reforma e capitalização
- Análisis
O regime de capitalização será ou não incluído pelo Senado Federal na reforma da Previdência? Para o Ministro da Economia Paulo Guedes, será sim, conforme ele sempre disse: “preciso de R$ 1 trilhão de potencia fiscal para lançar a capitalização”. Já para integrantes do governo, a inclusão da capitalização na reforma é só uma questão de encontrar uma “janela de oportunidade”.
De início, importante lembrar que “capitalizar” significa “juntar ao capital”, “adicionar ao montante existente”. Nesse sentido, um regime de capitalização para a Previdência adotaria conta individual para cada pessoa, na qual seria depositado dinheiro, e essa poupança própria de cada indivíduo é que garantiria o recebimento no futuro (aposentadorias, pensões e outros benefícios).
O regime previdenciário adotado pelo Brasil e pela maioria dos países é o de repartição ou solidário. Nesse sistema, o dinheiro destinado à manutenção da Previdência vem, linhas gerais, das pessoas físicas e jurídicas que estão em atividade, de algumas já aposentadas e de recursos orçamentários. Nossa Previdência funciona como um sistema social, econômico e produtivo: atende às necessidades básicas das pessoas e irriga a economia produtiva através do dinheiro que chega aos brasileiros e lhes permite consumir bens e serviços que movimentam o comércio, a indústria e o setor de serviços.
O Ministro Paulo Guedes - que sempre revela simpatia com o regime de capitalização adotado pelo Chile em 1981, durante a ditadura militar de Pinochet - não tem levado em consideração, em suas falas, os problemas enfrentados por aquele país como: mais da metade da população chilena não consegue mais se aposentar; os salários não comportam depósitos em conta individual; a difícil sobrevida dos idosos com elevados índices de suicídios nessa faixa etária.
Nesses momentos em que governos propõem mudanças estruturais, acesso a informações e abertura para ouvir, entender e participar são imprescindíveis. Os meios de comunicação não deveriam perder a oportunidade de garantir o contato da população com os temas que envolvem a Previdência, sempre com o máximo de abrangência e garantindo a presença de vozes que possam tirar os jornais e noticiários dessa incômoda posição de serem informes publicitários dessa ou daquela reforma da ocasião, desse lugar inconveniente de encaminhador do discurso único. Quando o tema é importante, não dá mesmo para entrevistas e debates ocorrerem apenas com pessoas que pensam da mesma forma.
E foi em meio a essa superficialidade, desinformação e pressa que foram aprovadas as mudanças orçamentárias, financeiras, trabalhistas e econômicas que hoje dificultam a vida das pessoas, das empresas e do próprio governo. A Emenda à Constituição nº 95 - que limitou ao índice da inflação o orçamento para áreas vitais como saúde, educação e segurança, deixando livre a despesa com juros da dívida e outros mecanismos de entrega de dinheiro aos bancos – já faz diminuir o atendimento e até fechar escolas e hospitais no País, já faz faltar equipamentos para exames, cirurgias e combate a endemias (a dengue cresceu 264% em 2019), medicamentos em falta já tiram a vida de pessoas e a retração na cobertura de vacinas já trouxe de volta doenças que havíamos conseguido erradicar como sarampo, poliomielite, rubéola e difteria.
Com as alterações na legislação trabalhista não foi diferente. Às pressas, dizendo que era para gerar empregos e sem qualquer análise ou debate, aprovaram uma reforma trabalhista e uma lei de ampla terceirização, cujas consequências negativas são suportadas pelos trabalhadores que passaram a contar com menos remuneração e mais insegurança no emprego, o que freou o consumo e esfriou as atividades produtivas comerciais, industriais e de prestação de serviços. Nesse ambiente de contração econômica, faturamentos das empresas caem, arrecadação tributária cai junto e o desemprego só cresce e hoje já atinge elevadíssima taxa de 12%.
Nessa mesma linha de estrangular a circulação econômica com cortes que ferem a população e a economia produtiva, o governo e a mídia tentam nos fazer enxergar que a Previdência resume-se a um gasto odioso, a um mero problema, a um inimigo do Brasil. Para tanto, tentam esconder que a Previdência é o maior mecanismo de manutenção da economia de verdade, um importante sistema que irriga a circulação econômica no País.
E assa importância da Previdência para a vida econômica do Brasil é confirmada pelos próprios dados de 2017 divulgados pela Secretaria de Previdência do Ministério da Economia que revelam que em 73,6% dos Municípios brasileiros (4.100 Municípios) o que chega através da Previdência em valores de aposentadorias, pensões e outros benefícios supera o que chega através do repasse do FPM (Fundo de Participação dos Municípios). A Previdência é parte decisiva da mola propulsora da economia local.
É nesse cenário, que chega ao Senado Federal uma proposta de reforma da Previdência aprovada pela Câmara dos Deputados que, entre inúmeros entraves econômicos e perdas sociais: diminuirá em média 35% o valor das aposentadorias e pensões; dificultará ou impedira que milhões de pessoas consigam se aposentar; retirará R$ 840 bilhões do bolso dos que recebem até 2 salários mínimos; acabará com o abono salarial de milhões de brasileiros; e adiará a aposentadoria dos que poderiam sair para dar lugar aos atuais desempregados.
Com todos esses cortes e freios que serão fortemente suportados pelos que consomem todo o salário que recebem por mês, se aprovada pelo Senado como chegou da Câmara, a reforma da Previdência estrangulará ainda mais a circulação da economia produtiva, por força de mais freio ainda no consumo, o que puxará para baixo, mais uma vez, comerciantes, industriais, prestadores de serviços e a arrecadação tributária que incide sobre essas atividades e serve para manter os serviços públicos essenciais como saúde, educação e segurança. Outro subproduto também desalentador, por conta desses efeitos negativos na economia, será o aumento do desemprego.
Certamente o que não tem sido observado na elaboração dessas mudanças: a) garroteamento orçamentário (EC 95 - teto do gasto), b) redução da massa salarial e da segurança no emprego (reforma trabalhista e lei da ampla terceirização) e c) reforma da Previdência (PEC 06 em tramitação) é o que a Economia chama de “demanda agregada” (total de bens e serviços adquiridos pelas pessoas e pelo próprio Estado) que é uma das formas de se medir o crescimento econômico do País, o comportamento do PIB (Produto Interno Bruto). No Brasil, o consumo das famílias e as compras do governo representam, respectivamente, 65% e 20% dessa “demanda agregada.” E não é por outra razão que todas essas medidas que resultam freio no consumo têm afetado negativamente a economia.
A esse ponto, há uma pergunta que não quer calar: quem tem saído no lucro com essas reformas? A resposta tem aparecido frequentemente nos meios de comunicação, embora que de modo discreto e sem se fazer qualquer relação de causa e efeito. Os bancos. Os bancos têm lucrado e muito, mesmo nesse cenário de crise econômica e recessão. O lucro consolidado dos 4 maiores bancos do País foi de R$ 20,4 bilhões de abril a junho de 2019. É o recorde para um trimestre se comparado a qualquer outro ano. Em 2018, no mesmo trimestre, esse lucro somado foi de R$ 16,3 bilhões. Essa alta, em tempo de crise, é de 21,3%.
E esses lucros dos bancos têm explicação: a) política monetária suicida do Banco Central que, além da enorme entrega dos juros da dívida, remunera com juros o dinheiro dos bancos que fica parado (operações compromissadas que já rendem mais de R$ 1 trilhão aos banqueiros só nos últimos 3 anos), b) juros abusivos cobrados dos quase 64 milhões de brasileiros que estão endividados e se equiparam a verdadeiros escravos financeiros do sistema bancário; c) venda de planos de previdência privada que também vem batendo recordes desde as ameaças que a Previdência Social vem sofrendo a começar pela proposta apresentada na época de Michel Temer no governo.
A crise, que tende a se aprofundar por causa dessas medidas, quanto mais afeta as pessoas, as empresas e os governos municipais, estaduais e federal, mais interessa aos bancos que acumulam lucros de quase R$ 1 trilhão também no crédito consignado nos últimos anos, e, quanto mais aperta o nó para trabalhadores e empresários do setor produtivo, mais os bancos e os que operam a especulação do capital improdutivo e por natureza vadio ganham. Agora em agosto, um dos banqueiros comemorou o lucro recorde trimestral de seu banco, celebrando o sofrimento de 12 milhões de desempregados e de suas famílias, pois atribuiu o fantástico resultado em bilhões de reais no trimestre ao alto desemprego, dizendo, em “economês” (língua que chama desempregado de fator de produção sobrando): “quando tem fator de produção sobrando tanto, significa que podemos crescer sem pressões inflacionárias. Isso deixa a situação macroeconômica do Brasil tão boa quanto nunca vi na minha carreira”.
E o que está bom pode ficar ainda melhor para os bancos caso o Senado inclua na reforma da Previdência o regime de capitalização. É que as reduções no valor dos benefícios previdenciários empurrarão as pessoas para deverem ainda mais aos bancos. Seja por conta das médias salariais para a definição do valor do benefício que passarão a englobar todos os salários sem descontar as 20% menores remunerações, seja por conta dos maiores descontos das contribuições previdenciárias (inclusive dos já aposentados) com alíquotas maiores e extraordinárias, seja pela redução do valor das pensões em cerca de 50% em média.
Diante de tamanho arrocho, as pessoas precisarão ainda mais dos bancos para fechar as contas do mês, e os bancos continuarão a cobrar taxas de 40% ao ano no crédito consignado, 300% ao ano no cartão de crédito e 320% ao ano no cheque especial. Só que contarão com dinheiro ainda mais barato proveniente da própria pessoa encalacrada, pois, no regime de capitalização, a conta da pessoa é remunerada à taxa da poupança que rende em média 5% ao ano. É isso mesmo: você depositará em sua conta individual de regime de capitalização de previdência à taxa de 5% ao ano e pagará juros de até 320% ao ano ao mesmo banco que lucrará em cima do dinheiro que você depositou nele.
Não bastassem os problemas para a economia, a dignidade das pessoas e a geração de empregos que seriam agravados com a aprovação dessa reforma da Previdência, pior ainda caso fosse adotado o regime de capitalização, qualquer mudança no atual regime previdenciário de partição não poderia resultar no fim de seu caráter solidário sem profundos arranhões ao ordenamento jurídico. É que são fundamentos da nossa República, insculpidos logo no art.1º da Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. São objetivos fundamentais de nosso País, estabelecidos logo no art.3º da Constituição, construir uma sociedade solidária e reduzir as desigualdades. No art.6º da mesma Carta Magna, a Previdência Social é um direito social de cada um dos indivíduos brasileiros e o art.60 da Constituição proíbe que seja aprovada emenda tendente a abolir direitos ou garantias individuais.
Nesses tempos de mexidas apressadas e oportunistas nas bases estruturais do Estado brasileiro, todas até aqui com ruins consequências para o povo e o País, é preciso olhar bem para as palavras, pois “reforma” é quando se transforma algo para melhor. Tivemos mesmo foi algumas “DEformas”, pois deformaram, tornaram pior o que foi mudado (EC nº 95 – “teto do gasto” e alterações na legislação trabalhista e de terceirização). Todo cuidado para, no caso da Previdência, mesmo sob o nome de “reforma”, não sobre aos brasileiros uma “demolição”.
- Carlos Cardoso Filho é Vice-Presidente e Diretor Jurídico em exercício da Federação Nacional dos Auditores e Fiscais de Tributos Municipais-FENAFIM, Coordenador-Geral da Associação Pernambucana dos Fiscos Municipais-APEFISCO, Auditor Tributário do Fisco Municipal do Ipojuca-PE, Engenheiro Civil (UNICAP), Bacharel em Direito (UFPE) e Pós-graduado em Direito Administrativo pela (UFPE)
19/08/2019
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