Fórmula da guerra híbrida deu certo, mas novos ventos sopram sobre América Latina
- Análisis
O presidente do Equador, Lenín Moreno, que desde a semana passada colocou o próprio país em convulsão, quando reduziu direitos trabalhistas, retirou os subsídios do petróleo e aumentou o preço dos combustíveis em estratosféricos 123%, acusou o ex-aliado e ex-presidente, Rafael Correa, a quem traiu ao assumir o poder, de estar por trás das manifestações que colocam em risco o seu cargo. Ao mesmo tempo, diz que Nicolás Maduro apoia as “manobras” de Corrêa, num “conluio” para retirá-lo da presidência.
Antes de apontar o dedo, melhor teria sido Moreno dar uma lida no livro de Andrew Koribko, “Guerras Híbridas”, tema do meu primeiro artigo para o 247, em março deste ano. Ou olhar para trás e revisitar as quedas de governo ocorridas desde 2009, na América Latina, quando Manoel Zelaya foi guindado da presidência, num processo pra lá de polêmico. Seu crime: organizar um referendo para saber se a população apoiaria uma mudança na Constituição, que proibia a reeleição, para tentar uma vez mais ser presidente, por voto direto.
Aqui, Fernando Henrique simplesmente mudou a Carta com pleno apoio do Congresso – e fortes acusações sobre compras de votos para a aprovação – e o processo foi encarado com normalidade, pelos mesmos colunistas que atacaram Zelaya e a sociedade em geral.
Coincidentemente a queda do presidente de Honduras, Manoel Zelaya, aconteceu enquanto estava por lá a embaixadora Liliana Ayalde. E daí? Daí que a maneira como se deu a derrubada de Zelaya seguiu à risca a receita asséptica, sem tanques e sem sangue, escolhida pelos EUA, para dominar o governo de países do seu interesse, nos últimos tempos, seguindo a fórmula das guerras híbridas. Os primeiros testes foram feitos no Oriente Médio, com a Primavera Árabe. Em seguida foi a Ucrânia e, por fim, voltaram-se as baterias para a AL.
Não tão coincidentemente assim, estava no Paraguai, na função de embaixadora, a senhora Liliana Ayalde, quando o presidente Fernando Lugo perdeu o poder, num processo de impeachment tão rápido como eficiente. E lá se foi mais um governo de viés progressista, na região, sob o olhar discreto e complacente de Liliana Ayalde. E aqui não se pode, de modo algum, acrescentar o adjetivo: inocente.
Em seguida, cumprida a missão no Paraguai, eis que Liliana surge no Brasil, cinco meses antes do início da Operação Lava-Jato, e em plena descoberta das jazidas de petróleo do pré-sal, quando foi desmascarada, pelo Wikleaks, a espionagem americana sofrida pela presidente Dilma Rousseff. Liliana chegou em junho de 2013, quando a presidenta Dilma já enfrentava o azedume orquestrado pela mídia, contra o seu governo.
A chegada da diplomata, em junho de 2013, era motivada por um clima absolutamente negativo para Dilma Rousseff. Os interesses imperialistas seriam, dentro desse cenário proposto, mudar a regra do Pré-Sal para colocar as mãos na riqueza brasileira. Estranhamente, até a metade daquele ano a popularidade de Dilma ia muito bem, obrigada. Daí por diante uma horda conservadora invadiu as ruas e não saiu mais, até que ela fosse retirada da cadeira. Na vizinhança a direita avançava nos vários postos de presidente à disposição: Iván Duque, na Colômbia; Mauricio Macri na Argentina; Martín Vizcarraa, no Peru, e Lenín Moreno, no Equador.
A inegável participação da influência dos Estados Unidos no golpe de 2016, tem sido apontada pela grande maioria dos especialistas no assunto. Só para destacar, Liliana trabalhou na Usaid durante 24 anos, agência que é apontada como um dos principais braços da CIA. Não por acaso o presidente boliviano Evo Morales chegou a expulsar agentes da Usaid da Bolívia.
Como a roda da história gira, esse quadro começa a mudar. Nos próximos dias a Argentina se livra de Macri, elegendo, ao que tudo indica, a chapa Alberto Fernández e Cristina Kirchnner no próximo dia 27. Evo Morales deve conseguir retornar ao poder, nas próximas eleições, e o Equador, se não derrubar Lenín Moreno no fim da crise que enfrenta, com certeza terá um governo mais próximo às aspirações da população, sem a intromissão americana. O momento é de expectativa: queda ou diálogo? Por enquanto, os cerca de 600 presos, os dois mortos e quase uma centena de feridos no Equador nos deixa ver que a população não sairá das ruas tão cedo. Enquanto isto, no Brasil, aguardamos o ritmo das instituições. Somos comportados e obedientes. Por isto o princípio da guerra híbrida aqui deu tão certo. Mas novos ventos sopram sobre a América Latina.
- Denise Assis é jornalista há quatro décadas, passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada", membro do Jornalistas pela Democracia
9 de outubro de 2019