De Hong Kong ao Chile?
- Análisis
Em meados de outubro de 2019, a mídia chinesa lançou uma ofensiva que promovia a alegação de que as manifestações na Europa e na América do Sul seriam o resultado direto da tolerância ocidental para com as revoltas em Hong Kong. Em um comentário publicado na Beijing News, o ex-diplomata chinês Wang Zhen escreveu: “o impacto desastroso de uma ‘Hong Kong caótica’ começou a influenciar o mundo ocidental’ – isto é, que os manifestantes chilenos e espanhóis estariam se inspirando em Hong Kong. Na mesma linha, um editorial da Global Times acusou os manifestantes de Hong Kong de “exportarem revolução ao mundo”. E prosseguiu dizendo que o “Ocidente está pagando o preço por ter apoiado as revoltas em Hong Kong, o que rapidamente deflagrou irrupções de violência em outras partes do mundo pressagiando os riscos políticos que o Ocidente não dá conta de gerir.” Em um comentário registrado em vídeo, o editor Hu Xijin emenda: “Há muitos problemas no Ocidente e todo tipo de descontentamento subjacente em fermentação. Muito disso eventualmente eclodirá à maneira dos protestos de Hong Kong”, e conclui ominosamente: “A Catatonia é provavelmente apenas o início.”1
Embora seja forçada a ideia de que as manifestações em Barcelona e no Chile estejam se inspirando nas de Hong Kong, é fácil demais afirmar que essas eclosões todas (Hong Kong, Catatonia, Chile, Equador e Líbano, para não falar nos Coletes Amarelos) não podem ser reduzidas a um único denominador comum. Em cada um desses casos, o protesto contra uma lei ou medida particular (alta nos preços de gasolina na França, lei de extradição à China em Hong Kong, aumento no preço do transporte público no Chile, as longas sentenças de prisão para políticos catalães pró-independência em Barcelona…) explodiu em um descontentamento geral que obviamente já se encontrava lá, à espreita, aguardando um gatilho contingente para poder explodir, de modo que até mesmo quando a lei ou medida particular foi revogada, os protestos continuaram.
Dois fatos estranhos inevitavelmente chamam atenção aqui. Primeiro, a China “comunista” discretamente joga com a solidariedade daqueles no poder em todo o mundo contra as populações rebeldes, alertando o Oeste a não subestimar o descontentamento em seus próprios países – como se, por baixo de todas as tensões ideológicas e geopolíticas, eles compartilhassem o mesmo interesse básico em manter o poder… Segundo, o aspecto de “problema no paraíso”: os protestos não estão ocorrendo em países pobres, desolados, mas em países de prosperidade (relativa, ao menos), países que até então eram apresentados como histórias de sucesso (econômico, ao menos). Embora esses protestos indiquem crescentes desigualdades que subjazem a história oficial de sucesso, eles não podem ser reduzidos a questões econômicas: o descontentamento que expressam indica as crescentes expectativas (normativas) de como nossas sociedades deveriam operar, expectativas que também dizem respeito a questões “não-econômicas” tais como liberdades coletivas ou individuais, dignidade e até mesmo uma vida dotada de sentido. Aquilo que até pouco tempo era aceito como normal (um certo grau de pobreza, pleno estado de soberania etc.) passa agora a ser percebido como algo errado a ser combatido.
É por isso que devemos incluir na série de protestos em curso também a nova explosão de movimentos ecológicos e a luta feminista – a verdadeira luta feminista, aquela que envolve milhares de mulheres comuns, e não sua versão estadunidense esterilizada chamada #MeToo. Concentremo-nos em apenas um caso. No México, a mobilização feminista massiva envolve “a conversa sobre vida, vida dignificada e raiva”: “O que a vida significa para nós? Ao que estamos nos referindo quando falamos em colocar a vida no centro da discussão? Para nós, vida não é um abstrato declarativo; falar em vida necessariamente implica falar sobre dignidade e tudo aquilo que possibilita ensejar a dignidade.” Não estamos falando aqui de especulações filosóficas abstratas a respeito do sentido da vida, mas sobre reflexões enraizadas em experiências concretas que provam como vida cotidiana mais corriqueira – coisas como pegar um metrô – estão impregnadas de perigos de violência brutal e humilhação:
“Como pode uma pessoa ter paz de espírito sabendo que no metrô da Cidade do México, uma parte integral do deslocamento urbano municipal, milhares de mulheres foram sequestradas em uma questão de meses e que tudo isso ocorreu em público e à plena luz do dia? E se você não for sequestrada, é preciso considerar ainda alta probabilidade de ser atacada, ou sofrer alguma agressão de algum tipo. É por esse motivo que há vagões exclusivos para mulheres nos trens, e ainda assim há homens que entram nesses espaços.”
O México talvez seja um caso extremo aqui, mas trata-se apenas de uma extrapolação das tendências encontradas em toda parte; vivemos em sociedades em que violência masculina brutal ferve logo abaixo da superfície, e uma coisa é clara: o politicamente correto não é a forma de vencê-lo. O que também faz do México um caso exemplar é a solidariedade secreta entre essa brutalidade masculina persistente e os aparatos estatais que supostamente estariam incumbidos de nos proteger dela: “Há um tipo de formação de uma sociedade violenta sem punição em que o Estado é parte dessa violência. Grande parte dos crimes que foram cometidos nos anos recentes no México tem envolvimento direto do Estado e de seus funcionários ou da polícia. Ou, por meio de juízes ou operadores do sistema de justiça, o Estado garante impunidade generalizada neste país.”2
Essa visão aterrorizante de “impunidade generalizada” é a verdade da nova onda de populismo, e somente uma mobilização popular vasta será forte o suficiente para confrontar essa cumplicidade obscena entre Estado e sociedade civil. É por isso que os protestos em curso expressam o crescente descontentamento que não pode ser canalizado em modos estabelecidos de representação política. Contudo, devemos evitar a todo custo celebrar esses protestos por conta de sua distância em relação à política estabelecida. Há aqui uma difícil tarefa “leninista” diante de nós: como organizar o crescente descontentamento em todas as suas formas, incluindo os protestos ecológicos e feministas, na forma de um movimento coordenado e de larga escala? Se fracassarmos nisso, o que nos aguarda é uma sociedade de estado de exceção e descontentamento civil permanentes.
- Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
* TEXTO ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.
Notas
1 Citado em Ben Westcott, “West is paying the price for supporting Hong Kong riots, Chinese state media says”, CNN, 22 out. 2019.
2 Citado em Tobias Boos, “Graffiti and glitter bombs: Mexico’s movement against rape”, New Frame, 23 out. 2019.
29/10/2019
https://blogdaboitempo.com.br/2019/10/29/zizek-de-hong-kong-ao-chile/
Del mismo autor
- Corrupção para todos! 04/02/2021
- Outro fim do mundo é possível 05/11/2020
- Chile e Bolívia, entre duas normalizações 30/10/2020
- A mensagem de Julian Assange 22/09/2020
- Zizek vê a distopia mais desumana de Elon Musk 18/09/2020
- Play 22/06/2020
- O futuro não seguirá um roteiro já imaginado por Hollywood 23/04/2020
- Trump versus Sanders e a implosão do sistema bipartidário nos EUA 18/02/2020
- Coronavírus, racismo e histeria 06/02/2020
- Por que Corbyn perdeu? Um post mortem sobre as eleições inglesas 17/12/2019