As lições do Chile: Entre a guerra e o direito de viver em paz
O único perigo é que, frente à firmeza popular expressada, as elites busquem a resolução de um governo militar.
- Opinión
O presidente chileno Sebastian Piñera disse em uma entrevista: “nosso país é um verdadeiro oásis, com uma democracia estável.” Dias depois, rodeado de militares, falou de um “inimigo implacável que não respeita ninguém nem nada”, decretou o estado de emergência, o toque de recolher, pôs a segurança pública em Santiago sob controle de um general e jogou três mil militares e cinco mil policiais carabineros nas ruas – ou, como deve ser mais adequado neste caso, no campo de batalha. Piñera foi à guerra, e do inimigo – seu povo – conseguiu 20 baixas, 3300 presos e 1000 feridos.
Mas não bastou; no oásis chileno, iluminado com o fogo de barricadas, figurantes são Davis e Golias que se degladiam com armas uns, com pedras outros, e o herói se ergue no topo de uma estátua em uma praça, levantando ao alto a bandeira do povo Mapuche. As bombas de gás lacrimogênio servem como demoníacas máquinas de fumaça, e a trilha sonora do filme, composta por um cantor morto e cravejado 44 vezes pelas balas da ditadura, há 46 anos, é tocada por uma banda marcial nas ruas, com guitarróns, charangos e kultrúns.
No decurso desta curta guerra, uma semana depois, vendo o “exército inimigo” crescer (a popularidade do presidente caiu a 14%, e o rechaço chegou a 78% – um recorde histórico), depois de 1,2 milhões de pessoas tomarem as ruas de Santiago (cerca de 21% da população da capital), o presidente chileno deu seu passo atrás derradeiro: suspendeu todos os planos de guerra prévios (o toque de recolher e o estado de emergência), tirou o Exército das ruas (até os reservistas haviam sido convocados), demitiu seus ministros e, arqueando a mão de ferro com que liderara a guerra, passou aos planos de paz.
O caso chileno, em especial em comparação ao do Equador – que também viveu uma longa e recente jornada de mobilização – deve ser tomado por nós, como o é por nossos inimigos, como um mapa de estudo. Há lições a serem aprendidas.
As primeiras delas já foram anotadas com o caso do Equador: 1 – A história não é a continuação unilateral das vontades das elites. Ações têm reações.
2 – Se não é por destino, por natureza ou por feitiçaria que as elites estabelecem e mantêm seu domínio, e sim pela força, é igualmente pela força que o povo abre caminho para conquistar qualquer centímetro de terreno na guerra pela vida e destino que se denominou luta de classes.
3 – A reação popular, gerada pela ação fundante das classes dominantes, inevitavelmente gera ainda uma terceira reação – e assim sucessivamente – que normalmente tem por característica principal o barbarismo, a militarização, a violência. A tendência frente à reação popular, os fatos enfim não permitem a ninguém seguir negando, é a exceção aberta e declarada; os coturnos e fuzis, não os sapatos bem lustrados e martelos de madeira.
E podemos enfim passar ao que o Chile demonstrou de excepcional frente ao caso equatoriano:
4 – Apesar do fato dos presidentes de ambos os países terem reagido às manifestações, logo em seu início, com a força, houve uma diferença significativa na estratégia de Piñera e Moreno. A repressão do presidente chileno Sebastián Piñera foi mais dura e rápida; os números de mortos, detidos e feridos, além de superiores aos do Equador, dispararam de maneira muito mais abrupta. Foi no primeiro dia de grandes manifestações que Piñera decretou estado de emergência em Santiago e convocou o general Javier Iturriaga a garantir a segurança pública da cidade (no dia 18). No dia seguinte, decretou o toque de recolher e jogou os militares nas ruas. Piñera também adotou uma postura mais violenta e menos cínica; no dia 20 posou com os militares do país e disse estar em guerra – o que foi contradito pelo general Javier Iturriaga, que declarou que “é um homem feliz” e que “não está em guerra com ninguém” (nos lembrando que a pose de moderação dos milicos frente a presidentes plenamente estúpidos parece ser traço continental, não expressão única do Brasil).
5 – Ao mesmo tempo, no entanto, provavelmente tendo meditado sobre a experiência recente no Equador – onde as manifestações foram esvaziadas após vários dias, quando o presidente Lenín Moreno aceitou negociar com os manifestantes, derrubando somente um dos decretos de uma longa lista de maldades contra o povo equatoriano – Piñera foi mais ágil em voltar atrás. Ele só demorou dois dias (20) para derrubar a decisão de aumentar o preço do metrô, medida que havia servido de fagulha para a rebelião em Santiago. No dia 21, pediu “desculpas”, convocou os partidos para um “acordo social” e anunciou um pacote de medidas, cedendo ainda mais, em que aumentava as pensões e congelava as tarifas de eletricidade. Por fim, após a “Marcha Más Grande“, que levou 1,2 milhões de manifestantes às ruas, depois de ter entregado os anéis (isto é, a reversão do aumento no metrô e as medidas anunciadas no dia 21), entregou alguns dedos, desarmando o aparato militar que havia formado, para não perder a mão por completo.
6 – A postura de Lenín Moreno foi a da decisão, ainda que tenha usado a força de maneira mais tímida do que Piñera (se é que é permitido usar tal adjetivo, em algum contexto, para falar da repressão no Equador). Ele não buscou “o máximo de força, o mais rápido possível, afim de assegurar a paz” – usou-a para derrotar as manifestações pelo cansaço, dizendo reiteradamente que “não negociaria” até que, quando enfim fez-se decidido a negociar, precisou oferecer muito pouco. Não entendeu as manifestações como uma guerra “puramente militar”, mas como um fenômeno político. E manejou-o bem.
Podemos considerar, portanto, que enquanto a estratégia de Lenín Moreno no Equador consistiu em não ceder e manter a repressão, sustentando uma postura cínica e exaurindo os manifestantes até enfim convocar uma reunião e dar-lhes pouco em troca de abandonarem as ruas, a estratégia de Piñera consistiu em usar o máximo da força, o mais rápido possível, com uma postura pública igualmente agressiva, ao mesmo tempo em que se dispunha a ceder e a negociar. É importante que se note as diferenças – sem dúvidas foram notadas por outros presidentes e generais no continente, que, em cenários similares, devem tender à estratégia Morenista ao invés da Piñerista. A primeira sim foi a da decisão, a segunda foi a da hesitação.
7 – Por fim, deve-se tomar em conta as lições daqueles que, no Chile, como nós, são pelo direito de viver em paz. E para tanto basta reiterar a segunda lição anotada: nossas conquistas se darão pela força. Não foi só por sua indecisão que Piñera teve de ceder – mas também pela decisão dos manifestantes, que até agora, apesar da reversão das medidas repressivas, seguem nas ruas, tocando as canções de Victor Jara. O único perigo – notado tanto por Eduardo Artés, do PC(AP), em entrevista à Revista Opera, quanto por Carlos Ruiz, do Frente Amplio, em entrevista ao La Jornada -, é que, frente à firmeza popular expressada no Chile, as elites busquem a resolução de um governo militar. É preciso ter esse cenário em mente, e para ele se preparar. Mas não nos enganemos; se aumentam a aposta, devemos dobrá-la para vencer. A paz é um direito que, necessário sendo, deve ser assegurado pela guerra.
- Pedro Marin é editor-chefe e fundador da Revista Opera. Foi correspondente na Venezuela pela mesma publicação, e articulista e correspondente internacional no Brasil pelo site Global Independent Analytics.
outubro 29, 2019
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