Chile: Entre o fim da Constituição ditatorial e o medo de uma falsa transição
- Opinión
Santiago, Chile.- Foram 27 dias de manifestações consecutivas históricas, em um Chile que diziam que em 30 anos dormia. “O Chile acordou” de outubro e novembro é um movimento que pede uma mudança estrutural do modelo neoliberal implementado na ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) e que mantinha o sistema vigente pelas raízes da própria Constituição, não substituída no retorno à democracia.
Enquanto diariamente os rastros de sangue da dura repressão policial do governo de Sebastián Piñera aumentavam os números de mortos, feridos, presos, torturados, violados sexualmente e nos que ficaram parcial ou completamente cegos pelas armas disparadas contra os rostos dos manifestantes – dados que não têm precedentes na história mundial, foi a estagnação econômica que o momento crítico gerou no país que pressionou o governo a ceder, contrariado, a apresentar uma resposta satisfatória à população, até se chegar a um acordo para uma nova Constituição.
Após uma semana de mobilizações, a primeira reação tardia do mandatário foi de anunciar reformas pontuais. Uma “agenda social” proposta por Sebastián Piñera elencava pequenos estímulos a setores como saúde, aposentadoria e salários que não modificavam a estrutura do problema e, ao contrário, foram interpretados como um financiamento do Estado aos hoje principais detentores de poder no país, os grandes conglomerados econômicos.
O anúncio, no dia 22 de outubro, não calou as vozes das ruas que seguiram mais mobilizadas, a cada dia. Quando os números de mortos chegaram a 15 pessoas confirmadas, 269 feridos com números ainda inconsistentes e mais de 1.800 presos sob suspeita de perseguição policial, sob toque de recolher e Estado de Emergência, o silêncio permaneceu e as novas respostas do governo era a maior repressão nas ruas.
Apesar da retirada do “Estado de Exceção” uma semana depois, a polícia armada e as forças de segurança especial do país mantiveram as violações a direitos humanos. Foi quando a proposta do mandatário avançou para um “possível Congresso Constituinte”, que é a mudança da Carta, mas decidida pelos parlamentares de maioria governista.
Duas cúpulas internacionais que elevavam Piñera a protagonista da região, a APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) e a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas COP-25, tiveram que ser canceladas, e a repercussão mundial alarmou os parceiros investidores, que nestes 30 anos conquistaram significativa representatividade no Produto Interno Bruto nacional graças às privatizações e à abertura econômica, fazendo a Bolsa de Santiago aprofundar perdas.
A capitalização do mercado perdeu mais de US$ 27 milhões de dólares, o pior registro de ações do mundo na tarde desta quinta-feira (14), e as ações chilenas sofreram um colapso de 2,9%, a segunda maior queda desde o colapso social. A Bolsa de Santiago registrava uma queda de 12,5% desde o início dos protestos, além do pior índice da moeda em 17 anos, obrigando o Banco Central a injetar 4 milhões de dólares para frear a depreciação.
Foi nesta semana, a quarta ininterrupta dos protestos, que dois gestos do mandatário foram anunciados: o primeiro, nesta terça-feira (12), horas após a polícia chilena reagir repressivamente com novos feridos e presos, em cenas que foram registradas pelo GGN (veja aqui), o presidente convocava reforço policial nas ruas, com aposentados e policiais afastados. Aos parlamentares, Sebastián Piñera chamava “por paz, justiça e nova Constituição”.
A opção do “Congresso Constituinte” não foi completamente eliminada da mesa do Executivo. Mas atendendo às petições dos milhares nas ruas, os parlamentares começaram a estudar a alteração da Carta Magna da ditadura por uma nova. Com novas mobilizações convocadas para hoje, sendo chamada de a “Maior Marcha do Chile”, como tradicionalmente vêm ocorrendo todas as sextas-feiras, a Câmara decidiu não fechar os trabalhos desta quinta até ter em mãos a proposta de uma saída para a crise.
Uma medida alternativa à Assembleia era a carta principal do governo desde o início desta semana. A proposta significava que se o Chile criasse uma nova Constituição, seria feita pelo Congresso, que hoje detém maioria governista. O rechaço da população impulsionou os parlamentares a oferecerem maiores opções e, na noite desta segunda (11), os deputados da Comissão da Constituição aprovaram, por votação apertada (de 7 votos contra 6), a possibilidade de um plebiscito de entrada, ou seja, que a população decida se quer um processo constituinte, ou não, e como.
Uma longa jornada de negociações nesta quinta atravessou a madrugada até o esperado anúncio histórico, que se deu por volta das 2h30 desta noite. Horas antes, os líderes dos partidos adiantavam que o acordo para uma nova Carta Magna iria incluir um plebiscito para a população decidir entre uma Assembleia Constituinte, eleita completamente pelos cidadãos, ou mista, com a participação do Congresso.
Ao primeiro, os congressistas denominaram Convenção Constituinte, o que mais se assemelharia a uma Assembleia, com algumas regras que favorecem o bloqueio de medidas que não contemplem a adesão de 2/3 dos membros da Constituinte. Mas é a segunda opção que será dada aos chilenos, que possibilita a interferência dos parlamentares, que ainda traz riscos de que a nova Constituição não modifique as estruturas político-sociais tão criticadas atualmente.
O plebiscito tem data marcada para abril de 2020. Nesta primeira consulta popular, duas perguntas serão feitas: 1) Você quer uma nova Constituição? Aprovo ou Nego. 2) Que tipo de órgão deve escrever a nova Constituição? Convenção Mista Constitucional ou Convenção Constitucional.
A Convenção Mista determina 50% de participação de parlamentares e 50% membros eleitos pela população. A Convenção Constitucional é integrada 100% por representantes eleitos. A eleição deste comitê também já tem data marcada para outubro de 2020, juntamente com as eleições regionais e municipais.
A nova Constituição terá ainda uma regra que não foi consenso de todos os partidos políticos. O Partido Comunista, o Partido Progressista, o Humanista e o Regionalista Verde não participaram da reunião dos parlamentares nesta terça, alegando que a negociação era uma estratégia à portas fechadas, que dava as costas aos movimentos sociais. A aliança Frente Ampla, formada por partidos de esquerda, tampouco ficou completamente satisfeita, com alguns membros se somando ao acordo.
A principal crítica é a regra dos 2/3, um pedido que foi exigência do presidente Sebastián Piñera. Ela se aplica da seguinte forma: a Constituição será escrita desde o zero, mas cada trecho incluído deve ser aprovado por 2/3 ou 66% dos membros da Convenção. Caso contrário, simplesmente ficará fora do texto e somente terá a chance de retornar à legislação por meio de projetos de lei no Congresso, que favorecem novamente os governistas.
O risco é que o vazio legal obrigue a retornar trechos que ditavam a Constituição de Pinochet. Essa porcentagem tomou boa parte das discussões na noite de ontem, alguns representantes políticos apelando para diminuir em 3/5 o quórum para a aprovação de trechos na nova Constituição, caso contrário o alto poder de veto da direita dará o controle de representação desse setor nas novas leis do país.
Ao todo, representantes de 10 partidos políticos da esquerda, centro e direita assinaram o histórico acordo que, se por um lado ainda não representa um verdadeiro consenso, a simples vista indica ser o início do fim da Constituição de 1980. Por outro, a mudança de nome de “Assembleia Constituinte” para “Convenção Constituinte” e a memória ainda viva de um arranjo da “Concertación” criada no país para abandonar a tardia ditadura em 1990, que acimentou as estruturas neoliberais criadas naqueles tempos escuros, ainda não tranquilizam totalmente os que lutam há 45 anos por tempos melhores. “Isso não acabou”, dizem.
15/11/2019
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