A Bolívia à beira de um mar – de sangue
- Análisis
Desde o golpe que no domingo dia dez derrubou e exilou o presidente Evo Morales e seu vice, Álvaro García Linera, até o entardecer do domingo seguinte, o número de mortos na Bolívia chegava a 24, e havia ao menos 265 feridos. E sobram indícios de que a violência irá se agravar.
No sábado 16 a autoproclamada presidente interina, Jeanine Áñez, assinou o decreto de número 4078, isentando as Forças Armadas de responsabilidade penal quem participar das ‘operações para o restabelecimento da ordem interna e da estabilidade pública’.
Na sexta, um dia antes do decreto da autoproclamada senhora, em Sacaba, uma cidadezinha no estado de Cochabamba, foram nove mortos e 115 feridos. Cochabamba é o principal bastião político de Evo Morales.
Não por acaso, todas as vítimas são indígenas. E não por acaso, todas foram baleadas no peito, na cabeça ou na nuca.
Antes de Jeanine Áñez liberar as tropas para atirar a esmo, o cenário já era esse. É fácil imaginar o que deverá acontecer daqui para a frente.
No domingo, o ministro de Governo interino, Arturo Murillo – o mesmo que antes de virar ministro foi o senador que, na cerimônia de posse da autoproclamada Jeanine Áñez, ficou soprando ao seu ouvido o que ela devia dizer em seu discurso – anunciou a criação de ‘um aparelho especial na Procuradoria’ para prender parlamentares do MAS, o Movimento ao Socialismo de Evo Morales, envolvidos em ‘atos de subversão e sedição’.
Vale recordar que o MAS mantém ampla maioria no Congresso. Bem: isso de ter dois terços do Congresso era antes.
Agora, não se sabe nem se continuará a haver o mesmo Congresso, quanto mais maioria.
O que importa, em todo caso, é registrar que foi desandada na Bolívia uma perseguição aos aliados do presidente deposto. E com as tropas liberadas para fazer o que bem entenderem contra quem quiserem, o golpe vitorioso impôs um virtual estado de sítio na Bolívia.
O que o governo autoproclamado da senhora autoproclamada e do ministro que ela nomeou tentam, na verdade, é dar um verniz institucional a um golpe de estado no estilo mais clássico e característico do mais instável dos países americanos, a mesma Bolívia que por um breve hiato de treze anos na sua história teve um governo, o único, que conseguiu mudar o cotidiano da imensa maioria da sua população de abandonados.
Os escassos, escassíssimos anteriores que tentaram essa mudança duraram pouquíssimo, e o que conseguiram foi nada ou quase.
Há, porém, um dato que, mais que preocupante, é alarmante no cenário boliviano: quase todas as estradas do interior do país estão bloqueadas por partidários de Evo Morales. Pelas principais e mais importantes não passa ninguém. E além disso, há grandes concentrações populares protestando contra o golpe pelo país afora.
Em La Paz, a capital, falta comida. Carne e frango, por exemplo, passaram a chegar de Santa Cruz de la Sierra, epicentro do reacionarismo, do racismo e do golpe, por uma ponte aérea.
Já gasolina e gás, não tem como. A gasolina está a uma gota de acabar, e o gás está reservado apenas para as residências: nada de comércio ou indústria, nada para as instalações do governo.
Na noite de domingo, dia 17, o governo autoproclamado anunciou que tentava estabelecer negociações com os partidários do presidente deposto. E reiterava que buscaria ‘todos os meios e todas as vias’ para que a normalidade volte ao país.
Entenda-se: ou se desmobilizam por bem, ou a truculência se multiplicará até que tudo acabe.
Ao mesmo tempo, grupos indígenas de Cochabamba davam à presidente autonomeada um prazo de 48 horas para convocar eleições e voltar à sua insignificância de sempre.
Em El Alto, cidade vizinha a La Paz, uma assembleia de moradores aprovou a imposição de um cerco à capital a partir da segunda, dia 18, para também exigir a renúncia de Jeanine Áñez e a convocação de eleições.
Há uma triste certeza pairando sobre a Bolívia: até que se chegue a alguma normalidade, haverá muita tensão, muita violência, muito horror.
E essa normalidade que virá também será pior, muito pior, que o que se viveu ao longo dos anos de Evo presidente.
Para um país que vive há séculos a amarga tradição do sofrimento enfrentado pela imensa maioria de seu povo, nada mais cruel que saber que dias piores virão. Nada mais desumano, nada mais perverso.
- Eric Nepomuceno é jornalista e escritor. Para o Jornalistas pela Democracia
17 de novembro de 2019
https://www.brasil247.com/blog/a-bolivia-a-beira-de-um-mar-de-sangue
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