Coronavírus, racismo e histeria

06/02/2020
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Epidemia é comparativamente branda: nos EUA, 8,2 mil já morreram de gripe, neste inverno. Mas sua imensa repercussão remete a distopias tecnológicas, cidades convertidas em desertos e desejos secretos de segregar os diferentes.

 

Muito de nós, inclusive eu, secretamente adorariam estar na cidade chinesa de Wuhan neste exato momento, vivenciando um cenário real de filme pós-apocalíptico. As ruas desertas da cidade nos remetem à imagem de um mundo não-consumista, em paz consigo mesmo.

 

O coronavírus está em todas as manchetes e eu nem ousaria me considerar um especialista em medicina, mas gostaria de levantar uma questão: onde terminam os fatos e onde começa a ideologia?

 

O primeiro enigma óbvio é: com tantas epidemias piores acontecendo no mundo, por que essa obsessão somente com ela, enquanto milhares de pessoas morrem diariamente de outras doenças infecciosas?

 

É claro que a pandemia de gripe de 1918-1920, conhecida como gripe espanhola, foi um caso extremo — quando o número de mortos chegou a pelo menos 50 milhões. Nos tempos atuais, a gripe já infectou, somente neste inverno, 15 milhões de norte-americanos: pelo menos 140 mil pessoas foram hospitalizadas e mais de 8.200 morreram.

 

Parece, portanto, que há uma paranoia racista presente aqui. Lembre-se daquelas fantasias sobre as mulheres de Wuhan esfolarem cobras vivas e tomarem sopa de morcego. Enquanto isso, na realidade, uma grande cidade chinesa deve ser um dos lugares mais seguros no mundo.

 

Mas há um paradoxo ainda maior em jogo: quanto mais conectado nosso mundo, maiores as chances de um desastre local desatar o pavor global — e até uma catástrofe.

 

Na primavera de 2010, uma nuvem gerada por uma pequena erupção vulcânica na Islândia provocou a paralisação de quase todo o tráfego aéreo da Europa — nos fazendo lembrar que, apesar de nossa grande capacidade para transformar a natureza, a humanidade nada mais é do que outra espécie viva do planeta Terra.

 

O terrível impacto socioeconômico de um pequeno evento como esse deve-se ao nosso desenvolvimento tecnológico (no caso, às viagens aéreas). Um século atrás, uma erupção dessas teria passado completamente despercebida.

 

O desenvolvimento tecnológico nos tornou mais independentes da natureza, porém, simultaneamente, num outro nível, mais dependentes de seus caprichos. O mesmo se aplica à disseminação do coronavírus: se tivesse acontecido antes das reformas de Deng Xiaoping, é provável que nem tivéssemos ouvido falar nele.

 

Recolhendo cacos

 

Então, como combater o vírus se ele se dissemina e multiplica como se fosse uma estranha forma invisível de vida parasitária e seu mecanismo permanece praticamente desconhecido? É exatamente essa lacuna do conhecimento que gera o pânico. E se o vírus sofrer uma mutação imprevisível e desencadear uma verdadeira catástrofe global?

 

Essa é minha paranoia pessoal: será que as autoridades estão em pânico porque sabem (ou, pelo menos, suspeitam) algo sobre possíveis mutações que não querem trazer à luz, a fim de evitar confusão e inquietação públicas? Porque, até agora, os efeitos reais têm sido bastante modestos. Mas temos uma certeza: isolamento e novas quarentenas não vão dar conta.

 

Precisamos de solidariedade total e incondicional, além de uma resposta coordenada globalmente. Um novo formato do que antigamente chamávamos de comunismo. Se não dirigirmos nossos esforços nessa direção, a Wuhan de hoje pode ser a imagem de nossas cidades no futuro.

 

Muitas distopias já imaginavam um destino desse tipo. A maior parte do tempo ficamos em casa, trabalhamos desde nossos computadores, nos comunicamos por meio de videoconferências, nos exercitamos num aparelho no cantinho do escritório de casa, de vez em quando nos masturbamos assistindo vídeos de sexo explícito, e pedimos comida por aplicativos.

 

Férias em Wuhan

 

Há, no entanto, uma perspectiva emancipatória inesperada escondida nessa visão de pesadelo. Preciso admitir que, nos últimos dias, tenho me visto sonhando com a possibilidade de visitar Wuhan.

 

Ruas de megalópoles semi-abandonadas não nos transmitem a imagem de um mundo sem consumismo, em paz consigo mesmo? Centros urbanos geralmente movimentados parecendo cidades fantasma, lojas de portas abertas e vazias de clientes, somente algum caminhante ou carro por aí, indivíduos com máscaras brancas.

 

A beleza melancólica das avenidas vazias em Shanghai ou Hong Kong me recorda alguns dos filmes pós-apocalípticos antigos, como A Hora Final [de Stanley Kramer, 1959], onde se mostra uma cidade cuja população foi quase toda dizimada — sem nenhuma grande destruição; simplesmente, o mundo lá fora já não está mais à mão para nós, esperando por nós ou olhando para nós. 

 

Até as máscaras brancas na face das poucas pessoas que circulam por aí oferecem um anonimato muito bem vindo, uma libertação da pressão social pelo reconhecimento.

 

Muitos devem se lembrar do famoso epílogo do Manifesto Internacional Situacionista de 1966: “Vivre sans temps mort, jouir sans entraves” — viver sem tempo morto, curtir sem empecilhos.

 

Se Freud e Lacan nos ensinaram algo, é que essa fórmula é a receita para o desastre — o caso de uma liminar do superego levada ao extremo, pois, como Lacan demonstrou muito bem, o superego nada mais é do que uma liminar positiva a ser desfrutada e não um ato negativo de proibição. O desejo de preencher com intenso envolvimento todos os momentos do tempo que temos, inevitavelmente, nos leva a uma monotonia sufocante.

 

O tempo morto — aqueles momentos de retiro, que os antigos místicos chamavam de Gelassenheit, libertação — são essenciais para revitalizar a nossa experiência de vida. E, talvez, a gente possa esperar que, como consequência involuntária das quarentenas de coronavírus nas cidades chinesas, algumas pessoas passem a usar seu tempo morto para se libertar de atividades agitadas e pensar na falta de sentido de sua situação.

 

Tenho plena consciência do perigo que enfrento ao tornar públicos esses meus pensamentos: não estaria eu me envolvendo em uma nova forma de atribuir ao sofrimento das vítimas uma visão mais profunda e autêntica, desde minha posição externa segura e, assim, legitimando cinicamente o sofrimento deles?

 

Racismo a meia voz

 

Quando um cidadão de Wuhan, mascarado, sai à procura de remédios ou comida, definitivamente não são pensamentos de anti-consumismo que ocupam sua mente: apenas pânico, raiva e medo. Meu argumento é que mesmo acontecimentos horríveis podem ter consequências positivas imprevisíveis.

 

Carlo Ginzburg propôs a noção de que ter vergonha do próprio país, em vez de amá-lo, deve ser o sinal mais verdadeiro de pertencermos a ele.

 

Talvez alguns israelenses reúnam a coragem de sentir vergonha com relação à política de Netanyahu e Trump, feita em seu nome — evidentemente, não no sentido de terem vergonha por serem judeus. Pelo contrário, sentir vergonha do que as ações da Cisjordânia estão fazendo com o mais precioso legado do próprio judaísmo.

 

Talvez alguns britânicos também possam ser suficientemente honestos para sentir vergonha do sonho ideológico que os levou ao Brexit. Mas, para o pessoal de Wuhan, agora não é hora para sentir vergonha, nem para ser estigmatizados: é o momento de reunir coragem e persistir pacientemente em sua luta.

 

Se há pessoas na China que tentaram minimizar a epidemia, do mesmo modo como os funcionários de Chernobyl declararam publicamente a ausência de perigo, enquanto evacuavam as suas próprias famílias, essas sim deveriam sentir vergonha. Assim como aqueles diretores executivos que negam a existência do aquecimento global, enquanto compram suas casas de refúgio na Nova Zelândia ou mandam construir bunkers de sobrevivência nas Montanhas Rochosas.

 

Talvez a indignação pública contra esse comportamento de duas caras (e que já vem pressionando as autoridades a demonstrarem transparência) dê origem a um desenvolvimento político novo, positivo e inesperado na China.

 

Mas quem realmente deveria se envergonhar são todos aqueles que, ao redor do mundo, estão mais ocupados pensando em como colocar os chineses em quarentena.

 

(Tradução de Simone Paz Hernández)

 

 

https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/zizek-coronavirus-racismo-e-histeria/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/204605
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