O Corona e a ordem

23/03/2020
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Hoje pela noite, durante o jantar, conversava com meu pai acerca da situação peculiar que estamos vivendo. Os números são desoladores e a incerteza sobre o que está por vir, ou melhor, sobre a intensidade do que nos aguarda é brutal. No meio do diálogo, meu pai solta a seguinte máxima: “é o fim do mundo”.

 

Estanquei por um segundo.

 

O mundo não parece estar chegando ao fim, ou melhor, a pandemia não parece ameaçar a integridade física do planeta, que vai muito bem, obrigado. Mas estruturas significativas de nossa então-conhecida ordem estão em alta visibilidade, prontos para serem questionados. É fato que pós-corona o mundo será outro, resta saber se com maior efeito civilizatório ou ainda mais degradado.

 

Até agora vimos a sensibilidade de todo o nosso sistema de acumulação selvagem e como a máquina pública opera quase que unicamente para a manutenção dos interesses do grande capital e de suas grandes fortuna, resgatando a grandes empresas, queimando reservas e tentando, mais uma vez, colocar o pagamento da crise no lombo da classe trabalhadora, com arrocho, redução de salários.

 

Fazem isso sem perceber que em grande parte a crise advém também da força impiedosa da especulação e da sujeição à lógica perversa das bolsas, que detém muito mais poder que o Estado nacional, depreciando a todos países em suas adversidades.

 

É um momento mundial de grandes reflexões: na total ausência de pagamentos, e segurança num mundo em que a prevalência é da informalidade e terceirizações desde o advento do Toyotismo, qual será o destino das pessoas que não possuem direitos assegurados? Qual será a estratégia para conter que essas pessoas morram de inanição? Como será tratado o Direito à cidade? O direito à propriedade será mais relevante do que a subsistência, ou será que já chegou na hora de revermos como o aluguel e demais contas para existência na cidade incidem pesadamente sobre o trabalhador, em especial no Brasil em que a maior parte de seus trabalhadores vivem com salários de até meio salário-mínimo?

 

Foi necessária uma crise de saúde de escala global para que nos voltássemos a temas básicos, como a constatação do óbvio ululante de que há sim conflitos de classe, de que o proletariado / classe trabalhadora é fundamental à geração de valor (sim, tio Marx estava certo, a classe trabalhadora tudo produz) e sobre a percepção dos efeitos de estranhamento e alienação que o dinheiro tem sobre a vida humana.

 

Foi necessário que uma crise assolasse ao mundo para que percebêssemos o fundo libertador e necessário que uma renda básica para a universalidade tem para a totalidade, na garantia da possibilidade de alimentação, transporte e demais necessidades elementares humanas.

 

Não obstante a isso, vimos como o discurso neoliberal sobre o Estado ser mínimo, inclusive na área de saúde, é fraco, ineficiente e tosco. Somente um sistema capaz de atender a totalidade, que contemple ao pobre ou ao rico, com suas limitações, mas sem que o lado mais fraco corra o risco de não poder arcar, é que tem um poder efetivo a qualquer sociedade.

 

As imagens que vemos da Itália são amedrontadoras, um país profundamente religioso, na impossibilidade de enterrar seus mortos pois excedem o limite suportado. Corpos acumulados em caixões nos cemitérios e nas igrejas remontam a qualquer tipo de ficção de Albert Camus (“A Peste”), ou de Margaret Atwood (“Oryx & Crake”), realidade e arte se mesclam, ou se confundem, em uma devastadora pandemia.

 

Essa crise não representa o fim do mundo, mas um importantíssimo ponto de inflexão à frágil e medíocre estabilidade daquele troço desumanizador que entendemos como ordem vigente.

 

Em meio à quarentena, Bauman nunca foi tão atual, vemos a clareza a liquidez de nossos relacionamentos e de nossa postura ante a modernidade, quantos relacionamentos durarão esse período de restrição de mobilidade? Quantos pais e filhos perceberão a superficialidade de suas convivências? Quantas noções de respeito e etiqueta serão notadas como rasas e superficiais?

 

Não é possível mensurar ainda o que virá após, ficamos com os encorajadores exemplos de alguns países que já passaram das fases mais agudas desta pandemia e que agora devem se recompor e decidir como moldarão suas novas formas de relação.

 

Neste meio tempo, enquanto seguimos aquartelados, só me resta a concordar com meu pai e com sua sabedoria, vivemos o fim do mundo, resta saber de qual.

 

- Davi Spilleir é Mestre em Sustentabilidade, pesquisador de Economia Solidária pelo CIRIEC e pela ABPES

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/205403?language=es

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