China: as lições da pandemia e o depois

01/04/2020
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Ainda é cedo para mensurar o impacto que a pandemia do vírus Covid-19 causará em todo o globo. Em termos de saúde pública e da vida de milhões de pessoas, os impactos já são evidentes, com a expansão do contágio alcançando diversos países e o número de mortes aumentando[i].

 

Com relação aos impactos econômicos, estes são mais difíceis de mensurar no presente momento. Ainda assim, levando em conta o ponto de onde partimos, o futuro é bastante desanimador.

 

Mesmo após mais de dez anos desde a crise de 2008, as taxas de crescimento econômico mundiais não tinham se recuperado completamente. O baixo crescimento suscitava debates acerca de uma possível “estagnação secular”[ii] e de características do capitalismo contemporâneo que acabavam por adiar a solução da crise, como “a inflação; […] o endividamento do Estado; […] a expansão dos mercados de crédito privados; e […] a compra de dívidas de Estados e de bancos pelos bancos centrais”[iii]. Alguns alertavam para a existência de uma crise de superacumulação, marcada pela contínua expansão dos instrumentos de acumulação financeira[iv].

 

Diante da crise, a insistência dos governos de diversos países na adoção de políticas de austeridade, já nos colocava em uma situação de baixo crescimento, concentração de renda e baixos níveis salariais.

 

O cenário de crise manifestava-se também no acirramento das disputas interestatais, através da postura nacionalista de governos (como o caso da Inglaterra com o Brexit), das tensões entre EUA e Irã, além da contínua guerra comercial entre Estados Unidos e China.

 

Diante desse cenário, a pandemia do Covid-19 pode provocar uma crise profunda na economia mundial, com consequências sociais difíceis de prever. No centro desse complexo debate sobre as consequências da pandemia, me parecem fundamentais dois aspectos, diferentes mas ligados entre si: primeiro a discussão sobre o papel do Estado e as controvérsias do modelo neoliberal; segundo, a forma como a China vem lidando com a pandemia e sua estratégia global. Falarei aqui sobre o segundo aspecto, na tentativa de ajudar no debate sobre o primeiro.

 

A China foi o primeiro país a registrar o contágio do Covid-19. Em novembro de 2019 ocorreu o primeiro caso[v] em Wuhan, província de Hubei. Até 15 de dezembro, o número total de infecções era 27 e até 20 de dezembro já havia 60 infectados. Em 30 de março a China registrou 81.470 casos e 3.304 mortes.

 

Uma série de controvérsias apresentou-se, a partir do surgimento do vírus na China, entre elas: o episódio em que o governo chinês teria controlado informações sobre o vírus, silenciando a denúncia feita pelo médico Li Wenliang, que depois acabaria falecendo pelo Covid-19; e a campanha realizada pela mídia ocidental acusando a China de ser responsável pela pandemia global, ressoando em um ataque de xenofobia e racismo, com a divulgação de vídeos e acusações sobre hábitos alimentares e sanitários chineses[vi].

 

Após o surto inicial e as controvérsias sobre a origem da crise, a China começa um programa amplo de contensão da pandemia. Segundo o Relatório da Missão Conjunta OMS-China sobre Doença de Coronavírus 2019 (COVID-19)[vii] “diante de um vírus anteriormente desconhecido, a China lançou talvez o esforço mais ambicioso, ágil e agressivo de contenção de doenças na história”.

 

Quais foram estas medidas? Como elas podem ser entendidas dentro do modelo de Estado e economia da China?

 

Segundo Relatório da Missão Conjunta OMS-China, após a detecção de um conjunto de casos de pneumonia de etiologia desconhecida em Wuhan, o Partido Comunista da China (PCC), Comitê Central e o Conselho de Estado lançaram a resposta nacional de emergência. A partir daí foram criados dois grupos para coordenar os esforços de controle do vírus. Seus nomes, em inglês, são: “Central Leadership Group for Epidemic Response” [Grupo de Liderança Central para Resposta à Epidemia] e “Joint Prevention and Control Mechanism” [Mecanismo Conjunto de Prevenção e Controle].

 

As medidas de prevenção e controle foram implementadas rapidamente, desde os estágios iniciais em Wuhan e outras áreas-chave de Hubei até o plano nacional. As medidas adotadas podem ser divididas em três fases:

 

Na primeira fase, de início do surto, a principal estratégia esteve focada na prevenção da exportação de casos de Wuhan e outras áreas prioritárias da província de Hubei. O mecanismo de resposta foi iniciado com envolvimento multissetorial em medidas conjuntas de prevenção e controle. Mercados foram fechados e esforços feitos para identificar a fonte zoonótica. A formação epidêmica foi notificada à OMS em 3 de janeiro e sequências genômicas inteiras do COVID-19 foram compartilhadas com a OMS em 10 de janeiro. A partir daí, protocolos para diagnóstico de COVID-19 e para tratamento foram formulados, além do gerenciamento de contatos próximos de pessoas contaminadas e aplicação de testes laboratoriais. 

 

Na segunda etapa, durante a segunda fase do surto, a principal estratégia foi reduzir a intensidade de epidemia e retardar o aumento de casos. Em Wuhan e outras áreas prioritárias da província de Hubei, o foco era o tratamento ativo de pacientes, a redução de mortes e a prevenção de exportações. Em outras províncias, o foco estava na prevenção de importações, restringindo a propagação da doença e implementação de medidas conjuntas de prevenção e controle. Nacionalmente, os mercados de animais silvestres foram fechados e as instalações de criação de animais em cativeiro, isoladas. Em 23 de janeiro, estritas restrições de tráfego e um cordão sanitário foram estabelecidos em torno de Wuhan e municípios vizinhos, impedindo efetivamente que pessoas infectadas se movessem para o resto do país. Restrições de viagens foram impostas em 14 cidades próximas a Wuhan na província de Hubei[viii].

 

Nessa fase o protocolo para diagnóstico, tratamento e prevenção e controle de epidemias foram aprimorados; o isolamento e o tratamento dos casos foram reforçados. Foram tomadas medidas para garantir que todos os casos fossem tratados e contatos próximos fossem isolados e colocados sob observação médica. Segundo a OMS, a China tem uma política de identificação meticulosa de casos e contatos para o COVID-19. Em Wuhan, cerca de 1800 equipes de epidemiologistas, com um mínimo de 5 pessoas por equipe, rastreavam dezenas de milhares de contatos por dia.

 

Além das medidas de controle de tráfego e controle da capacidade de transporte para reduzir o movimento de pessoas, informações sobre a epidemia e medidas de prevenção e controle foram divulgadas regularmente. A alocação de suprimentos médicos foi coordenada e novos hospitais foram construídos, como o Hospital Huoshenshan. Camas de reserva foram usadas e instalações foram redirecionadas para garantir que todos os casos pudessem ser tratados, além de esforços para manter um fornecimento estável de mercadorias e seus preços para garantir o bom funcionamento da sociedade. (Report of the WHO-China Joint Mission on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), 2020).

 

A terceira etapa do surto procurou controlar a epidemia mediante o controle e prevenção. O foco foi no tratamento dos pacientes e na interrupção da transmissão, com ênfase em medidas para implementar plenamente o teste e prevenção de disseminação em lugares públicos. Para isso novas tecnologias foram aplicadas, como o uso de big data e inteligência artificial (IA) para fortalecer o rastreamento de contatos e o gerenciamento de populações prioritárias.  Políticas de expansão dos seguros de saúde foram promulgadas, com pagamentos de seguros e liquidação e compensação financeira.

 

Em março, a curva de contágio na China começa a se estabilizar. Em 7/3, não foram registrados novos casos na China. Casos novos surgem, mas importados de fora, fazendo o país reforçar o controle da entrada de estrangeiros. O número de mortes pelo contágio caiu; em 28/3, registraram-se apenas 5 mortes no país. 

 

Como foi possível esta resposta chinesa e o sucesso em termos de redução do contágio?

 

A discussão sobre as medidas adotadas pela China certamente ainda deverá ser aprofundada. Para iniciar esse debate parece fundamental apontar um aspecto essencial, qual seja, a capacidade do Estado chinês em responder ao desafio da pandemia. A trajetória chinesa das últimas décadas esteve amplamente ligada “à flexibilidade adaptativa diante das recorrentes transformações da conjuntura global – como num constante esforço de “gestão planejada do imprevisível”[ix]. Nesse sentido, assim como em diversos momentos de sua trajetória, a China procurou adaptar-se aos desafios, a partir da capacidade de planejamento estatal, que sempre esteve no centro de sua trajetória, mesmo após a abertura econômica dos anos 80.

 

Assim, ainda que convivendo com uma série de contradições (como a desigualdade de renda entre a população, a degradação ambiental, a ascensão de uma burguesia cada vez mais forte) diante da pandemia, a capacidade de planejamento do Estado e o controle da gestão de sua economia, inclusive em termos fiscais, certamente foram essenciais para responder aos desafios de expansão do atendimento aos pacientes infectados, disponibilização de testes, criação de novos postos de saúde, ampliação dos investimentos em infraestrutura como construção de hospitais, além da ação coordenada de gestão da crise, como o controle da mobilidade de pessoas e tráfego.

 

Valer ressaltar um aspecto importante nessa discussão: a atual estrutura do sistema de saúde na China. O país enfrentou um desmonte considerável no sistema de saúde que vigorou durante o período socialista, sob Mao Tsé-Tung[x]. A partir das reformas de Deng Xiaoping, no final dos anos 70, diversos direitos sociais foram atingidos, inclusive a oferta de saúde púbica. O descuido com a saúde pública ficou evidente com a epidemia de SARS em 2003, quando a China enfrentou o desafio semelhante à pandemia atual.

 

Mas a epidemia de SARS marcou um ponto de inflexão da política governamental chinesa ligada a saúde, e desde então o governo vem procurando ampliar o sistema de saúde, na esteira da construção da chamada “sociedade harmoniosa” empreendida pelo então presidente Hu Jintao. Ainda que não tenha um sistema universal de saúde, e seu modelo seja baseado em seguros de saúde, a cobertura foi sendo ampliada ao longo dos anos 2000, de forma a atender a maioria da população. Hoje existem três principais seguros sociais de saúde vigentes na China, que cobrem quase a totalidade da população. Seus nomes em inglês são Urban Employee Basic Medical Insurance (UEBMI), para trabalhadores formais urbanos, o New Rural Cooperative Medical Scheme (NRCMS), (para  residentes rurais), e o Urban Resident Basic Medical Insurance (URBMI), (para trabalhadores não formais). O sistema tem muitos problemas do ponto de vista de não corresponder a um sistema universal e até mesmo reforçar a desigualdade, mas houve uma melhora importante no fornecimento de saúde na China, o que também deve ser considerado quando se pensa em como o Estado chinês conseguiu responder a epidemia do Covid-19.

 

Apesar da bem sucedida resposta da China à epidemia, não se conhecem ainda os impactos da crise. Em 2019 o país já vinha apresentando taxas de crescimento menores. Os primeiros dados após a pandemia mostram um cenário bastante complicado. Houve uma queda dos lucros industriais de 38,3% nos dois primeiros meses de 2020. O investimento concluído por empresas estatais caiu 23,1% em fevereiro. A taxa de crescimento acumulado do valor agregado da indústria caiu 13,5%. A taxa de desemprego urbano aumentou de 5,3% em janeiro para 6,2% em fevereiro[xi].

 

Nos anos mais recentes, a taxa de crescimento menor da economia chinesa refletia, para além dos efeitos da crise de 2008, uma mudança do perfil do crescimento.  Apesar do Investimento permanecer sempre alto como proporção do PIB, observa-se uma maior convergência, principalmente desde 2010, entre as taxas de expansão do PIB, do investimento e do consumo das famílias, o que sinaliza para o fato de que o consumo das famílias começava a avançar em paralelo ao investimento. Ou seja, a China estaria tentando adequar seu crescimento a partir do fortalecimento do mercado interno, aliado à modernização da indústria via programas como o China Manufacturing 2025.

 

Nesse sentido, é possível que a China enfrente uma queda brusca de sua economia, mas o futuro dependerá de como ela responderá à própria crise, em termos de ações estatais, políticas de manutenção investimento, do emprego e do mercado interno. Essa resposta será fundamental não apenas para a dinâmica do crescimento chinês, mas de todo o mundo, além dos impactos em termos políticos, na medida em que diante da crise a resposta neoliberal de países ocidentais tende a ser desastrosa.

 

Finalmente outro aspecto fundamental com relação a China e a pandemia diz respeito a sua projeção global.

 

Até o momento, os Estados Unidos têm fracassado na resposta global à crise[xii], com relação a capacidade de fornecer bens públicos globais e à vontade de coordenar uma resposta global. A pandemia estaria assim testando os elementos da liderança dos EUA. Até agora Washington estaria falhando e ao mesmo tempo estaria se abrindo uma espécie de vácuo global.

 

Por outro lado, a China está se movendo, aproveitando esse vácuo e buscando posicionar-se como líder global em resposta a pandemia.

 

A China vem fortalecendo a narrativa de que está disposta a ajudar o mundo a combater a pandemia. Nas últimas semanas, o governo chinês forneceu assistência material a diversos países, incluindo máscaras, roupas de proteção, kits para testes, respiradores, ventiladores e medicamentos enviados a países como Sérvia, Libéria, Filipinas, Paquistão, República Checa, Itália, Espanha, Irã, Egito, Iraque, Malásia, Camboja, Sri Lanka[xiii]. Empresas chinesas como Alibaba, prometeram enviar grandes quantidades de kits de teste e máscaras para os Estados Unidos, além de 20 mil kits de teste e 100 mil máscaras para cada um dos 54 países da África[xiv].

 

Apesar da postura mais assertiva da China, ainda é cedo para afirmar algo no sentido de uma ruptura hegemônica norte-americana. A capacidade dos Estados Unidos de enfrentar os impactos da pandemia internamente será crucial para manter sua posição global, mesmo sem apresentar uma solução global, uma vez que sua força está assentada em aspectos estruturais, sejam eles militares ou monetários.

 

Ainda assim, o sucesso da resposta da China à pandemia e seu reposicionamento global podem contribuir para acentuar as críticas ao modelo neoliberal, como aquele incapaz de fornecer soluções para a pandemia e a crise global. Aqui a discussão sobre o papel do Estado no combate a pandemia e na recuperação social e econômica será crucial. As ações da China ligadas a centralidade do Estado e ao planejamento podem influenciar significativamente essa discussão.

 


[i] Até 30 de Março foram registrados 738.562 casos confirmados e 35.006 mortes pelo Coronavírus COVID-19 em todo o mundo. Fonte: Worldometer, 2020. Disponível em: https://www.worldometers.info/coronavirus/coronavirus-cases/

[ii] CHOONARA, Joseph. “Marxist accounts of the current crisis”. London. International Socialism. Issue: 123. 2009.

[iii] STREECK, Wolfgang. “Tempo Comprado – A crise adiada do capitalismo democrático”. São Paulo. Editora Boitempo, 2018. (cit, pg. 28)

[iv] CHESNAIS, François. “Finance Capital Today – Corporations and Banks in the Lasting Global Slump”. Brill Academic Pub; Lam edition. 2016.Chesnais

[v] South China Morning Post. Disponível em: https://www.scmp.com/

[vi] Para mais detalhes ver: https://revistaopera.com.br/2020/03/22/o-coronavirus-e-a-propaganda-anti...

[vii] Report of the WHO-China Joint Mission on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) (16-24 de Fevereiro). Disponível em: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mis...

[viii] MORITZ U. G. Kraemer et. al. “The effect of human mobility and control measures on the COVID-19 epidemic in China”. Revista Science. 25 de Março de 2020. Disponível em: https://science.sciencemag.org/content/early/2020/03/25/science.abb4218

[ix] RIBEIRO, Valéria Lopes e PARANÁ, Edemílson. “Virtú e fortuna: A trajetória da ação desenvolvimentista chinesa e seus desafios contemporâneos”. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Número 54 (set 2019 – dez 2019).

[x] FERREIRA, Fabiana Bácio L. “Estado de bem-estar social na China: análise de sua tipologia a partir do sistema de proteção social na saúde pós-1980”. Monografia de conclusão de curso. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Economia. 2016.

[xi] National Bureau Statistics of China, 2020.

[xii] Campbell e Doshi. “The Coronavirus Could Reshape Global Order China Is Maneuvering for International Leadership as the United States Falters”. Foreign Affairs, 18 de Março de 2020.

[xiii] Revista Time; ABC News; South China Morning Post; CNA (ChannelNewAsia)

[xiv] Campbell e Doshi. (op.cit.)

 

- Valéria Lopes Ribeiro é professora Adjunta do Bacharelado em Relações Internacionais da UFABC

 

31/03/2020

https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/china-as-licoes-da-pandemia-e-o-depois/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/205629

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