Pandemia acende debate sobre securitização da saúde

Com o avanço do coronavírus, o mundo tomou conhecimento de que a produção de remédios, equipamentos e materiais médico-hospitalares se concentra em poucos países.

15/04/2020
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Com o avanço do coronavírus, o mundo tomou conhecimento de que a produção de remédios, equipamentos e materiais médico-hospitalares se concentra em poucos países.

 

Embora os Estados Unidos façam parte do seleto grupo, isso não significa que sejam autossuficientes. O país depende de outros, incluindo a China, seu principal rival econômico, para materiais, medicamentos e princípios ativos de remédios acabados.

 

Conforme a pandemia avança tragicamente, surgem apelos pela securitização dos suprimentos de saúde. A redução no fluxo da cadeia logística global e as restrições a exportações por alguns países produtores acenderam o sinal vermelho da dependência externa.

 

Os Estados Unidos já começam a discutir o restabelecimento da produção em âmbito nacional, mas o plano é complexo de realizar. Indústrias nacionais têm de ser convencidas a fabricar integralmente em casa, não obstante os custos mais altos e as margens de lucro menores. Ainda que elas adiram a um projeto dessa ordem —provavelmente com subsídios e incentivos volumosos— a transformação levará alguns anos.

 

Diante da perspectiva de que o vírus continue a assombrar as sociedades por muitos meses ou até um par de anos, os países estão vulneráveis hoje e agora. Esse cenário dramático será suficiente para aquecer o debate americano, especialmente há poucos meses da eleição.

 

Oligopólios

 

Segundo a Organização Mundial de Comércio (OMC), no que diz respeito a itens para tratamento do Covid-19, quatro países predominam na produção. Alemanha, Estados Unidos, Suíça e China se dividem em dois grupos. Equipamentos e produtos médicos, como termômetros e respiradores, são produzidos principalmente por Alemanha, Estados Unidos e Suíça.

 

A China toma o lugar da Suíça quando o assunto são materiais sanitários, a exemplo de luvas e óculos, e de desinfecção e esterilização. Os chineses são responsáveis por 17% da produção mundial desses artigos, com os Estados Unidos e a Alemanha respondendo juntos por outros 23%.

 

De acordo o The New York Times, a China está produzindo 116 milhões de máscaras por dia, doze vezes mais do que antes do Covid-19. Mesmo assim, não consegue atender à demanda simultânea de tantos países.

 

Dependência externa

 

Em 2018, a China fabricou 50% das máscaras hospitalares no mundo, tendo nos Estados Unidos seu principal comprador. Considerados os materiais médico-hospitalares na sua integralidade, os americanos importam cerca de 50% de sua demanda a partir da China. Outro vendedor relevante é o México, principalmente de respiradores.

 

Essa dependência americana se estende a remédios primários e sobretudo princípios ativos para a indústria farmacêutica. Cerca de 80% dos ingredientes para a produção de remédios de mais complexidade são importados da China. Outros fornecedores de peso para produtos acabados e princípios ativos são Irlanda, Suíça e Alemanha. Vinte anos atrás, o cenário era outro, com os Estados Unidos na liderança de medicamentos básicos. A última fábrica de aspirina no país, no entanto, fechou em 2002. A de penicilina, em 2004.

 

A dependência externa americana fez com que Peter Navarro, o secretário de Comércio, tentasse invocar a lei ‘Buy American’. Criada em 1933, na Grande Depressão, essa lei determina que agências federais priorizem produtos nacionais em suas aquisições. A determinação, porém, conflita com os princípios da Organização Mundial do Comércio, da qual os Estados Unidos são o principal criador.

 

A Casa Branca não é a única a soar o alarme. Os senadores Marco Rubio, republicano conservador, e Elizabeth Warren, democrata que é mais progressista na economia do que na política externa, apoiam romper a dependência. Outros flertam em securitizar a saúde. Para o líder da minoria republicana no Senado, Chuck Schumer, um militar deveria ser nomeado para coordenar a produção e distribuição de material hospitalar. O senador já chegou a propor uma lista de candidatos com experiência em situações de guerra.

 

Vulnerabilidade estratégica

 

O quadro atual opõe duas prioridades. De um lado, a dificuldade de recuperar mercado e reorientar a produção para o território nacional. Esse processo seria longo e dispendioso. Possivelmente irreal, se considerado o fato de que outros países são mais competitivos.

 

As próprias fábricas americanas que optaram pela internacionalização parcial ou total da produção não querem reverter o processo. Isso custaria tempo, dinheiro e automatização. Os empresários alegam que substituir o operário de baixo custo na China por mão de obra americana comprometeria qualquer tentativa.

 

Existem paliativos, como as impressoras 3D. Essa tecnologia, no entanto, ainda não consegue produzir em larga escala.

 

Por outro lado, a dependência de remédios, máscaras e outros artigos produzidos na China é vista como vulnerabilidade estratégica. É quando aparece a ideia de Navarro para a tomada de medidas nacionalistas. No longo prazo, o debate em torno da dependência externa e segurança nacional poderá gerar o ambiente ideal para aumento de protecionismo, retorno do nacionalismo e reorganização das linhas de produção com incentivos estatais.

 

Securitização da saúde

 

“Se vocês fossem os chineses e quisessem simplesmente nos destruir, bastaria que parassem de nos enviar antibióticos”, disse Gary Cohn, conselheiro-chefe de Donald Trump, em uma reunião da Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China, em agosto do ano passado.

 

Diante da gravidade da pandemia, o tema já vem sendo tratado como questão de guerra. Pressionado por assessores, Trump adotou a Lei de Defesa de Produção para obrigar indústrias americanas a produzirem equipamentos e materiais hospitalares. A lei é do tempo da Guerra da Coreia, nos anos 1950, e confere ao Estado o poder de direcionar a produção das indústrias privadas.

 

Entre as empresas que, forçosa ou voluntariamente, irão produzir máscaras e respiradores estão a GM, Ford, General Electric e 3M. No caso da 3M, a companhia quase foi obrigada pelo governo americano a suspender exportações para o Canadá e a América do Sul. De qualquer maneira, a adaptação das fábricas para uma nova linha de fabricação demora meses. Assim, os Estados Unidos enfrentarão a epidemia com carência de suprimentos médicos.

 

Ainda que o Escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR) tenha suspendido temporariamente as restrições à importação de vários itens médico-hospitalares chineses, são altas as chances de o espectro do nacionalismo se estender para além do circuito do presidente e dos republicanos mais radicais. A temática deverá ser explorada pelos dois partidos ao longo da campanha presidencial e vastamente divulgada pela mídia.

 

O primeiro aperitivo do que vem pela frente foi oferecido pelo próprio Trump ao anunciar o corte temporário de verbas para a Organização Mundial de Saúde (OMS). Há dúvidas se a ameaça poderá ser levada adiante, já que o Congresso tem a palavra final sobre gastos, e a maioria democrata na Câmara já se manifestou contra. A contribuição americana para a OMS equivale a 22% do orçamento da instituição, que é responsável pelas diretrizes globais de saúde.

 

Embora tenha sido alertado por autoridades de saúde sobre Covid-19 , em janeiro, Trump levou dois meses para agir dentro de seu próprio território. Agora, acusa a OMS de má gestão e ocultação da propagação do vírus. “A OMS não cumpriu o seu dever fundamental e deve ser responsabilizada”, concluiu Trump. Para ele, a OMS é “muito, muito sinocêntrica”.

 

- Solange Reis é Doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). 

 

15.04.2020

https://www.opeu.org.br/2020/04/15/pandemia-acende-debate-sobre-securitizacao-da-saude/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/205910
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