Áñez censura mídia e entrega presidência da YPFB ao cartel do petróleo na Bolívia

13/05/2020
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
anez.jpg
Jeanine Áñéz
-A +A

Em meio ao avanço da pandemia na Bolívia e da censura aos meios de comunicação, a autoproclamada presidenta Jeanine Áñez rasgou a Constituição Política do Estado (CPE) e empossou na Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) - principal estatal do país - o executivo da transnacional Shlumberger, maior empresa de serviços de petróleo do mundo, Richard Botello.

 

Com a nomeação, realizada na quinta-feira passada, Botello passa a ser o terceiro presidente da YPFB - atolada em corrupção pelas sucessivas chefias impostas durante os seis meses do golpe contra o presidente Evo Morales, patrocinado pelos Estados Unidos. Vale lembrar que, até o dia anterior, Botello era o gerente do cartel multinacional na Bolívia.

 

“A partir desta indicação, o governo está descumprindo a normativa legal, e são várias leis, e a própria Constiuição”, esclareceu Luis Arce Catacora, ex-ministro da Economia e de Finanças Públicas.

 

Conforme o artigo 238 da Carta Magna boliviana: “não poderão assumir cargos públicos eletivos (…) quem tenha ocupado cargos de direção em empresas estrangeiras transnacionais que tenham contratos ou acordos com o Estado, e não tenham renunciado pelo menos cinco anos antes do dia da eleição".

 

“Embora o cargo de presidente da YPFB não seja eletivo, tem o mesmo perfil, uma vez que a empresa tem caráter estratégico para o desenvolvimento nacional”, destacou Luis Arce.

 

De acordo com o ex-ministro de Obras Públicas, Jerges Mercado, “a nomeação de Botello é uma agressão à lei 2027 do estatuto do funcionalismo público, pois há um forte conflito de interesses, já que ele foi executivo, por mais de duas décadas, de uma empresa que tem contrato direta ou indiretamente com a YPFB”. “Dada à alta hierarquia do cargo, por analogia com o artigo 238 da Constituição, sua indicação é inaceitável”, sublinhou.

 

Mas quem liga para a lei quando se está tentando leiloar o país, em meio a um processo eleitoral que vem sendo adiado ininterruptamente por Áñez e seus asseclas?

 

“Áñez está usurpando suas funções ao indicar este representante de transnacional para a presidência da YPFB, que tem um cargo equivalente ao de ministro. Isso é uma traição à Pátria e deve ser aberto um processo penal por juízo de responsabilidade”, afirmou o pesquisador e cientista social boliviano Porfirio Cochi, frisando que 65 vidas foram entregues e centenas de pessoas ficaram feridas em 2003 na luta pela recuperação dos hidrocarbonetos.

 

Corrupção e ilegalidades

 

No currículo do novo presidente da estatal está o de ter sido gerente de “Serviços de Poço” da Schlumberger na América Latina e ter trabalhado com “Operações Não Convencionais” nos Estados Unidos. Botello foi empossado pela autoproclamada somente um dia após sua saída da transnacional, substituindo a Herland Soliz, envolvido em inúmeras denúncias de corrupção e irregularidades na contratação “emergencial” de seguros e na compra superfaturada de combustíveis no valor de US$ 160 milhões.

 

Ao alertar para a cortina armada por Áñez com o objetivo de silenciar qualquer debate sobre o tema, a ex-chefe das Rádios dos Povos Originários e ex-diretora-executiva do Centro de Produções Radiofônicas da Bolívia, Dolores Arce é taxativa: “a nomeação é uma nova violação flagrante da Constituição, uma vez que, por precaução, em defesa dos interesses do Estado, aqueles que atuaram nos últimos anos como altos gestores de corporações transnacionais não podem ser nomeados para o setor”. Na mesma lógica, acrescentou, “a recente aprovação, via Decreto Supremo, do ingresso de diferentes sementes transgênicas é uma violação da Constituição”.

 

Condenando o atropelo à legislação vigente e ao interesse público, o ex-ministro Luis Arce, candidato à presidência da Bolívia pelo Movimento Ao Socialismo (MAS), destacou que em 2006 o presidente Evo Morales nacionalizou os hidrocarbonetos e fez com que a YPFB se convertesse na empresa pública mais importante do país, proporcionando os recursos para que o Estado pudesse investir no desenvolvimento e em programas sociais.

 

Para o ex-presidente Evo, “Herland Soliz e Elio Montes, homens de confiança de Jeanine Áñez, presidenta golpista, desfalcaram nossas duas empresas mais importantes, a YPFB e a ENTEL”. É uma lógica neoliberal perversa que se agrava mesmo em meio à pandemia, repudiou, pois “querem destruir o que tanto nos custou recuperar”.

 

Elio Montes deixou o governo em 7 de fevereiro após ser flagrado cometendo todo tipo de falcatruas, como o pagamento irregular e ilegal de contratos e benefícios a executivos de sua confiança, e gastar somas escandalosas com hotéis e viagens de luxo. O ex-presidente da Entel chegou a ser preso recentemente nos Estados Unidos ao tentar entrar com US$ 50.000 ocultos.

 

Assalto

 

Entre as inúmeras tramóias de Soliz está a aquisição do barril de petróleo que se encontrava em menos de US$ 20 em abril - devido à pandemia do coronavírus - por US$ 140. O sobrepreço de até US$ 120 por barril fala por si. Soliz estava no cargo desde 16 de dezembro de 2019, quando substituiu o também golpista José Luis Rivero, que havia declarado que a estatal estava “quebrada”.

 

O problema é que estas informações não são encontradas nos meios de comunicação bolivianos, uma vez que os profissionais dos jornais, rádios, redes de televisão e sites encontram-se sob risco de censura e até de prisão. Outros, como o jornalista argentino Sebástian Moro, correspondente do Página 12, não tiveram a mesma sorte. Sebástian acabou sendo assassinado pelos milicianos de Ánez, sendo apontado como “a primeira vítima fatal do golpe” por campanhas internacionais pela democratização da comunicação.

 

“Houve atos de vandalismo e ataques a funcionários, jornalistas e militantes do MAS em diferentes pontos do país. Entre eles, o governador de Oruro teve sua residência incendiada, trabalhadores do canal Bolívia TV e da Rádio Pátria Nova foram sequestrados e privados de seu direito ao trabalho por grupos de choque, e a sede da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses (CSUTCB) foi invadida e atacada”, havia denunciado Sebástian, dando o seu testemunho contundente e fiel das práticas criminosas. Vários outros abusos, como o estupro por bandos de extrema-direita de uma menor de 14 anos filha de uma autoridade ou o sequestro de José Aramayo, diretor do jornal Prensa Rural, amarrado em uma árvore - foram invisibilizados pela mídia local - com várias rádios queimadas, emissoras de televisão silenciadas e jornais ocupados - só vieram a ser conhecidos muito depois.

 

"Meu irmão relatou o que sofria quando já estava na clandestinidade. Estava preocupado e sabia que havia um golpe de Estado muito violento contra Evo Morales", contou Penélope Moro, lembrando que a perícia médica argentina apontou que ''ele sofreu violência física prévia ao Acidente Vascular Cerebral (AVC)”. Revoltada, a irmã ressaltou que a família conta com testemunhos e imagens que confirmam a agressão sofrida por Sebástian em sua residência. “Naquela época eles estavam agredindo todos os jornalistas que refletiam sobre a realidade e anunciavam o que estava por vir", protestou Penélope.

 

Perseguição e desinformação

 

Em Cochabamba, a renomada comunicadora Dolores Arce recordou que, no dia 1º de maio, o ainda presidente da YPFB, Herland Soliz, agradeceu publicamente os meios de comunicação por não terem informado nada sobre os milionários contratos realizados pela empresa. “O agradecimento foi feito antes das revelações do jornalista Junior Arias, da Gigavision. Arias, por meio de documentos, demonstrou os defeitos dos contratos no valor de dezenas de milhões de dólares que a YPFB havia feito diretamente, sem respeitar os procedimentos e, pior ainda, sem qualquer transparência”, frisou.

 

Dois dias depois, lembrou Dolores, “o ministro Arturo Murillo acusou os ‘maus jornalistas e políticos mal orientados’ de fabricarem histórias com o objetivo de afetar a imagem do governo”. “Desta vez, referindo-se a um novo escândalo envolvendo a filha de Jeanine Áñez, Carolina Ánez, que supostamente havia trazido um amigo - filho de uma deputada e candidata de Juntos - de Tarija em um voo da Força Aérea Boliviana (FAB) para participar do seu aniversário”, acrescentou. Logo depois, Junior Arias foi informado oficialmente que ficaria sem qualquer verba de publicidade estatal.

 

Suprema censura

 

Apertando o cerco, sob o pretexto da Emergência Sanitária, Añez amplia o alcance dos decretos contra a “desinformação por Covid-19”. No dia 7 de maio foi promulgado o Decreto Supremo (DS) 4231, que amplia o estabelecido nos DS 4199 e 4200, em relação à divulgação de informações que gerem incertezas na população.

 

E, como mostra de cinismo, condenou Dolores Arce, o DS foi difundido neste domingo, 10 de maio, quando se celebra o Dia do Jornalista na Bolívia, e estabelece: “as pessoas que incitem o descumprimento do presente Decreto Supremo ou difundam informação de qualquer índole, seja em forma escrita, impressa, artística e/ou por qualquer outro procedimento que ponham em risco a saúde pública, gerando incerteza na população, serão passíveis de denúncias pela comissão de delitos tipificados no Código Penal”.

 

“Lembramos que, dias antes, a Internacional Human Rights Watch (HRW) observou que a linguagem destes decretos é extremamente vaga e pode ser mal utilizada contra quem critica as políticas governamentais. Outra observação em relação ao DS 4200 já tinha sido feita pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos, por não respeitar o princípio da legalidade e não se ajustar ao interesse imperioso de proteger a saúde. E que a desinformação se combate com informação e não com prisão”, concluiu a comunicadora.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/206510
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS