O golpe militar híbrido não foi televisionado

18/06/2020
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Para nós a História é feita por grandes imagens icônicas televisionadas, filmadas ou fotografadas: tanques e soldados nas ruas no golpe de 1964; as torres do WTC desabando em 2001; imagens da TV do muro de Berlim sendo derrubado. As esquerdas também devem achar a mesma coisa: temem algo impactante que configure um golpe, de um cabo e soldado fechando o STF a tanques e soldados nas ruas fechando de vez o regime. Mas o golpe militar já aconteceu e a tomada do Estado não foi marcada por nenhum ato espetacular. Golpes militares híbridos não são televisionados. A doutrina militar do combate ao “comunismo viral” já tomou o Estado: já possui dispositivos legais e de operações psicológicas apoiadas pelo consórcio jurídico-midiático-militar. Enquanto põem em ação as estratégias híbridas de paralisação estratégica do inimigo através da manipulação do temor de um golpe que já aconteceu.

 

"Conquista corações e mentes que almas te seguirão" (autor desconhecido e lema do Copesp - Comando de Operações Especiais do Exército)

 

 

Por a acompanhar os fatos quase que exclusivamente através dos telejornais da grande mídia, passamos a nos acostumar com a ideia de que a História se move através de eventos grandiloquentes, acontecimentos dramáticos, tão impactantes que são capazes de fazer a gente perder o chão.

 

Queda do muro de Berlim em 1989; a imagem de tanques e jipes de guerra em frente ao Congresso Nacional na conflagração do golpe militar em 1964; o avião batendo na torre do WTC em 2001; um milhão de pessoas reivindicando Direta-Já no Vale do Anhangabaú/SP em 1984, e assim por diante.

 

Eventos televisionados ou imortalizados por fotos e vídeos que os tornaram icônicos. Para nós, História e iconicidade tornaram-se sinônimos: só sentimos que a História anda para frente quando os acontecimentos se tornam telegênicos ou fotogênicos.

 

As esquerdas parecem estar sob esse efeito hiper-real de ver a realidade a partir de imagens que foram feitas dela.

 

Nesse momento as esquerdas estão preocupadas com as cordas começarem a ser “esticadas”: Bolsonaro falou que a possibilidade do TSE caçar a chapa presidencial é “começar a esticar a corda”. Enquanto o Ministro da Secretaria do Governo, General Luiz Eduardo Ramos, rechaça a ideia de golpe militar, mas faz uma ressalva: “não estica a corda”.

 

As esquerdas temem um pesadelo da “ruptura institucional” se realizar, um “golpe”. Isso desde que Eduardo Bolsonaro falou em fechar o STF com um cabo e soldado em 2018. Têm pesadelos com um novo golpe militar, com tanques de guerra e tropas cercando Congresso e STF, Estado de Exceção, suspensão de direitos civis, enquanto soldados cercam sedes de sindicatos e partidos de oposição.

 

Reverberam ainda as velhas imagens de março de 1964, trauma seminal, fantasma que ainda assombra as esquerdas. Para elas, o remédio para isso é luta e resistência: o povo tomando as ruas e resistindo até o fim.

 

Mas quase 60 anos depois parecem não terem aprendido uma simples lição da uma sociedade do espetáculo: nenhuma revolução ou golpe militar será televisionado. Paradoxalmente, quanto mais se produz, transmite e dissemina imagens de pessoas, lugares e eventos, mais a realidade se torna opaca e menos entendemos o que está acontecendo.  

 

A palavra “golpe” é oportuna, condensa uma série de questões que, na perspectiva de uma guerra híbrida, são meramente superficiais. 

 

Grande mídia vem nas últimas semanas “esticando a corda” quando repercute falas de Bolsonaro sobre o artigo 142 da Constituição para justificar uma “intervenção militar constitucional”. Depois, um parecer conjunto, presidência da OAB e procuradoria constitucional do Conselho Federal tratando da inconstitucionalidade das propostas de intervenção militar constitucional e da inadequação da perspectiva que associa as Forças Armadas ao “Poder Moderador” da Constituição Federal.

 

O Golpe não será televisionado

 

Nesse meio tempo, Bolsonaro diverte-se nas suas domingueiras participando de manifestações pró-regime militar. 

 

Surgem mobilizações Pró-Democracia com torcidas organizadas de futebol e “antifas” nas ruas, para fazer frente às manifestações de extrema-direita. 

 

Os “300 de Brasília” (que na verdade não chegam a 30), apontam rojões para o STF, sempre à noite, depois de uma marcha fúnebre com tochas e máscaras que lembravam o personagem Jason do filme Sexta Feira 13. 

 

E, the last but not least, a desbocada líder que costuma se exibir empunhando armas de grosso calibre, foi presa pela PF... era tudo o que ela queria... e o xadrez da guerra híbrida pretendia.

 

O problema é que o “golpe militar” não foi e nem será televisionado. Sob as aparências de um suposto conflito de Bolsonaro com o comando do Exército e idas e vindas de falas que ora distensionam e ora tensionam (guerra criptografada), o consórcio militar-midiático-jurídico chegou ao poder e já deu o seu “golpe”. Tudo na “caneta”, na legalidade.

 

Desde 1985, tantos militares não ocupavam postos relevantes na cúpula do governo brasileiro. Despreparadas, as esquerdas e as oposições não viram que esse consórcio militar se sofisticou em estratégias de operações psicológica numa guerra híbrida. Há muito os militares deixaram de ser aquela figura caricatural do gorila, criada pela esquerda na crise política que levou ao golpe de 1964.

 

Principalmente depois de 2002, que o Exército criou o 1BTI Op Psic – 1o Batalhão de Operações Psicológicas, a única organização militar dessa modalidade de operação na América Latina. Diretamente influenciado pela doutrina de segurança da Atlantic Council (lobby americano de grande penetração no Departamento de Estado dos EUA). 

 

Para essa doutrina, os maiores adversários da democracia não seriam mais países (China ou Rússia), mas ameaças virais atuando nas redes sociais. E o comunismo seria a principal delas – desintegrado, tornou-se viral com a capacidade de contaminar o mundo inteiro.

 

Expressa pela ideologia do “multiculturalismo” que colocaria em confronto EUA e Israel com o Movimento Comunista Internacional e países islâmicos. Em 1989 o “paleoconservador” William S. Lind chamava isso de “guerra de quarta geração” e que mais tarde seria redefinida como “guerra híbrida”.

 

Orientada por essa doutrina da “guerra cultural”, gradativamente esse consórcio foi ocupando o Estado, aproveitando-se da janela de oportunidades dos megaeventos no Brasil da Copa do Mundo e das Olimpíadas, emplacando a Lei Antiterrorismo e posteriormente diversas PLs (Projetos de Lei) e decretos - “Patriot Act Tabajara” ou “Novo AI-5”: PLs 2418, 3389, 443 5327 e 1595, Decretos 10046 e 10047 – clique aqui.

 

No Brasil, a guerra híbrida foi colocada em ação coma estratégia de “paralisia estratégica”, conceito transposto do campo de batalha para a guerra simbólica: expansão da antiga guerra relâmpago (blitzkrieg) alemã, que visava um ataque decisivo contra a frente adversária por meio de pinças, penetrando na retaguarda e destruindo o apoio logístico da força oponente.

 

Agora, trata-se de penetrar no sistema organizacional do país inteiro e provocar o colapso não de uma frente e a captura de um ou outro oponente, mas da captura de um país inteiro. É a culminância dos princípios de Sun Tzu sobre ganhar as batalhas quase sem combater, pela dominação moral sobre o adversário.

 

Para quê então usar um artigo 142, que supostamente tornaria legal uma intervenção militar, para expor o Exército? É a vantagem básica da guerra híbrida: incrementar poder de combate ao mesmo tempo que reduz drasticamente as perdas humanas e materiais – claro, do lado das forças de ataque. Dissuadir sem entrar em confronto direto.

 

Movimentos em pinça

 

Esses movimentos em pinça do plano híbrido de paralisia estratégia desse consórcio militar-midiático-judiciário já são explícitos:

 

(a) As manifestações de rua do domingo retrasado (07/06) foram aguardadas com expectativas temerosas: possíveis confrontos e quebra-quebras poderiam ser a justificativa para o desfecho final do “fechamento do regime”. Em São Paulo, os manifestantes pró-democracia se concentraram no Largo da Batata, convocados por diferentes frentes, como Povo Sem Medo, Somos Democracia etc.

 

Tudo tranquilo. Depois que a liderança encerrou a manifestação, um grupo de antifas começou a marchar em direção da Avenida Paulista. Sintomaticamente, só nesse momento emissoras como Globo News e CNN entraram ao vivo de forma contínua. Tensão: policiais do choque com escudos impedem a progressão. Até que o grupo retrocede e tenta fugir por travessas, seguido por policiais que disparam balas de borracha e bombas de efeito moral.

 

Depredações? Uma única lixeira foi jogada contra uma agência bancária. E outra pequena lixeira pegando fogo. Frustração por não ter acontecido os quebra-quebras aguardado? Não seja por isso! As emissoras começaram a repetir ad infinitum imagens da vidraça quebrada daquela agência e da lixeira incendiando, enquanto os helicópteros mostravam “dramáticas” imagens dos policiais perseguindo a eles mesmos pelas ruas do bairro de Pinheiros. 

 

Alguns mais frustrados, começaram a enquadrar a esmo qualquer um que viam.

 

 Primeiro movimento de pinça: TVs só entram ao vivo quando têm elementos para tipificar movimentos sociais como “extremistas” – e por que não dizer “terroristas”.

 

 (b) Nesse último domingo, outra decepção. Sem depredações e confrontos. Mas nada como a força retórica do “pau que bate em Chico bate em Francisco”: transmissões ao vivo tipificaram um pequeno grupo de bolsomínio diante da Prefeitura de São Paulo como antidemocráticos por levar faixas pedindo fechamento do Congresso e STF.

 

Mas também localizou “extremistas de esquerda antidemocráticos” – uma faixa do proscrito POR (Partido Operário Revolucionário) que, segundo a locução off de uma fanhosa apresentadora do Globo News, defende a “Ditadura do Proletariado, uma reivindicação antidemocrática”...

 

(c) Sara Winter presa! Como os analistas do Globo News descrevem a desbocada "ativista"? Como alguém "que foi da extrema-esquerda para a extrema-direita... Retórica para controle total de espectro.

 

(d) Também ad infinitum repetem as imagens dos fogos disparados contra o STF na noite de sábado. Estranhamente, a meia dúzia dos “300 de Brasília” tranquilamente montou uma bateria de rojões e gritou ameaças contra os ministros, enquanto o foguetório era disparado automaticamente.

 

É notória a estratégia semiótica de inflar a suposta ameaça desses grupelhos de malucos operacionais que funcionam no piloto automático dessa guerra híbrida. Supostamente o grupo dá “treinamento militarizado” e noções de “guerra não violenta” a defensores do Bolsonaro. Uau!!! Temos uma autêntica célula terrorista no Brasil!

 

Mas também estranhamente são deixados com a corda (essa palavra está na moda!) solta. Uma simples “rádio patrulha” seria capaz de enquadrá-los para levá-los em cana por crime comum. 

 

Mas é necessário o show do ministro Alexandre de Moraes expedir ordem de prisão pela Polícia Federal da líder Sara Winter e para mais cinco da poderosa “célula”.

 

Há um esforço evidente em tipificá-los como ardilosos terroristas. Pau que bate em Chico... Malucos de direita, na verdade com muitos P2 e militares infiltrados, para tipificar terrorismo que depois será usado contra a própria esquerda. 

 

O Programa de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) está disponível, legal, pronta para entrar em ação contra o terror extremista. 

 

 (d) CNN fez uma suposta entrevista com líderes antifas em uma “ocupação que fica no Centro de São Paulo”. Destaque para a afirmação “podemos usar de violência”. Discurso genérico: “somos pessoas inconformadas com o momento político” e a chocante revelação: “a roupa preta é uma tática política e tem o objetivo de dificultar a repressão do Estado”... Uau!!!!. Mas eles garantem que não são ‘black blocks’... tudo muito canastrão e caricato.

 

Assim como era a propaganda antiterror dos EUA com a tipificação dos “feios, sujos e malvados” terroristas islâmicos com suas barbas e turbantes nas false flags (ou “não-acontecimentos”) que ocuparam a agenda europeia, para depois ser substituída pela pandemia COVID-19.

 

(e) Policiais P2 e militares infiltrados na extrema-direita para atiçar meia dúzia de malucos? O pior é que deixam mensagens crípticas da origem tática desses “ativistas”. Por exemplo, a autodenominação “300 de Brasília” da histérica Sara Winter. 

 

A referência óbvia. É uma alusão do relato bíblico do juiz Gideão, em 1245 AC, quando ludibriou a tropa inimiga equipando cada um dos seus 300 soldados com uma tocha e uma trombeta, produzindo um efeito visual e sonoro que amedrontou e desorientou o inimigo em maior número. Além de demonstrar a força de uma operação psicológica, sua alusão serve de guia para os operadores militares do 1o BOAI. 

 

Guerra híbrida que ainda por cima deixa suas digitais...

 

Paralisia estratégica

 

Azeitado pela PL 1595 (ações contraterrorismo) do Deputado Federal Major Vitor Hugo (um operador das Forças Especiais no Congresso), o Governo aguarda o momento para lançar uma GLO. Como recentemente levantou a bola o General Heleno:

 

Aos que nada sabem sobre doutrina terrorista de controle de massas. Manifestações são sempre iguais: CONDUZIDAS, longo tempo, de forma pacífica, para que a imprensa noticie isso. EM UM PONTO PRÉ-RECONHECIDO, “TOCAR O TERROR”, para surpresa dos incautos (?) jornalistas.

 

                 O objetivo é a paralisia estratégica, o domínio total de espectro. Criar uma tipificação jurídica para enquadrar qualquer forma de oposição como organização terrorista. Militantes, ativistas, agitadores, propagandistas, auxiliares, simpatizantes logísticos, intelectuais, inocentes úteis. Ou ainda tipificar de agentes infiltrados internacionais dentro de universidades, nos partidos políticos. Amplificar a tipificação de supostos atos preparatórios de terrorismo.  

 

 

Essa é a doutrina do Exército. Se organizar como força e como ação. Agir como supostamente o inimigo agiria. Nunca agir de forma reflexiva ou reativa – abordagem indireta: jogar o estímulo já sabendo a reação do oponente.

 

O repentino estrelato de Sara Winter após ela praticamente pedir para ser presa depois de tanto causar nas redes sociais e compartilhar vídeos ameaçando pessoalmente ministros do STF tem o deliberado objetivo de normalizar a pauta do terrorismo, enquanto a grande mídia a promove praticamente como líder de uma organizadíssima célula extremista – que mal preenche uma faixa de pedestres numa rua qualquer.

 

Essa inflação semiótica dos inocentes (ou não) úteis é a abordagem indireta necessária para estimular as esquerdas a saírem às ruas imaginariamente ocupadas pela extrema-direita. É o momento em que a pinça se fecha, com o luxuoso auxílio dos closes das câmeras de TV nos indefectíveis “vândalos”.

 

Para quê tudo isso? A resposta está no surpreendente otimismo dos analistas do canal Globo News com a indicação do novo ministro do redivivo Ministério das Comunicações. Com a costumeira estratégia de morder e assoprar, e depois de quase pedir o impeachment de Bolsonaro acusando de prática da política do “toma-lá-dá-cá”, comemoraram a nomeação de Fábio Faria (PSD-RN), do “centrão” – genro do proprietário e apresentador do SBT, Sílvio Santos.

 

A avaliação é que essa nomeação melhoraria as relações de Bolsonaro com o Congresso, facilitando a tramitação das Reformas. E o velho mantra: “reformas tão necessárias para o País sair da crise econômica pós-pandemia...”. 

 

É a agenda neoliberal, cujos miliares assumem também a agenda oculta dessas reformas no Ministério da Saúde: a necropolítica – controle populacional e liquidação de aposentados ou aspirantes à aposentadoria. Esse é o verdadeiro conteúdo reforma da Previdência...

 

O que fazer?

 

A velha pergunta para as esquerdas. A resposta é ao mesmo templos simples e complexa: Inteligência, seja semiótica, de organização, logística e de informações. 

 

A doutrina militar pode ser tosca, mas sua organização e Inteligência se sofisticaram, muito além do ativismo da “luta e resistência” que as esquerdas revivem em loop. 

 

Enquanto esperam um golpe militar clássico com tanques e soldados, os militares já impuseram sua doutrina, ocupam o Estado e discutem abertamente táticas Guerra Híbrida e operações psicológicas em seus veículos de disseminação doutrinária, como o Defesanet.

 

Como sempre este Cinegnose vem afirmando há anos, o caminho é lutar no mesmo campo simbólico do cenário de guerra híbrida, como bem sintetizou o antropólogo e professor da UFSCar Piero Leirner em debate no blog Duplo Expresso – clique aqui:

 

"Perguntas certas para as esquerdas para defender a soberania popular e não para ser fantoche das finanças internacionais:"

 

Primeiro, a esquerda tem condições de fazer uma bomba cognitiva na mesma medida que eles fazem, tem como produzir essas cisões narrativas como os caras fazem? Conseguem produzir uma Sara Winter maluca? A esquerda consegue produzir a mesma coisa do lado de cá? Que possa ser uma ameaça fake só para produzir uma reação? Consegue fazer guerra nesse campo psicológico?

 

Segundo, a esquerda tem gente infiltrada nos movimentos deles? Conhecem os pontos de ruptura da extrema-dreita? Sabem os pontos fracos para produzir cisão nos quadros deles?

 

Terceiro, a esquerda tem uma engenharia estatística reversa que possa produzir fissuras nos dados que eles produzem? A esquerda planta informações que causam disfunção na máquina deles. Conseguem produzir dossiês?

 

Quarto, ela é capaz de identificar filtrados nas suas próprias fileiras? Expor esses infiltrados?

 

junho 17, 2020

https://cinegnose.blogspot.com/2020/06/o-golpe-militar-hibrido-nao-foi.html

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/207322?language=en
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