Cem anos de Florestan Fernandes, um intelectual do povo

30/07/2020
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Assim como os homens manifestam sua vida, assim são”.

Karl Marx, A ideologia alemã.

 

Simples como os sábios, bondoso e afável no convívio diário, um dos mais portentosos pensadores brasileiros, Florestan Fernandes era antes de tudo um ser humano exemplaríssimo. Diferenciado. Qual o professor emérito da USP, professor nas universidades de Columbia e Yale (EUA) e Toronto (Canadá), que, padecendo grave hemorragia, optaria por enfrentar uma fila do SUS, numa fria madrugada paulistana, porque esse era o serviço público de que dispunha o povo? Qual de nós, pobres humanos sem crenças, recusaria a expectativa de salvar a vida num hospital dos EUA, oferecida pelo governo federal, porque esse privilégio não era ensejado a todos os brasileiros atingidos, como ele, por grave lesão hepática (que, aliás, terminaria por levá-lo à morte)? 

 

Esse homem simples e bom, muito querido pelos que o conheciam de perto, admirado de longe por seus leitores, era, porém, enérgico no confronto das ideias, porque convicto de seu papel transformador numa sociedade de classes excludente e perversa. Preparado para conviver com o debate, professor desde muito cedo, orientador de jovens estudantes, futuros mestres e doutores, formador de discípulos, sua fragilidade física se superava na firmeza com que defendia seus princípios – no centro deles a denúncia do capitalismo e a defesa do socialismo – dos quais jamais se arredou, na cátedra, na pesquisa, na formulação teórica e na vida parlamentar que honrou como muito poucos.

 

Florestan jamais encarou o fato social a partir de pretensa isenção científica – de resto falsa – porque jamais renunciou ao compromisso ético do intelectual com a ação. Foi na convicção leninista de que “o curso das ideias depende do curso das coisas” que se fez militante. A incursão na realidade cálcica da vida do povo não limitou os voos do pensador, nem as formulações pioneiras do teórico. Ao contrário, foram seu sólido alicerce; numa unidade dialética, abriram caminho para o aprofundamento de sua produção acadêmica e científica original – e dele fizeram um dos mais importantes sociólogos brasileiros do século passado, sem dúvida o mais profícuo intérprete do marxismo-leninismo. E essa unidade – a fusão da práxis com a teoria, esta como filha daquela – é uma de suas lições: o intelectual não apenas pode tomar partido, isto é, definir-se diante da história, como deve escolher seu lado. Como lembra o Marx do 18 brumário, se não é possível escolher o momento histórico no qual atuar, pode sempre o homem escolher-se nele, isto é, definir-se. Sartre, em O existencialismo é um humanismo, dirá, com sua própria experiência de vida, que não é apenas possível optar como sempre optamos, pois, quando cruzamos os braços diante da injustiça social estamos tomando o partido do dominador, e, portanto, também optando. Florestan escreverá: “Ou o intelectual se empenha no fortalecimento do movimento socialista, ou ele voltará a ser joguete nas mãos das forças da conservação da ordem”. Numa hipótese ou em outra, ao fim e ao cabo, ele estará definindo seu papel na história.

 

Niomar Moniz e Roberto Marinho, ela com seu Correio da Manhã, ele com O Globo, optaram diante da ditadura militar, conscientes ambos, uma dos riscos da ação oposicionista, outro dos benefícios da adesão, quanto ao que nenhum dos dois estava errado, como demonstrou a história. Houve empresários que financiaram a “Operação Bandeirantes”, covil civil e militar de repressão, tortura e morte dos adversários do regime. E houve empresários – como Fernando Gasparian – que financiaram o semanário Opinião, trincheira de resistência política.

 

Nelson Rodrigues e Raquel de Queiroz, dentre muitos, cerraram fileiras na defesa da ditadura, enquanto o outro lado da trincheira foi cavado por jornalistas e pensadores como Antônio Calado, Antônio Houaiss, Ênio Silveira e Carlos Heitor Cony, dentre outros.

 

É impensável imaginar um Florestan “equidistante” quando o Brasil teve de escolher entre uma aventura autoritária e a proposta de centro-esquerda, como fez em 2018. Os que se omitiram apoiaram, objetivamente, a ascensão da extrema-direita e são hoje cúmplices em seus crimes. Alguns foram seus contemporâneos na USP, foram ou se disseram seus discípulos ou ex-alunos.

 

Florestan perguntava aos seus colegas intelectuais: “De que lado estamos?”, e ele mesmo respondia simplesmente indicando a margem do rio que escolhera para navegar: ao lado dos oprimidos, humilhados e ofendidos. Essa seara ele conhecia porque era a história de sua existência. Carregava consigo, sem amargura (ao contrário, dizendo sempre que o homem pode transformar a utopia em realidade) o peso das dores do ser humano, das injustiças que incidem sobre os pobres e os trabalhadores, sobre os marginalizados de todas definições, mas nunca as aceitou como fenômeno natural ou destino traçado pelos deuses. Dedicou sua vida à luta sem quartel contra a dominação de classe.

 

Para o marxista a miséria não caiu do céu, muito menos o capitalismo, que a alimenta, é um fenômeno natural. São construções humanas. No caso brasileiro, uma colonização que se fez a ferro e fogo, ao preço do genocídio das nações indígenas e à custa do escravismo negro, da barbárie, da sevícia e do pelourinho, da fome e da morte de inanição do braço escravo. A tragédia social, a iniquidade de nossos dias, que tanto injuriava Florestan Fernandes, é o grande e inevitável produto do regime de classes e da acumulação da mais-valia, fruto da exploração do homem pelo homem.

 

A matriz da militância e pensamento de Florestan Fernandes é o marxismo.  Ele teve sempre presente as relações de classe como relações de poder, mas sobre seu pensamento pode-se repetir o que ele mesmo escreveu sobre Lenin: “Sua total fidelidade ao marxismo não pressupunha a 'repetição de Marx' ou a ossificação da dialética, e sim a busca de caminhos novos, que só o marxismo podia desvendar, desde que aplicado de forma precisa, exigente e imaginativa, como um saber vivo, em extrínseca conexão com a vida”.

 

Sua obra, sobre ser radical, jamais fez concessões a influências dogmáticas, restritivas da formulação nova e enriquecedora da teoria marxista, que soube utilizar como método de interpretação do processo histórico, indicador de ações concretas para o movimento social. Seu pensamento não cabia em moldes, seu método de análise era incompatível com qualquer sorte de acriticismo.

 

Em Florestan Fernandes o político e o pensador se fundiram, como se fundiram ação e obra, ambas se constituindo dialeticamente em um só instrumento de luta pelas transformações sociais. Para ele a História não podia ser vista como obra completa, ou simples sucessão de fatos. Quando se voltava para seu estudo – e ela sempre esteve na base de suas reflexões – tinha presente a questão fundamental levantada por Marx: a história já havia sido revirada em todas as nuanças, e os filósofos já a haviam interpretado de todos os pontos de vista possíveis (Teses contra Feuerbach). Tratava-se, agora, de transformá-la, de alterá-la em benefício das classes sociais desde sempre oprimidas, sem cair seja no vanguardismo, seja no espontaneísmo das massas, para, livre das armadilhas da história determinista, intervir no rumo dos acontecimentos, ora acelerando a crise do capitalismo, ora acelerando seu antídoto, a revolução socialista – cientes porém, as forças populares, de que as reformas sociais terão de iniciar-se ainda sob o capitalismo. O combate à fome, à miséria e ao desemprego é inseparável da prática socialista, hoje.

 

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Solidariedade e repúdio- Nos desvãos do Ministério da Justiça, que já foi ocupado por homens de bem, instaurou-se uma mini Gestapo, com o objetivo de vigiar (para mais o quê?) não os que forcejam contra a democracia, mas exatamente aqueles que, como Paulo Sérgio Pinheiro e Luiz Eduardo Soares, dois brasileiros dos mais eminentes, dedicam suas vidas à defesa dos direitos humanos e, presentemente, e por isso mesmo, combatem a onda fascista exalada a partir da presidência da república. O Brasil digno, sem medo, repudia a ameaça soez, ilegal, covarde, e manifesta seu nojo aos beleguins de plantão.

 

- Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

 

Leia mais em: www.ramaral.org

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/208175
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