Ventos rebeldes da América Latina chegam ao Peru
Teremos que iniciar o processo para enterrar enfim a Constituição vigente.
- Opinión
Neste 17 de novembro, despertamos com um novo presidente, Francisco Sagasti. O quarto, em menos de três anos. Sim, você leu direito: quatro presidentes em menos de três anos. Uma instabilidade política que não começou com a destituição de Martín Vizcarra [no poder desde 2018], mas muito antes. Aqui algumas chaves para responder a pergunta que por aqui andam me fazendo muito, e me custa responder: o que está acontecendo no Peru?
Em 10 de novembro, vimos como destituíam, em plena pandemia que faz do Peru um dos países mais atingidos do mundo, o seu presidente, Martín Vizcarra. A Casa [de Pizarro, palácio do governo peruano] ficou sem ninguém no comando e, à margem das opiniões concretas sobre o mandatário que foi derrubado, o fato é que há poucos episódios de tal instabilidade política em um momento em que as pessoas seguem tentando sobreviver à pandemia e às suas consequências. A crise sanitária de covid-19 é seguida por uma crise econômica que golpeia duramente quem já vive em condições de absoluta precariedade. Isso acontece mesmo em países do chamado primeiro mundo, onde alguma vez houve um Estado de bem-estar social e, ainda que tenha sido desmantelado pouco a pouco por políticas de cortes sucessivos e uma corrupção galopante, a verdade é que alguns traços ainda sobrevivem.
Mas há países como o Peru que nunca viram o que significa Estado de bem-estar social. Temos gerações inteiras que não sabem o que é saúde pública, que nunca viveram sem considerar a pertinência de contratar seguros privados de vida, que assumem que não faz sentido contribuir para suas aposentadorias no sistema público, e o fazem no privado, que sabem que seus pais se endividaram sem que houvesse necessidade para que pudessem estudar, pois a educação pública é apenas uma expressão utópica que parece inalcançável. E são esses milhões de peruanos que estão a duras penas sobrevivendo – os que podem – a essa pandemia. E, em meio a ela, com a ameaça e quase evidência do início de uma segunda onda, o barco ficou sem seu timão. O país ficou em suspense. E a indignação saiu de nossos corpos.
Estimado leitor e estimada leitora, pode ser que a narrativa cronológica do caos seja complexa de se fazer. Por isso, vou pedir-lhe que faça uma breve, mas importante viagem imaginativa por esse país que falo.
Imaginemos um país com um Congresso que conta com mais de 80% de desaprovação cidadã. Poderíamos inclusive dizer que ele é ilegítimo dado esse nível de rechaço popular. E, no entanto, não lhes importa nunca preservar certa dignidade pela instituição que representam e escolheram um caminho mafioso, do rabo preso e do conluio a fim de garantir a permanência de seus negócios duvidosos, os de seus chefes e de seus líderes partidários, para bloquear as sentenças que estão em aberto por corrupção, e que atingem a maior parte desse mesmo Congresso.
Os 130 parlamentares desse Congresso, que foram eleitos temporariamente (janeiro de 2019 a julho de 2021) com a finalidade de nos brindar com certa estabilidade e impulsionar as reformas que a cidadania exige como, por exemplo, a reforma política para, precisamente, melhorar a confiança cidadã nas instituições democráticas, passaram por cima das vozes populares que pediam calma, estabilidade, responsabilidade, serenidade nesse terrível cenário de pandemia. Optaram então por colocar como prioridade seu interesse em controlar um país que sempre entenderam como negócio privado — em que eles são os chefes. E para isso necessitavam colocar um dos seus comparsas no topo do poder do país: a presidência da República.
E foi assim que, após vários meses de bloqueio, às vezes violento, contra o atual governo, conspiraram para finalmente dar uma estocada final no presidente Martín Vizcarra e colocar um dos seus no poder. Um que os permitiria desmantelar avanços tão significativos neste país de que falo, como a reforma universitária que, entre outras coisas, visa eliminar as universidades-empresas – formulação eloquente instaurada pela ditadura de Fujimori – para que o direito a uma educação de qualidade esteja acima do lucro. Não é por coincidência que toda a operação para destituir o então presidente teve entre seus principais operadores os donos, representantes e advogados dessas universidades que, cuidando do tom, me limito a defini-las como “lixo”.
Foi assim que, no dia 10 de novembro, se destituiu um presidente, colocando em seu lugar um sucessor designado para esta operação claramente golpista. O senhor Manuel Merino de Lama, a quem a história recordará como um dos mais nefastos presidentes pela forma como chegou ao poder, durou apenas cinco dias no cargo. Sim, você leu bem, estimada leitora e estimado leitor, apenas cinco dias. Mas ele não renunciou: foi renunciado nas ruas.
É preciso apontar que não apenas era deplorável essa tentativa golpista pelo que se supõe ser a democracia de um país. Vimos o mesmo acontecer não faz muitos meses na Bolívia, assim como também vimos que, por sorte, as urnas devolveram ao poder seus legítimos representantes, numa grande surra aos usurpadores. No Peru, assim como na Bolívia, não houve só um golpe de Estado, o que já seria suficiente. Houve uma operação dirigida e articulada pela ultradireita do país com a finalidade de se apropriar do poder e impor sua agenda, já que era incapaz de ganhar pelas urnas.
O gabinete ministerial convocado por Merino de Lama, além de ilegítimo, tinha outro tremendo problema: sua incapacidade de representar um país que há muito tempo já não pode ser lido através da velha dialética daqueles que assumiram o cargo. Basta descrever brevemente o primeiro ministro deste ilegítimo gabinete que está vinculado diretamente a Opus Dei, se manifesta contra os direitos exigidos pelas mulheres do país, é incapaz de reconhecer que existe um delito chamado “feminicídio” e cujo racismo foi evidenciado quando se candidatou à presidência do Peru há muito tempo atrás quando, diante de uma pergunta, responde que os peruanos que habitam os Andes não mereciam decidir sobre seus territórios e seus direitos, pois são “lhamas e vicunhas” [animais típicos da região andina]. E todos e todas que estão nesse gabinete contam com um arsenal de evidências nesse mesmo sentido. Esses conspiradores pensavam que não haveria reação cidadã? Talvez ocorra que quando alguém se sente por muito tempo dono de um país, começa a acreditar que pode decidir sobre a vida de todo o resto de acordo com seus caprichos. Talvez Merino de Lama, todo esse gabinete, os conspiradores do golpe, os 105 congressistas que votaram para destituir Vizcarra e os jornalistas que se somaram a orquestra, silenciando os protestos nas ruas, pensaram que, dessa vez, o Peru voltaria a dormir, iriam todos para suas casas, para se cuidarem por causa da pandemia.
Qualquer um diria que não há melhor momento para implantar um golpe que uma pandemia que nos obriga a manter o distanciamento social. No Peru, se equivocaram. Se o vírus era esse Congresso mafioso, a vacina foi e segue sendo a mobilização, mantida desde segunda-feira passada [dia 16/11] até hoje [18/11], quando escrevo esse artigo.
Se conseguimos chutar esse remedo de presidente, é certo que a realidade nunca é formada apenas de luz, conta com sombras também. Ao esperançoso protesto de um país que se levantou contra sua principal pandemia, a resposta foi uma desproporcional repressão que nos fez recordar os momentos mais sombrios da ditadura fujimorista. Mais de 40 desaparecidos, segundo as cifras oficiais – o número pode ser ainda maior –, abusos sexuais a manifestantes em delegacias, disparos, bombas de gás lacrimogêneo jogadas de helicópteros, apagões massivos para que as pessoas que protestavam não pudessem ver aonde se dirigiam nem responder à repressão, é claro, e, talvez, o mais triste, o assassinato de Bryan e de Inti, cujo nome significa “sol” em quechua. Talvez sua luta valente possa nos permitir que ninguém mais seja apagado.
“Não é uma manifestação, é uma revolução”
Enquanto a cidadania seguia manifestando-se nas ruas, exigindo não apenas um presidente democraticamente eleito, mas também que os responsáveis pela repressão e assassinato desses dois peruanos fossem punidos por seus atos, o Congresso da República – que, como disse no começo, é um Congresso de vergonha por reunir essa amplíssima maioria de congressistas (105 de 130) que querem impor sua agenda e retroceder ao reflexo mais fiel da ditadura fujimorista que acreditávamos ter nos livrado – seguia decidindo com a calculadora na mão, pois há eleições gerais em abril do próximo ano, e se era conveniente ou não colocar tal ou qual como presidente da nova mesa diretiva do Congresso, que assumiria, portanto, a Presidência da República.
Enquanto velavam Iuti e Bryan, enquanto as famílias de centenas de feridos em estado grave choravam, enquanto milhares de jovens gritavam para que se colocasse um fim a esses atos vergonhosos dos últimos dias, o Congresso voltou a prorrogar sua decisão e, em vez de decidir encerrar esse episódio no domingo, tardou até segunda para entrar em acordo e, por fim, nomear um presidente.
Estimado leitor e estimada leitora, sei que nesse momento você pode se perguntar: como é possível que um Congresso com tamanha impopularidade, com tanto desprezo aos cidadãos e com tanta ilegitimidade possa eleger um novo presidente da República? E a verdade é que, ainda que pareça uma piada de péssimo gosto, essas são as regras do jogo. Deve ser alguém saído de suas fileiras, mas, dessa vez, temos que reconhecer que uma minoria muito precária que votou não para a destituição de Vizcarra teve a valentia de enfrentar essa maioria mafiosa e, sobretudo, teve a seu lado um país inteiro que não deixou de protestar durante dias a fio, para que o cargo não recaísse sobre um dos que votaram para destituir o ex-presidente, mas sim o contrário. Essa foi a diferença e, portanto, houve uma trégua momentânea nesse episódio complexo.
Mas, como bem apontam os jovens nas ruas, que são a espinha dorsal das mobilizações, essas não são mais manifestações apenas concretas a essa altura. Algo foi despertado. Uma espécie de indignação popular que estava adormecida desde a luta contra a ditadura de Fujimori. E, assim como os pouquíssimos congressistas decentes desse Congresso vergonhoso, tiveram o povo peruano envolvido e apontando o caminho. Deve-se dizer que na América Latina há os ventos de mudança democrática que também sopram neste momento do processo peruano. Temos a Bolívia, numa vinculação direta ao poderoso sul peruano e, claro, o Chile que, também no sul, nos deu uma lição de democracia e de memória.
O Peru terá que decidir nas próximas semanas se esta é realmente uma revolução. E, assim como nossos vizinhos chilenos, teremos que iniciar o processo para enterrar enfim a Constituição vigente que ainda é a mesma da ditadura de Alberto Fujimori. Porque essa Constituição, e o legado que a ampara, foi o que gerou essa crise, porque as máfias majoritárias do Congresso lutam para manter essa Constituição, para sustentar o marco legal em que o Estado não pode decidir sobre seus recursos naturais, não pode garantir direitos, não podem, em resumo, realmente desenvolver o país.
E ele, nessa pandemia, foi talvez o que mais sangrou. Chutamos a Merino de Lama e nos despedimos de Bryan e Inti. Mas temos que expulsar algo maior e mais pesado: o legado de Fujimori. E, para isso, necessitamos de todas as nossas energias. No Peru, não se celebra: se respira após uma semana turbulenta. Mas em breve teremos que marchar para a luta de nossas vidas. E, desta vez, por sorte, sinto que estamos prontas para vencê-la.
- Laura Arroyo Gárate es Miembro de la Unidad de Análisis Político, Estrategias y Marcos de la Secretaría General de Podemos (España). Licenciada en Lingüística Hispánica por la PUCP. Diplomada en Periodismo Político y Análisis Cultural por la UARM. Cursando el Máster en Análisis Político en la Universidad Complutense de Madrid. No El Salto |
Tradução: Rôney Rodrigues
23/11/2020
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