Alberto Fernández completa um ano na presidência da Argentina
- Análisis
Há exatamente um ano, Alberto Fernández tomava posse como presidente da República Argentina, com Cristina Kirchner na vice-presidência.
Com o retorno de um governo progressista, ganharam espaço pautas como a redistribuição de riquezas, a expropriação de megaempresas em dívida com o Estado, além de um projeto de legalização do aborto lançado pelo próprio poder executivo.
Nesta quinta-feira (10), o presidente e o ministro da saúde, Ginés González, anunciaram o contrato que assinaram para receber 600 mil doses da vacina russa até o final do ano.
A herança do governo neoliberal de Mauricio Macri deixou um tortuoso caminho de recuperação para seu sucessor: 35% de pobreza, uma dívida bilionária com o FMI e o desmonte da saúde. A tudo isso, somou-se um desafio que ninguém pôde prever: a pandemia do coronavírus e a piora de todos os problemas econômicos e sociais da Argentina.
Em conferência de imprensa na tarde desta quinta, Fernández fez uma breve análise do primeiro ano de governo, destacando o que é motivo de grande orgulho para o governo: a renegociação da dívida externa.
"A Argentina se livrou de pagar 12,5 milhões de dólares de juros. Esses recursos podem ser aplicados em produção e em trabalho", disse.
"Com muito esforço, fizemos um grande trabalho, e graças aos argentinos que nos acompanharam, apesar dos que, por outro lado, não o fizeram", disse, referindo-se às correntes de direita que sustentaram uma pauta antiquarentena em uma estratégia sistemática de desestabilização do governo.
No entanto, a negociação da dívida não é bem vista por todos no campo progressista. Diversas correntes defendiam que o pagamento fosse suspenso.
Contradições
Neste primeiro ano, o governo Fernández revelou sua distância em relação à administração kirchnerista. Foi muito mais moderado e, em muitos aspectos, cedeu às pressões da direita e dos setores econômicos em detrimento das demandas da população.
"O governo de Fernández mostrou-se muito oscilante, com muitas idas e vindas", analisa o economista Claudio Katz. "É o mais conservador dentro do progressismo. Quem viveu o peronismo conhece muito bem esses processos e, por isso, essas contradições não surpreendem tanto", comenta.
A postura moderada de Fernández culminou no despejo mais emblemático do país, na localidade de Guernica, província de Buenos Aires. Uma ação violenta no meio da madrugada expulsou 2,5 mil famílias que ocupavam cerca de 100 hectares abandonados. O despejo foi comandado pelo ministro de segurança de Buenos Aires, Sergio Berni – uma das figuras mais contraditórias no governo, que constantemente se declara contra as organizações de direitos humanos.
O problema habitacional está longe de ser atendido, e não foi pauta prioritária no governo peronista. Muitas das famílias de ocupações ficaram sem moradia no contexto da pandemia, e enfrentaram o empobrecimento e a necessidade de acudir às chamadas "panelas populares", distribuição de comida gratuita e autogestionado pela própria comunidade.
"Além da pandemia do coronavírus, há a pandemia da desigualdade e da pobreza", comenta a jornalista Carina López Monja, integrante da Frente Pátria Grande e da Frente Popular Darío Santillán. "Não deram respostas aos bairros, sendo o caso da Ramona o mais conhecido, uma companheira da Villa 31 que denunciava a falta de água no bairro e faleceu justamente por coronavírus e pelas condições de vida", diz.
"A pandemia fez visível uma situação insustentável, essa situação de abandono que vivem milhares de famílias, em que, para garantir minimamente um teto para viver, a única opção que tinham era buscar terras ociosas e abandonadas. O problema é que a 'Política', com 'p' maiúsculo, ainda encara a ocupação como o dilema 'despejar ou não', quando a questão é fazer valer a Constituição e garantir moradia a todos."
Duas semanas após o despejo de Guernica, o governo enviou o projeto de lei de taxação das grandes fortunas, o mais progressista de seu governo, segundo analistas. Já aprovado, a lei consiste em um pagamento único aos mais ricos do país. "Mesmo que tenha esse 25% previsto para o extrativismo, não deixa de ser um imposto aos mais ricos, visando os mais pobres", destaca Katz. "E um projeto de lei dessas características nunca antes no mundo foi impulsionado pelo próprio governo."
Governar o desconhecido
Segundo a cientista política Tania Rodríguez, a defesa do trabalho foi parte da proposta de retomada das bandeiras do peronismo desde o início e, nesse sentido, destaca a agenda de reconstrução econômica e de reconhecimento de direitos trabalhistas.
"Depois, tinham uma agenda de ampliação de direitos humanos, das mulheres, do conjunto LGBT, a criação do Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidades; tudo isso foi uma marca inicial. Além disso, um conjunto de medidas que promoviam uma articulação quase direta com os movimentos sociais", diz.
Nesse sentido, destaca-se a sanção da lei do teletrabalho, que regulariza a situação dos que trabalham em casa de forma virtual, modalidade amplamente adotada no contexto da pandemia. "O que podemos avaliar de um ano tão extraordinário e atípico é em relação às medidas tomadas durante a pandemia", enfatiza Rodríguez.
"Em primeiro lugar, o governo se dedicou a analisar temas de trabalho e emprego, e implementou políticas de acompanhamento social e econômico: proibição de demissões sem causa, acordos com o setor empresarial para assumir parte do salário de seus empregados, créditos para pequenas e médias empresas, e, finalmente, o ingresso familiar de emergência", destaca, mencionando o auxílio emergencial adotado no país. Atualmente suspenso, o auxílio alcançou pelo menos 25% da população na Argentina.
Além disso, o governo tomou como medidas o congelamento de aluguéis e fixou por meio de decretos os Preços Máximos, que listavam produtos da cesta básica que não poderiam subir de preço nos supermercados. Ainda assim, os problemas habitacionais e de acesso a itens básicos do cotidiano foram expressivos.
"Essas medidas terminam não sendo refletidas nos fatos concretos, pela alta taxa de inflação, que esse ano fechará entre 35% e 37%", avalia Katz. "Os grandes grupos econômicos não estão satisfeitos e os setores populares estão perdendo renda. Cedo ou tarde, vão voltar às ruas e demandar o que lhes corresponde."
Coronavírus
Desde a chegada do coronavírus no país, em março, as prioridades do governo mudaram. "Mas nossos objetivos são e seguirão sendo os mesmos: produzir e dar trabalho", declarou Fernández nesta tarde. "Se não tivéssemos feito tudo o que fizemos, a indigência não seria de 10%, mas 27%; não teríamos 44% de pobreza, mas 54%. Isso foi resultado de um governo que não se fez de distraído", ele afirmou citando dados de uma pesquisa da Pontifícia Universidade Católica.
"Fizemos um trabalho incomum na política, de governar o desconhecido. Com muito esforço, sinto que fizemos um trabalho muito grande"
A reconstrução do Ministério da Saúde, desmontado no macrismo, foi fundamental para encarar o desafio que chegaria em março, e com a quarentena estrita desde os primeiros casos, foi possível ganhar tempo para reabrir e inaugurar novos hospitais e centros de saúde em todo o país.
Entre resistir às investidas de desestabilização da direita, acomodar os objetivos para medidas emergenciais diante da pandemia e lutar para estabelecer uma agenda própria, o governo de Fernández já mostrou, nesse conturbado primeiro ano, a força necessária para enfrentar os desafios próprios de um país em constante crise econômica como a Argentina.
A espera pela consolidação da agenda progressista que livrou a Argentina do neoliberalismo – e que ganhou novo fôlego com o tratamento do projeto de lei do aborto este mês – faz eco ao que o próprio presidente destacou, na tarde de hoje, um ano depois de tomar posse: "Temos todas as possibilidades de, unidos, levar o país adiante no ano que vem. Quero construir outra normalidade, e não voltar à que vivíamos antes", concluiu.
- Fernanda Paixão, Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |
Edição: Raquel Setz
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