Vitória de Assange, mas jornalismo investigativo está ameaçado
O momento é de júbilo, mas também de cautela e de luta contra o cerceamento do jornalismo investigativo
- Opinión
A juíza Vanessa Baraitser decidiu contra a extradição de Julian Assange para os Estados Unidos por questões humanitárias. Mas em seu parecer ela recusou os argumentos da defesa de que o julgamento não havia sido justo, que a acusação tinha fundamentação política, bem como que atentava contra a liberdade de expressão. Segundo a Federação Internacional de Jornalistas, “a juíza não reconheceu a ameaça à liberdade de imprensa que a extradição representava”.
Baraitser se posicionou contra a extradição de Julian por considerar a condição mental do jornalista. A Corte levou em conta a opinião do psiquiatra Michael Kopelman, de que Assange arranjaria uma forma de cometer suicídio caso fosse levado a julgamento nos Estados Unidos. Se condenado, o jornalista ficaria sujeito a uma sentença máxima de 175 anos de encarceramento por acusações de conspiração e espionagem.
Em grande parte, a deterioração do quadro de saúde de Assange decorreu das condições em que tem sido mantido na prisão de segurança máxima de Belmarsh, conforme relatado pelos advogados de Defesa. O especialista do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Nils Melzer, equiparou estas condições como sendo equivalentes à tortura psicológica, sem que no entanto a juíza tivesse intercedido na ocasião para aliviar estas condições. É de certa forma surpreendente que agora Baraitser recorra a uma justificativa humanitária para barrar a extradição de Julian.
Ainda não se trata da liberdade definitiva para Assange, pois os advogados que representam os Estados Unidos já anunciaram que irão recorrer do veredito. Entretanto, é improvável que Baraitser reverta sua decisão.
Os apoiadores de Assange comemoraram o resultado nas ruas próximas à Corte de Old Bailey, em Londres. O movimento favorável à liberdade de Assange na Inglaterra e nos Estados Unidos (pelo perdão presidencial) abrangeu um espectro político que incluiu desde a esquerda radical até a extrema direita, conforme relatado em artigo anterior do blog. Um retrospecto do caso também é apresentado no artigo citado.
Mas se a vitória do movimento #FreeAssange é motivo de júbilo para os defensores da liberdade de imprensa, o veredito também trouxe um sério temor. A porta ficou aberta para que jornalistas investigativos que publiquem vazamentos de documentos confidenciais possam ser processados e condenados.
Conforme mencionou o jornalista Owen Jones em artigo no The Guardian, a habilidade dos EUA desencadearem violência contra povos de outros países depende dos cidadãos norte-americanos não ficarem cientes das consequências de tais ataques na população civil. Jones lembra que o consentimento com a Guerra do Vietnã começou a colapsar quando imagens vindas do conflito mostraram crianças gritando, com as vestes e os corpos queimados pela ação de napalm1. Também foram determinantes as imagens do massacre de My Lai2.
O jornalista relata também que o uso de drones em ataques possibilitou que a morte de elevado número de civis não tivesse grande repercussão nos Estados Unidos. Esta foi uma prática recorrente durante o governo de Barack Obama. Donald Trump, ao mesmo tempo que quadriplicou o número de ataques por drones no Afeganistão, revogou a política de divulgação do número de civis mortos nos ataques.
O vazamento cometido por Chelsea Manning, analista de inteligência em uma base militar, possibilitou que o Wikileaks denunciasse ao mundo as atrocidades que as tropas norte-americanas estavam cometendo no Iraque e no Afeganistão. O vídeo de 2007 Collateral Murder mostra imagens perturbadoras da tripulação de uma aeronave rindo após matarem 12 civis. Também foram reveladas as mortes de centenas de civis no Afeganistão, que não haviam sido noticiadas pela mídia corporativa, lembra ainda Owen Jones.
Não constitui surpresa que em seu veredito Vanessa Baraitser não tenha se pronunciado contra a condenação de jornalistas que publiquem documentos de Estado confidenciais. Acredita-se que sua indicação para presidir o julgamento de Assange tenha partido da magistrada Lady Emma Arbuthnot, cujo esposo tem fortes ligações com setores militares e de segurança hostis ao Wikileaks, conforme relatado pelo Brasil de Fato. Como magistrada principal da Westminster Magistrates Court, Arbuthnot proferiu sentenças que impediram que Assange deixasse o Reino Unido para se exilar no Equador.
Portanto, o momento é de júbilo, mas também de cautela e de luta contra o cerceamento do jornalismo investigativo, para que atrocidades cometidas contra populações civis ou a vigilância do cidadão pelo Estado não sejam encobertas.
Notas do autor.
Napalm é uma arma química, consistindo de um líquido inflamável que foi utilizado em larga escala contra os resistentes vietnamitas, mas também contra a população civil.
O massacre de My Lai foi considerado um crime de guerra cometido pelas tropas norte-americanas no Vietnã em março de 1968. Mais de 500 civis sul-vietnamitas, incluindo 173 crianças e 182 mulheres (17 grávidas) foram executados na ocasião.
O autor é professor aposentado da UENF, e atualmente publica análises políticas no blogue Chacoalhando.