Os encantadores de serpentes da Casa da Justiça
Em 2013, a Desa iniciou a construção de uma hidrelétrica sem consultar a comunidade Lenca, que considera o rio um recurso sagrado e um bem comum. Berta Cáceres se opôs à construção da barragem de Agua Zarca e defendeu as terras do povo Lenca.
- Opinión
Em uma noite de domingo, em 21 de março de 2021, homens armados pararam Juan Carlos Cerros Escalante (41 anos) enquanto ele ia da casa de sua mãe para a sua, na aldeia de Nueva Granada, perto de San Antonio de Cortés (Honduras). Os pistoleiros abriram fogo em frente a uma igreja católica e mataram o líder das Comunidades Unidas na frente de seus filhos. Quarenta projéteis foram encontrados no local.
Jorge Vásquez, da Plataforma Nacional dos Povos Indígenas, disse que Juan Carlos Cerros foi ameaçado por ser uma liderança do povo Lenca e pela luta em defesa de suas terras. Cerros foi morto “por causa do trabalho que fazemos”, disse Vásquez. Nenhum de seus assassinos foi preso.
Duas semanas e meia depois, em 6 de abril, Roberto David Castillo Mejía foi até a Suprema Corte de Tegucigalpa, capital de Honduras. Castillo, ex-presidente da Desenvolvimentos Energéticos Sociedade Anônima (Desarrollos Energéticos Sociedad Anónima – Desa), empresa responsável pelo projeto da barragem de Agua Zarca no rio Gualcarque, foi acusado de ter sido o idealizador do assassinato de Berta Cáceres, líder do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh), em 2016. No dia seguinte, com base na contestação, o Tribunal concordou em suspender o julgamento pela quarta vez.
Antes da suspensão, a equipe jurídica que representa Berta e sua família apresentou novas provas que apontavam para uma conspiração mais ampla envolvendo a família Atala Zablah. Os advogados entraram com uma papelada que confirma um pagamento de mais de 1 milhão de dólares da Desa para a Potência e Energia da Mesoamérica S.A. (Potencia y Energia de Mesoamerica S.A. – Pemsa). Esse dinheiro foi do diretor financeiro da Desa, Daniel Atala Midence, para David Castillo, que encaminhou para o oficial militar Douglas Bustillo, coordenador do assassinato de Berta.
Em 2013, a Desa iniciou a construção de uma hidrelétrica sem consultar a comunidade Lenca, que considera o rio um recurso sagrado e um bem comum. Berta Cáceres se opôs à construção da barragem de Agua Zarca e defendeu as terras do povo Lenca. O que Vásquez disse sobre o assassinato de Carlos Cerros também vale para Berta: foi morta pelo trabalho que realizava. Sua família sustenta que sua morte é fruto de uma operação que envolveu a família Atala Zablah, os principais financiadores do projeto da barragem. Apesar dos apelos de Berta, a empresa dessa família, Investimentos La Jacaranda [Inversiones Las Jacaranda], pegou empréstimos do FMO (um banco de desenvolvimento holandês), FinnFund (um investidor de desenvolvimento finlandês) e do Banco Central Americano de Integração Econômica (uma instituição de desenvolvimento multilateral).
“Temos muitas incertezas”, me disse Bertha Zúniga Cáceres, filha de Berta Cáceres; “O sistema judiciário de Honduras nunca se importou com isso”. ‘Isso’, no caso, é o papel da Desa e de seus executivos. As autoridades têm protegido a família Atala Zablah e o partido no poder, que conspira para encobrir o crime.
Em 2009, o governo dos Estados Unidos participou ativamente e instigou a oligarquia a dar um golpe de Estado contra o governo progressista de Manuel Zelaya. Desde então, Honduras é governada pelo Partido Nacional, de extrema direita, cujo atual líder e presidente hondurenho é Juan Orlando Hernández (conhecido pelas suas iniciais, JOH). Depois do assassinato de Berta Cáceres, o ministro da Segurança do presidente Hernández, Julián Pacheco Tinoco, escreveu a Pedro Atala Zablah, um dos líderes dessa família e membro do conselho da Desa. Ele queria garantir à poderosa família que o governo não levaria o caso a sério. O assassinato, disse ele, seria visto como um “crime passional”. Bertha diz que “nem o exército agiu sozinho nem a empresa agiu sozinha”. Há “coordenação entre os centros de poder econômico e militar, que é a essência da ditadura sob a qual vivemos em Honduras”, disse.
Esta semana, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social publicou um dossiê sobre o golpe de 2009 e sobre o regime de JOH. Analisamos como esses processos criaram um clima de impunidade em relação à violência de classe por parte das elites – representada pelos Atala Zablahs – que se abateu sobre lideranças como Berta Cáceres e Carlos Cerros, pessoas corajosas que defendem a dignidade e a terra do povo em Honduras. Pesquisamos e redigimos o dossiê com o Copinh e o People’s Dispatch (agradecemos em especial a Zoe Alexandra). O dossiê Pobre nação: Honduras está sendo comida por dentro e por fora tem três partes:
- A parte 1 detalha o golpe de 2009, autorizado pelo governo dos Estados Unidos sob o presidente Barack Obama e sua Secretária de Estado, Hillary Clinton;
- A parte 2 desmascara a estrutura do terror de extrema direita semeada pelo regime golpista, que tem seus tentáculos nas profundezas do mundo do narcotráfico;
- A Parte 3 fornece três exemplos do amplo ataque à esquerda hondurenha: o assassinato de Berta, o ataque aos sindicatos e o desaparecimento forçado de lideranças Garífunas em julho de 2020.
A terceira seção termina com uma citação de Miriam Miranda, líder da Organização Fraternal Negra de Honduras (Ofraneh): “Estamos cansados das mentiras do governo de Honduras. [Os relatórios do governo] não têm substância. Não dizem nada. Fazem piada de nós, o povo Garífuna. Não queremos mentiras. Queremos a verdade. Queremos que a vida valha mais em nosso país. Temos que construir novos caminhos. Continuaremos lutando para que isso se torne realidade”.
Em Yoro, em Honduras, as pessoas falam da lluvia de peces, ou chuva de peixes, que comemoram com uma festa durante a estação das chuvas. Espera-se que milagres como esse salvem as pessoas das agruras da fome. Roberto Sosa (1930-2011), um dos grandes poetas de Honduras, nasceu em Yoro, mas se distanciou do milagroso em direção à política popular e à esquerda. Em 1968, ele publicou sua melhor coleção de poemas, Los pobres [Os pobres], que ganhou o Prêmio Adonáis. O título deste boletim informativo vem de um dos poemas dessa coleção, La Casa de la Justicia. Aqui está um trecho:
Entrei
na Casa da Justiça
em meu país
e comprovei
que é um templo
de encantadores de serpentes.
….
Juízes sombrios
falam de pureza
com palavras
que adquiriram
o brilho
de uma arma branca. As vítimas – em um contido espaço –
medem o terror de uma só golpe.
A frase de Roberto Sosa, “Entrei na Casa de Justiça do meu país e descobri que era um templo de encantadores de serpentes”, foi citada com frequência logo após o golpe de 2009 e nos anos que se seguiram. Após o golpe, Sosa disse que Honduras foi transformada em “um país carcerário”. “Hoje todo o país está militarizado”, disse, mas refugiou-se na “resistência massiva e organizada que não para de se manifestar contra o governo golpista, resistência que não recua”.
Ainda hoje, não há recuo nenhum para o povo de Honduras.
Edição: Douglas Matos
https://www.brasildefato.com.br/2021/04/19/os-encantadores-de-serpentes-da-casa-da-justica
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