O último a sair apague a luz

Colombia, Chile e El Salvador: três países, fatos diversos, características particulares, mas todos agrupados sob a crise do modelo.

07/05/2021
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
miliatres-044433.jpg
-A +A

Meu querido amigo Luis Casado me disse várias vezes que o título de meus artigos não corresponde ao conteúdo. Não lhe falta razão, reconheço que é uma habilidade que me escapa. Ao contrario, os textos de Luis dizem muito sobre seu título. Um de seus recentes artigos foi intitulado “Salvar o negócio”, e talvez não exista melhor forma de expresar as dificuldades pelas quais passa o sistema neoliberal de democracia representativa para manter o poder a qualquer preço, inclusive fazendo mudanças comésticas a fim de que “tudo mude para nada mudar”. O objetivo é manter privilégios à custa da exclusão e repressão das maiorias com um dos poucos recursos que lhes restam: o da força.

 

Ao observarmos alguns países da América Latina pode-se constatar tal situação. Ao escrever estas linhas, a Colômbia entra no seu oitavo dia de manifestações populares contra a reforma tributária imposta pelo governo de Iván Duque. Depois de 31 cidadãos assassinados pelas forças militares e policiais, 124 feridos, 13 pessoas com ferimentos oculares, 6 casos de agressão sexual, 726 detenções arbitrárias, 45 defensores dos direitos humanos presos ou impedidos de realizarem suas funções e 1089 casos de violencia policial, as manifestações persistem e as demandas têm sido ampliadas enquanto são feitos chamados desesperados para que se cesse o massacre. Em resposta, o comandante do Exército, falando como se estivesse numa guerra, informou que “tenho neste momento 480 homens orgânicos, que são 16 pelotões, mobilizados” (sic)”. E explicou que isso era apenas para cumprir a ordens iniciais do presidente da República. Para as seguintes, ele disporia de helicópteros tanto da polícia quanto do exército “que já estão prontos lá”, se referindo à cidade de Cali.

 

A força dos protestos forçou o governo a retirar a proposta de reforma tributária. Mas, tentando ganhar tempo por um lado e encobrir sua derrota por outro, o fez em duas fases. Inicialmente ordenou “a redação de um novo texto com a incorporação de propostas apresentadas por outros setores”, recuando quanto à aplicação do IVA (imposto de valor agregado) sobre alimentos, produtos e serviços, apesar de garantir com empáfia que “a ordem é não mudar as regras do jogo”. A resposta popular foi aumentar a pressão com uma manifestação pacífica, à qual o governo tentou sabotar infiltrando militares e policiais à paisana com a missão de instigar a violêcia a fim de justificar uma forte repressão. Neste cenário, o ex-presidente Uribe e seu partido chegaram a ponto de fazer um chamado público pela intensificação da repressão e a decretação do estado de “comoção interna”, nome pomposo que substituiu o “estado de sítio”, que proporciona ao presidente poderes absolutos.

 

Diante da situação, Duque anunciou sua decisão de retirar o projeto de reforma tributária do Congresso. A seguir, o ministro da Fazenda, Alberto Carrasquilla, principal formulador do projeto, pediu demissão, aplicando um golpe no governo do qual dificilmente se recuperará. Lamentavelmente, uma oposição covarde e oportunista (com poucas exceções) não se mostrou capaz de liderar a insatisfação popular e tem sido atropelada pela situação de ingovernabilidade só possível de se controlar com uma repressão extrema que faz lembrar os piores momentos das ditaduras latino-americanas. Neste contexto, foram organizações populares e sociais que assumiram a condução do processo, buscando dar forma ao espontaneísmo popular, à perda do medo e aos desejos de paz e democracia.

 

Paradoxalmente, ninguém, nem a esquerda, quer assumir a condução da crise ou propor a derrubada do que o povo, com autoridade, chama de ditadura de Uribe e Duque. Apesar da terrível situação que motivou as demandas populares, os políticos estão preocupados com as eleições. O analista colombiano Felipe Tascón Recio vislumbra “…a possibilidade de na próxima eleição surgir uma figura progressista, alheia ao poder tradicional na Colômbia”. Ele acrescentou que “uma série de fatores, incluindo a longa campanha eleitoral – desde 2017 até hoje – a fraude de 2018 e a falta de governabilidade de Duque, que nunca foi revertida, consolida a emergência de Gustavo Petro como personificação da mudança possível. É dizer que na conjuntura atual influem as pesquisas que dão vitória a Petro no primeiro turno em 2022”.

 

Algo semelhante ocorre no Chile depois que o Tribunal Constitucional, um dos últimos bastiões do pinochetismo, criado pela constituição ilegal como mecanismo para dirimir dúvidas a respeito da “constitucionalidade” das leis no país, rechaçou em 27 de abril recurso apresentado pelo governo de Sebastián Piñera contra a lei que permite uma terceira retirada de até 10% dos fundos de pensão, aplicando um duro golpe no presidente. A decisão obrigou Piñera – como a seu homólogo colombiano, durante a mesma semana - a descartar o veto presidencial e promulgar a lei aprovada por ambas casas do Congresso, inclusive com os votos de muitos parlamentares de sua coalizão.

 

A decisão do tribunal, o voto contrário ao presidente de vários parlamentares de sua base, o aberto descontentamento dos empresários com a situação do país e até as proibidas manifestações públicas de militares da reserva, que normalmente falam em nome dos da ativa, apontam para um isolamento quase total de Piñera, cujo governo não alcança nem dois dígitos de aprovação.

 

Entretanto, seria um erro supor que se chegou a essa situação apenas por uma crise entre a elite ou pela benevolência da classe dirigente. Ao contrário, em 15 de novembro de 2019 os partidos políticos de direita e de centro-direita concordaram em elaborar um plano para ludibriar o povo a fim de pôr fim às manifestações... como na Colômbia, “mudar tudo para que nada mude”.

 

Isto porque apesar da pandemia e de seu uso como mecanismo de controle do levante popular que ameaçava acabar com a institucionalidade pinochetista regulando a vida dos chilenos, o povo não tem cessado de manifestar seu repúdio ao regime. A disputa acabou envolvendo o Estado no marco de uma crise cada vez mais profunda.

 

Neste contexto, o longo processo de mobilização iniciado em outubro de 2019, com claros sinais de rebelião popular contra o sistema, apesar de no momento ter diminuído de intensidade devido à pandemia e à forte repressão, se mantém vivo, aprofundando a crise do modelo e da institucionalidade pinochetista vigente.

 

Assim, a greve nacional de 30 de abril foi realizada apesar de Piñera ter se visto obrigado a retroceder sobre o veto que pretendia impor. Neste sentido, foi determinante a grande paralisação prévia dos trabalhadores portuários que com sua ação aplicaram um duro golpe no modelo que se sustenta com exportações. Desta forma, foram criadas condições para a vitoriosa greve nacional de 30 de abril que significou um passo adiante na luta popular, frente à armadilha eleitoral envolvendo um plebiscito constitucional previsto para 15 de maio.

 

Em outra latitude, uma manifestação distinta da crise do modelo neoliberal e da democracia representativa ocorreu em El Salvador, com início em 1° de maio e com consequências ainda imprevisíveis. Aproveitando a esmagadora maioria parlamentar obtida na última eleição, o presidente Nayib Bukele ordenou a seu partido na Assembléia Nacional destituir todos os membros da Sala Constitucional (uma das quatro instâncias que forman a Corte Suprema de Justiça) e o procurador-geral da República, eliminando qualquer contrapeso político ao executivo, destruíndo um dos pilares da democracia representativa: a separação e independência dos poderes públicos.

 

De imediato surgiram denúncias de “golpe ou autogolpe de Estado" que se espalharam pelas redes sociais e em pronunciamento de opositores salvadorenhos, assim como de políticos de países vizinhos e organizações internacionais sob domínio imperial, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a “ONG” Human Right Watch, que advertiram sobre a suposta violação da independência de poderes e o risco de Bukele consolidar um regime autoritário. Esta hipocrisia é a maneira pela qual tentam justificar suas intervenções em outros países.

 

Bukele sempre deu sinais de ser averso a questionamentos, respondendo com ações repressivas que violavam direitos humanos , e tem sido um inimigo aberto da imprensa. Em fevereiro de 2020 confirmou seu desapreço para com a Constituição ao invadir a Assembléia Legislativa protegido por militares. Seu propósito golpista foi confirmado por ele mesmo quando em uma entrevista disse que “se fosse um ditador ou alguém que não respeita a democracia, teria tomado o controle de todo (o país) em 9 de fevereiro”. Posteriormente, em rede nacional de rádio e televisão em 6 de abril de 2020, afirmou que havia determinado ao ministro da Segurança para ser “mais duro com as pessoas na rua (...) Vamos detê-las e levá-las aos centros de detenção e lá vão ficar 30 dias em companhia de desconhedidos”. Ou seja, os acontecimentos de 1° de maio não foram uma surpresa, o problema é que desta feita escapou ao controle imperial.

 

No domingo, 2 de maio, a vice-presidenta dos Estados Unidos, Kamala Harris, expressou a “profunda preocupação” de seu governo “com a democracia em El Salvador”. A Comissão Interamericana de Direito Humanos (CIDH) pediu a Bukele que garantisse “a separação dos poderes e a ordem democrática”. Por seu lado, o secretario-geral da ONU, Antonio Guterres, exigiu que o presidente salvadorenho respeitasse a Constituição e a divisão de poderes. O secretário de Estado estadunidense, Antony Blinken, informou que havia telefonado para Bukele e manifestado a “grande inquietação” dos Estados Unidos. Até a OEA se pronunciou, rechaçando a destituição dos juízes e do procurador, assim como o papel desempenhado por Bukele na questão. A subsecretária de Estado para Assuntos do Hemisfério Ocidental Julie Chung, não muito coerente em suas declarações, afirmou que “uma forte relação entre os Estados Unidos e El Salvador dependerá do apoio do governo à separação dos poderes e às normas democráticas”.

 

Bukele respondeu em seu estilo habitual: “Queremos trabalhar com vocês, comercializar, viajar, nos conhecermos e ajudar no que possamos. Nossas portas estão mais abertas do que nunca. Mas com todo o respeito: Estamos limpando nossa casa... e isso não é da sua conta”.

 

Internamente, houve no início fortes reações de repúdio em setores da classe média, de intelectuais, universidades e sindicatos da pequena e média indústria e do comércio, muitos das quais apoiaram eleitoralmente Bukele. Surgiram críticas até mesmo em setores do Nuevas Ideas, o partido do governo. Tudo isso gera uma grande incerteza, já que não se sabe quais serão os próximos passos do mandatário.

 

Bukele bradou em 1° de maio que havia acabado a corrupção no Poder Legislativo e que tudo iria mudar, mas as medidas tomadas causaram perplexidade no país. Sabia-se que haveria mudanças, mas não na magnitude e forma como foram feitas.

 

O repúdio por parte de universidades e organizações de juristas foi contundente. Existe um grande temor da classe média que cheguem ao fim os 29 anos de paz vividos em El Salvador.

 

Os setores populares ainda não se manifestaram, parecendo que ainda não se deram conta da gravidade dos fatos. Isto é consequência do bem sucedido discurso populista de Bukele, que conseguiu convencer o povo de que os políticos são os responsáveis pela difícil situação econômica e devem ser destituídos para que se possa “limpar o país”.

 

Os acontecimentos tendem a acelerar processos que pareciam adormecidos devido ao controle absoluto que Bukele exerce sobre as instituições. Muitos setores que deram seu voto a ele acreditando que haveria "comida e emprego" começam a perceber o erro que cometeram, o que tende a reverter o grande apoio que desfruta o presidente.

 

Três países, fatos diversos, características particulares, mas todos agrupados sob a crise do modelo. Para os Estados Unidos, a tarefa é promover as mudanças necessárias para evitar uma putrefação, mantendo em suas posições peões controláveis que consigam amenizar a crise e restabelecer o controle desejado por Washington. É o que o Departamento de Estado, a CIA, o Comando Sul e toda a rede intervencionista criaram para manter o quintal sob controle.

 

* Tradução de Carlos Alberto Pavam

 

07/05/2021

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/O-ultimo-a-sair-apague-a-luz/6/50534

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/212155?language=en
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS