9 de julho: 205 anos de independência argentina e os desafios da soberania latino-americana
Especialistas avaliam como o país chega à data em relação à soberania política, independência econômica e justiça social
- Opinión
Em um dia como hoje, há 205 anos, um grupo de 29 deputados argentinos assinou a declaração de Independência, na província nortenha de San Miguel de Tucumán. Desde então, a Argentina é uma nação livre e exerce sua soberania sobre o território e o espaço marítimo compreendido na margem continental.
O exercício dessa independência, na conjuntura atual, pode ser problematizado em aspectos que envolvem a dívida externa, os acordos comerciais e o monocultivo – que condena toda a região ao mercado internacional –, o retorno de controle por um ano do Estado sobre o rio Paraná após 25 anos de concessão e a possibilidade de produzir e comprar vacinas no enfrentamento da pandemia da covid-19.
Na realidade latino-americana que conhecemos, a busca pela soberania é um desafio para todos os países, em suas distintas particularidades. Com idas e voltas, a trajetória da Argentina não escapa disso, especialmente em um momento em que os governos na região traçam linhas tão diversas entre si.
Vestígios da história
O passado colonial deixou marcas na construção de identidade argentina, comumente tendenciosa à cultura e "origem" europeia, evidenciada na polêmica fala do presidente Alberto Fernández há algumas semanas.
"Seguimos nesse debate sobre aonde vamos, o que somos e em que medida nos consideramos autônomos", pontua Amílcar Salas Oroño, doutor em ciências sociais e pesquisador integrante do Centro Estratégico Latino-americano de Geopolítica (Celag). "Essa é uma pergunta que ainda não tem uma grande resposta. Essa crise que vivemos, que é a crise mesma do capitalismo, desnuda as interrogações dos países em condição periférica – e inclusive a desorientação das elites."
As idas e voltas na região – que, nos anos 2000 viveu um cenário político alinhado e uma agenda progressista em comum – podem ser caracterizadas por essa condição de base, que Oroño chama de "periférico", em relação aos países economicamente dominantes.
Neste sentido, os conceitos de soberania política, independência econômica e justiça social estão profundamente interligados. Conceitos que ganharam particular potência na Argentina na década de 1940, com o governo de Juan Domingo Perón.
"Até os anos 40, Argentina teve laços bastante estreitos com a Grã-Betanha, até começar o processo de nacionalização em algumas empresas de serviços públicos e uma perspectiva nacionalista em termos de proteção social", conta. "O peronismo tinha princípios organizadores de sua doutrina política que se baseavam na independência econômica, na soberania política e na justiça social."
Como muitos outros países da região, a Argentina encara a década de 1990 golpeada pelas políticas econômicas iniciadas na ditadura.
"A ideia do que somos tem a ver com como nos vinculamos com o mundo, e nisso os anos 90 foram definitórios, porque entramos a essa globalização de uma forma neoliberal", pontua Oroño.
As bases do modelo da dependência
Partindo dos conceitos de soberania política e independência econômica, a concessão da administração sobre o rio Paraná-Paraguai e a subjugação econômica ao capital estrangeiro são questões centrais na política argentina atual que põem em xeque a possibilidade de soberania do país.
No caso do controle do Estado sobre as exportações e a dragagem do rio Paraná, ainda é uma decisão em suspenso: são apenas 12 meses até a próxima licitação, que pode incluir condições mais favoráveis ao país mas que, ainda assim, deixaria o rio mais importante do país, em todos os sentidos, em mãos estrangeiras.
Já no caso da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), contraída em 2018, os acordos que o governo busca para estender os prazos ainda deixariam o país subordinado, como afirmaram diversos especialistas no tema. No entanto, a ilegitimidade dessa dívida já foi conferida pelo próprio Banco Central, que emitiu um informe no qual mostra como atores ligados ao ex-presidente Mauricio Macri compraram o valor equivalente aos bilhões de dólares do empréstimo outorgado pelo FMI à Argentina.
"Perdemos uma enorme oportunidade de investigar essa dívida e suspender o pagamento", aponta Beverly Keene, integrante da Autoconvocatória pelo Não Pagamento da Dívida com o FMI. "As políticas econômicas dos nossos países não são tomadas por nossos países. Na Argentina, e praticamente em todos os países do Sul Global, falar de independência é bem difícil, porque ainda que, há dois séculos, se supõe que vivemos a independência política dos processos coloniais diretos, o que vivemos desde então são processos de dominação e dependência."
A dívida com o FMI é um dos pontos mais desafiadores do governo peronista pós-macrismo, um cenário difícil o suficiente mesmo antes da pandemia. Agora, em pleno ano eleitoral, o projeto de uma maior distribuição de renda – chave para o conceito de justiça social dessa filosofia política – acaba entrando em um campo contraditório quando falamos em soberania nacional.
"O governo de Fernández não se propõe a mudar os eixos do modelo que se baseia na especulação financeira e no extrativismo", opina Keene. "Esse modelo continua se impondo como a necessidade de endividar-se, algo que Eduardo Galeano descreveu muito bem em poucas palavras: 'quanto mais pagamos, mais devemos e menos temos'."
Um dos exemplos dessa contradição se inscreve no próprio projeto de contribuição solidária extraordinária, conhecido como imposto sobre as grandes fortunas. A maior parcela do arrecadamento será destinada à exploração e produção de energia na formação de Vaca Muerta, segunda reserva mundial de gás não convencional e 4ª de petróleo não convencional.
"A economia dos extrativismos significa, na Argentina, um enorme avanço da fronteira agrícola, do uso de agrotóxicos, da concentração de posse de terras e todos os temas que se relacionam a isso, como a megamineração e o fracking", afirma Keene. Estes últimos tópicos se relacionam diretamente à exploração de Vaca Muerta, na Patagônia.
Soberania nacional?
Em termos de enfrentamento à pandemia, a Argentina tem demonstrado vontade política para aplicar medidas de segurança sanitária e conseguir vacinas contra a covid-19. Neste sentido, apostou em acordos para transferência de tecnologia e já fabrica, em seu território, parte das vacinas da AstraZeneca e da Sputnik V.
Há algumas semanas, a vice-presidenta Cristina Fernández de Kirchner mencionou ainda uma proposta que entra em pauta no quesito saúde no país: a necessidade de realizar uma reforma sanitária. O médico cirurgião e ativista climático Carlos Ferreyra, formado em epidemiologia e saúde pública, trabalhou durante anos no Ministério da Saúde do país e conhece o assunto de perto.
"O que é soberania nacional? No contexto da saúde, é um processo pelo qual a sociedade tem a capacidade de responder, em seu conjunto, os desafios que, por exemplo, a pandemia pode gerar", diz. "Isso implica construir uma indústria própria, uma estrutura própria, a capacidade de respostas na atenção primária."
Neste sentido, os acordos para produção de vacinas através de patentes não são vistos como soluções soberanas. Como contraponto, o epidemiologista destaca o caso de Cuba, que desenvolveu vacinas nacionais com recursos e capacidade de pesquisa próprias. "O grave problema é que não podemos pensar em ganhar eleições com o que se fez durante a pandemia. Isso tem um ciclo de vida muito mais longo que um simples período eleitoral, de dois ou quatro anos", diz.
"Ainda damos subsídio à Vaca Muerta, produzimos carvão, gasolina, sabendo o dano que isso produz, tendo na Argentina ventos como em nenhum outro lugar do mundo para produzir energia eólica, energia solar", diz Ferreyra, ressaltando que lamenta ao pensar o mundo deixado para seus netos.
"O país não é o de 2810. Argentina é um país federal, e assim como devemos fazer uma reforma na saúde, também acredito que a solução é cidadã, porque os cidadãos devem começar a exigir uma mudança e ter uma nova constituição, que atualize a Argentina para os tempos que vivemos."
Edição: Vinícius Segalla
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