Democracia e direitos humanos: lutas por narrativas e não só

De acordo com a declaração conjunta da rússia e da china a democracia e os direitos humanos são valores universais e, como tal, pertença e responsabilidade da comunidade internacional no seu conjunto. Isto significa que nenhum país se pode arvorar em dono exclusivo desses valores.

17/02/2022
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No passado dia 4 de fevereiro teve lugar em Pequim um encontro de alto nível entre o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, e o Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin. No final da reunião foi emitida uma importante declaração conjunta a que os média ocidentais não deram qualquer atenção, apesar da sua relevância em vista do peso das potências em causa no contexto mundial.

 

No seu conjunto, os dois países constituem 20% da população mundial e 22% do PIB mundial. A Rússia e os EUA possuem cerca de 90% das armas nucleares com 6.255 ogivas e 5.550 ogivas respectivamente. O Pentágono calcula que a China tenha cerca de 350 ogivas. Segundo fontes norte-americanas, os russos terão cerca de 310 mísseis intercontinentais com uma capacidade para 1.189 ogivas nucleares. Por sua vez, a China superou os EUA em 2020 como o maior parceiro comercial do mundo.

 

Curiosamente, no mesmo dia em que os presidentes chinês e russo se encontravam, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovava uma lei para aumentar a fabricação norte-americana de semicondutores e reforçar a competição com a China.

 

À luz destes dados, a importância da declaração russo-chinesa decorre do contexto em que tem lugar a dupla escalada da crise na Ucrânia e da guerra fria com a China. Mas eu quero chamar a atenção para uma outra dimensão mais subtil e, em meu entender, mais importante desta declaração, tão pouco divulgada no Ocidente. Por isso mesmo, vou permitir-me dela citar longamente:

 

“As partes (i.e. Rússia e China) partilham o entendimento de que a democracia é um valor humano universal, e não um privilégio de um número limitado de Estados, e que a sua promoção e protecção são uma responsabilidade comum de toda a comunidade mundial.

 

As partes acreditam que a democracia é um meio de participação dos cidadãos no governo do seu país, com o objectivo de melhorar o bem-estar da população e implementar o princípio do governo popular. A democracia é exercida em todas as esferas da vida pública como parte de um processo nacional e reflecte os interesses de todo o povo, a sua vontade, garante os seus direitos, satisfaz as suas necessidades e protege os seus interesses.

 

Não existe um modelo único para orientar os países no estabelecimento da democracia. Uma nação pode escolher as formas e os métodos de implementação da democracia que melhor se adequam ao seu Estado em particular, com base no seu sistema social e político, na sua história, nas tradições e nas suas características culturais únicas. Cabe exclusivamente ao povo do país decidir se o seu Estado é democrático.

 

As partes consideram que a Rússia e a China, enquanto potências mundiais com um rico património cultural e histórico, têm tradições de longa data de democracia, que assentam em milhares de anos de experiência de desenvolvimento, amplo apoio popular e consideração das necessidades e interesses dos cidadãos. A Rússia e a China garantem ao seu povo o direito de participar, através de diversos meios e de várias formas, na administração do Estado e na vida pública, em conformidade com a lei. Os povos de ambos os países estão certos da forma como escolheram e respeitam os sistemas e as tradições democráticas de outros Estados.

 

As partes salientam que os princípios democráticos são aplicados a nível mundial, bem como na administração do Estado. As tentativas de certos Estados de impor a outros países os seus próprios “padrões democráticos”, de monopolizar o direito de avaliar o nível de cumprimento dos critérios democráticos, de traçar linhas divisórias com base na ideologia, nomeadamente através da criação de blocos exclusivos e de alianças de conveniência, são manifestações de desprezo pela democracia, indo contra o espírito e os verdadeiros valores da democracia. Tais tentativas de hegemonia representam sérias ameaças à paz e à estabilidade globais e regionais e comprometem a estabilidade da ordem mundial.

 

As partes acreditam que a defesa da democracia e dos direitos humanos não deve ser usada para pressionar outros países. Opõem-se ao abuso dos valores democráticos e à ingerência nos assuntos internos de Estados soberanos, sob o pretexto de proteger a democracia e os direitos humanos, bem como a quaisquer tentativas de incitar divisões e confrontos no mundo. As partes apelam à comunidade internacional para que respeite a diversidade cultural e civilizacional e os direitos dos povos de diferentes países à autodeterminação. Estão prontas a trabalhar em conjunto com todos os parceiros interessados em promover uma verdadeira democracia.

 

As partes salientam que a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelecem objectivos nobres na área dos direitos humanos universais, estabelecem princípios fundamentais, que todos os Estados devem cumprir e observar em actos. Ao mesmo tempo, uma vez que cada nação tem características nacionais únicas, a sua história, a sua cultura, o seu sistema social e o seu nível de desenvolvimento social e económico, a natureza universal dos direitos humanos deve ser vista através do prisma da situação real em cada país em particular, e os direitos humanos devem ser protegidos de acordo com a situação específica de cada país e as necessidades da sua população.

 

A promoção e a protecção dos direitos humanos são uma responsabilidade partilhada da comunidade internacional. Os Estados devem igualmente dar prioridade a todas as categorias de direitos humanos e promovê-los de forma sistémica. A cooperação internacional em matéria de direitos humanos deve ser levada a cabo como um diálogo entre iguais que envolva todos os países. Todos os Estados devem ter igual acesso ao direito ao desenvolvimento. A interacção e a cooperação em matéria de direitos humanos devem basear-se no princípio da igualdade de todos os países e do respeito mútuo, a fim de fortalecer a arquitectura internacional dos direitos humanos.”

 

Do meu conhecimento, é esta a primeira declaração em que com mais detalhe teórico-político o mundo herdeiro das revoluções socialistas do século XX se apropria do discurso internacional da democracia e dos direitos humanos para reivindicar a sua pertença a esse discurso e definir a sua posição nele.

 

Os traços fundamentais desta posição são os seguintes. Primeiro, a democracia e os direitos humanos são valores universais e, como tal, pertença e responsabilidade da comunidade internacional no seu conjunto. Isto significa que nenhum país (leia-se, EUA) se pode arvorar em dono exclusivo desses valores nem impor aos outros o entendimento específico que tenha deles.

 

Segundo, a democracia reside na participação dos cidadãos no governo do seu país e na melhoria do seu bem-estar. Mas como não há um modelo único válido universalmente, cada país deve adoptar as formas e os métodos que melhor se adequem ao seu sistema político, à luz da sua história e da sua cultura.

 

Terceiro, decorre daqui que só povo de cada país pode decidir se o Estado é ou não democrático. Este é particularmente o caso de países como a China e a Rússia, duas potências mundiais “com uma história milenar e um rico património cultural, com tradições de democracia de longa data e milhares de anos de experiência de desenvolvimento” (leia-se, com uma história muito mais longa e rica que a dos EUA).

 

Quarto, qualquer país que monopolize os critérios da democracia e os procure impor a outro país usando meios que o excluam da comunidade internacional está a violar a democracia que diz respeitar. A democracia e os direitos humanos não devem ser usados para justificar ingerências nos interesses internos de Estados soberanos. Deve, pelo contrário, respeitar-se a diversidade cultural e os direitos dos povos à auto-determinação.

 

Quinto, a Carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelecem objectivos nobres que todos os países devem respeitar em actos, e não apenas em declarações. O respeito por estes valores deve ter presente as necessidades concretas e a situação real de cada país. Sexto, todas as categorias (leia-se, não apenas as que convêm a certo país num certo contexto) de direitos humanos devem ser promovidas e de forma sistémica. Só assim se fortalece a cooperação internacional e se garante a cada país o direito ao desenvolvimento.

 

Esta declaração contém uma teoria política que merece reflexão. Sobretudo num momento em que os EUA, sem dúvida o alvo principal desta declaração, arrogando-se o privilégio de guardiães universais da democracia e do direitos humanos, cada vez mais nos chocam com actos anti-democráticos e violações grosseiras de direitos humanos, desde o fomento de golpes de estado para provocar “regime change” à promoção de grupos (religiosos e seculares) de extrema-direita, de execuções extrajudiciais de líderes de outros países à destruição pela guerra de países inteiros para garantir o acesso aos recursos naturais, da promoção artificial da ameaça da guerra para satisfazer a voracidade da sua indústria militar à asfixia de países com embargos e sanções que não respeitam sequer os princípios da ajuda emergencial humanitária.

 

A reflexão sobre esta declaração torna-se tanto mais urgente quanto mais evidente se torna o uso oportunista e interesseiro que os EUA fazem dos direitos humanos para favorecer os seus interesses. Dois exemplos. Em declaração recente, Nancy Pelosi, líder democrata da Câmara dos Representantes, afirmava a necessidade de “responsabilizar” a China pelos seus abusos comerciais, que “prejudicam os trabalhadores norte-americanos”. Ou seja, as violações dos direitos humanos dos uigures são criticáveis porque criam concorrência desleal que prejudica os trabalhadores norte-americanos, como se a deslocalização, em busca de salários baixos, das empresas norte-americanas para a China há mais de trinta anos, não tivessem prejudicado os trabalhadores norte-americanos.

 

Segundo exemplo, o Presidente Biden acaba de permitir que os fundos (dólares e ouro) congelados do Afeganistão sejam utilizados para pagar indemnizações às vítimas do 11 de setembro. Isto apesar de nenhum terrorista no ataque às Torres Gémeas ser do Afeganistão e este país estar a viver uma crise humanitária sem precedentes, com fome e malnutrição a atingir mais de metade da população. Isto apesar de o PIB per capita dos EUA ser 69.375 dólares e o do Afeganistão, 553 dólares e este país estar a viver uma diminuição de 30% do PIB.

 

Todos os democratas do mundo têm interesse em ler atentamente a declaração e ver o que nela é correcto, aceitável ou criticável. Os brasileiros e brasileiras têm um interesse especial. É que um dos temas da declaração versa sobre os BRICS de que o Brasil é membro. Diz a declaração:

 

“As partes apoiam a parceria estratégica aprofundada no âmbito dos BRICS e promovem a cooperação alargada em três áreas principais: política e segurança, economia e finanças e intercâmbios humanitários. Em particular, a Rússia e a China pretendem incentivar a interacção nas áreas da saúde pública, da economia digital, da ciência, da inovação e da tecnologia, incluindo as tecnologias de inteligência artificial, bem como uma maior coordenação entre os países BRICS em plataformas internacionais. As partes esforçam-se por reforçar ainda mais o formato BRICS Plus/Outreach como um mecanismo eficaz de diálogo com associações e organizações de integração regional de países em desenvolvimento e Estados com mercados emergentes. A parte russa apoiará plenamente a parte chinesa na presidência da associação em 2022 e contribuirá para o êxito da realização da XIV Cimeira dos BRICS”.

 

Ora, em 2022 há eleições no Brasil e nessas eleições, entre muitas outras coisas, vai decidir-se o futuro do envolvimento do Brasil nos BRICS.

https://www.alainet.org/pt/articulo/214943?language=es
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