As democracias ocidentais se tornaram propagandistas de guerra

Diante da crise internacional revela-se o fator propagandístico das relações políticas que os governos ocidentais empregam na construção do inimigo. 

23/02/2022
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A profecia de Marshall McLuhan de que “a sucessora da política será a propaganda” se confirmou. A propaganda crua é agora a regra nas democracias ocidentais, especialmente nos EUA e na Grã-Bretanha.

 

Em questões de guerra e paz, fraudes ministeriais são reportadas como se notícias fossem. Fatos inconvenientes são censurados, demônios são estimulados. É o modelo das relações públicas, a moeda desta era. Em 1964, McLuhan fez a famosa declaração de que “o meio é a mensagem”. A mentira é a mensagem agora.

 

Mas seria isso novo? Já se vai mais de um século desde que Edward Bernays, o pai da manipulação corporativa, inventou as “relações públicas”, um disfarce para a propaganda de guerra. O que é novo é a virtual eliminação do dissenso nos meios convencionais.

 

O grande editor David Bowman, autor de The Captive Press (A imprensa cativa, em tradução livre), chamou isso de “uma defenestração de todos os que se recusam a seguir uma linha e engolir o intragável e que sejam corajosos”. Ele se referia a jornalistas independentes e denunciantes (whistleblowers), os dissidentes honestos a quem as organizações de mídia costumavam dar espaço, muitas vezes com orgulho. Esse espaço foi abolido.

 

A histeria de guerra que avançou como um maremoto nas últimas semanas e meses é o exemplo mais impressionante. No jargão, trata-se de “moldar a narrativa”; muito disso, se não a maior parte, é pura propaganda.

 

Os russos estão chegando. A Rússia é pior do que ruim. Putin é mau, “um nazista como Hitler”, disse o parlamentar trabalhista britânico Chris Bryant. A Ucrânia está prestes a ser invadida pela Rússia – esta noite, esta semana, semana que vem. As fontes incluem um ex-propagandista da CIA que agora fala pelo Departamento de Estado dos EUA e não oferece evidências de suas alegações sobre as ações russas porque elas “vêm do governo dos EUA”.

 

A regra da ausência de provas também se aplica em Londres. A secretária de Relações Exteriores britânica, Liz Truss, que gastou 500.000 euros em dinheiro público voando para a Austrália em um avião particular para alertar o governo de Camberra que tanto a Rússia quanto a China estavam prestes a atacar, não ofereceu nenhuma evidência. As cabeças dos antípodas assentiram; a “narrativa” não é contestada ali. Uma rara exceção: o ex-primeiro-ministro Paul Keating chamou o belicismo de Truss de “demente”.

 

Truss confundiu alegremente os países do Mar Báltico e do Mar Negro. Em Moscou, ela disse ao ministro das Relações Exteriores russo que a Grã-Bretanha nunca aceitaria a soberania russa sobre Rostov e Voronezh – até que lhe foi dito que esses lugares não faziam parte da Ucrânia, mas sim da Rússia. Ler a imprensa russa sobre a palhaçada desta pretendente a primeira-ministra inglesa nos leva a se encolher de vergonha.

 

Toda essa farsa, recentemente estrelada por Boris Johnson em Moscou, onde interpretou uma versão palhacesca de seu herói, Churchill, poderia ser apreciada como sátira, não fosse por seu abuso intencional dos fatos e da compreensão histórica, além do perigo real da guerra.

 

Vladimir Putin fala do “genocídio” no leste da Ucrânia, na região do Donbass. Após o golpe de 2014 na Ucrânia – orquestrado pela “linha de frente” do presidente Obama em Kiev, Victoria Nuland – o regime golpista, infestado de neonazistas, lançou uma campanha de terror contra o Donbass, onde predominante se fala russo e cujos residentes correspondem a um terço da população da Ucrânia.

 

Supervisionados pelo diretor da CIA em Kiev, John Brennan, “unidades especiais de segurança” coordenaram ataques selvagens contra o povo de Donbass, que se opunha ao golpe. Vídeos e relatos de testemunhas oculares mostram bandidos fascistas em ônibus queimando a sede da Casa dos Sindicatos na cidade de Odessa, matando 41 pessoas dentro. A polícia só assistiu. Obama parabenizou o regime golpista “devidamente eleito” por sua “notável contenção”.

 

Na mídia dos EUA, a atrocidade de Odessa foi minimizada como “obscura” e uma “tragédia” na qual “nacionalistas” (neo-nazistas) atacaram “separatistas” (pessoas coletando assinaturas para um referendo sobre uma Ucrânia federal). O Wall Street Journal de Rupert Murdoch condenou as vítimas – “Incêndio mortal na Ucrânia provavelmente desencadeado por rebeldes, diz o governo”.

 

O professor Stephen Cohen, aclamado como a maior autoridade sobre Rússia nos EUA, escreveu:

 

“A queima, ao estilo dos pogroms, de russos étnicos e outras pessoas em Odessa […] reavivou as memórias sobre esquadrões de extermínio nazistas na Ucrânia durante a Segunda Guerra. […] [Hoje] ataques de tropas de assalto contra gays, judeus, russos étnicos idosos e outros cidadãos ‘impuros’ são comuns em toda a Ucrânia governada por Kiev, bem como marchas à luz de tochas que lembram aquelas que eventualmente inflamaram a Alemanha no final dos anos 1920 e 1930. […]”

 

“A polícia e as autoridades legais não fazem virtualmente nada para prevenir esses atos neofascistas ou para puni-los. Pelo contrário, Kiev oficialmente os encorajou, ao reabilitar sistematicamente e até homenagear colaboradores ucranianos dos pogroms nazistas alemães […], renomeando ruas em sua honra, construindo monumentos a eles, reescrevendo a história para glorificá-los e mais. […]”

 

Hoje, a Ucrânia neonazista raramente é mencionada. Que os britânicos estejam treinando a Guarda Nacional Ucraniana, que inclui neonazistas, não é novidade. (Veja o relatório Declassified de Matt Kennard no Consortium News em 15 de fevereiro.) O retorno do fascismo violento e endossado à Europa do século 21, para citar Harold Pinter, “nunca aconteceu… mesmo enquanto estava acontecendo”.

 

Em 16 de dezembro, as Nações Unidas apresentaram uma resolução que propunha “combater a glorificação do nazismo, neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar formas contemporâneas de racismo”. As únicas nações que votaram contra foram os Estados Unidos e a Ucrânia.

 

Quase todos os russos sabem que foi através das planícies da “fronteira” da Ucrânia que as divisões de Hitler vieram em 1941, reforçadas pelos cultistas e colaboradores nazistas ucranianos. O resultado foi mais de 20 milhões de russos mortos.

 

Deixando de lado as manobras e o cinismo da geopolítica, sejam quais forem os atores, essa memória histórica é a força motriz por trás das propostas de segurança autoprotetivas da Rússia, que foram publicadas em Moscou na semana em que a ONU votou por 130 a 2 para proibir o nazismo. Elas são:

 

  • A garantia por parte da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) de que mísseis não serão instalados em nações vizinhas à Rússia. (Eles já se fazem presentes da Eslovênia até a Romênia, com a Polônia a seguir).
  • Que a OTAN pare seus exercícios militares e navais em nações e oceanos nas fronteiras da Rússia.
  • Que a Ucrânia não se torne um estado-membro da OTAN.
  • Que o Ocidente e a Rússia assinem um pacto vinculativo de segurança Leste-Oeste.
  • Que o tratado entre os EUA e a Rússia sobre armas nucleares de alcance intermediário seja reabilitado. (Os EUA abandonaram o tratado em 2019).

 

Trata-se de um esboço abrangente de um plano de paz para toda a Europa do pós-guerra e deveria ser bem recebido no Ocidente. Mas quem entende seu significado na Inglaterra? O que lhes é dito é que Putin é um pária e uma ameaça à cristandade.

 

Os ucranianos falantes de russo, sob bloqueio econômico de Kiev há sete anos, lutam por sua sobrevivência. O exército “massivo” do qual raramente ouvimos falar são as 13 brigadas do exército ucraniano sitiando Donbass: cerca de 150.000 soldados. Se eles atacarem, a provocação à Rússia quase certamente significará guerra.

 

Em 2015, mediados pelos alemães e franceses, os presidentes da Rússia, Ucrânia, Alemanha e França se reuniram em Minsk e assinaram um acordo de paz provisório. A Ucrânia concordou em oferecer autonomia ao Donbass, agora sob as autodeclaradas repúblicas de Donetsk e Lugansk.

 

O acordo de Minsk nunca teve uma chance. Na Inglaterra, a linha, ampliada por Boris Johnson, é que a Ucrânia está sendo “ditada” por líderes mundiais. De sua parte, a Grã-Bretanha está armando a Ucrânia e treinando seu exército.

 

Desde a primeira Guerra Fria, a OTAN efetivamente marchou até a fronteira mais sensível da Rússia, tendo antes demonstrado sua agressividade sangrenta na Iugoslávia, Afeganistão, Iraque e Líbia e quebrado promessas solenes de recuar. Tendo arrastado “aliados” europeus para guerras americanas que não lhes dizem respeito, o grande não-dito é que a OTAN é a verdadeira ameaça à segurança europeia.

 

Na Grã-Bretanha, uma xenofobia estatal e midiática é desencadeada com a simples menção da “Rússia”. Perceba a hostilidade instintiva com que a BBC relata a Rússia. Por quê? Será porque a restauração da mitologia imperial exige, acima de tudo, um inimigo permanente? Certamente, nós merecemos algo melhor.

https://www.alainet.org/pt/articulo/214986?language=es
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