Francisco se fez nu para cobrir o nu do Papa
10/04/2013
- Opinión
Sabem os historiadores que o Papa do tempo de São Francisco, Inocêncio III (1198-1216), levara o Papado a um apogeu e esplendor como nunca houve antes nem haverá depois. Hábil político, conseguiu que todos os reis, imperadores e senhores feudais, a exceção de apenas alguns, fossem seus vassalos. Sob a sua regência estavam os dois poderes supremos: o Império e o Sacerdócio. Era pouco ser sucessor do pescador Pedro. Declarou-se “representante de Cristo”, não do Cristo pobre, andando pelas poeirentas estradas da Palestina, profeta peregrino, anunciador de uma radical utopia, a do Reino do amor incondicional ao próximo e a Deus, da justiça universal, da fraternidade sem fronteiras e da compaixão sem limites. Seu Cristo é o Pantocrator, o Senhor do Universo, cabeça da Igreja e do Cosmos.
Esta visão favoreceu a construção de uma Igreja monárquica, poderosa e rica mas absolutamente secularizada, contrária a tudo o que é evangélico. Tal realidade só podia provocar uma reação contrária entre o povo. Surgiram os movimentos pauperistas, de leigos ricos que se faziam pobres. Por sua conta pregavam o evangelho na língua popular: o evangelho da pobreza contra o fausto das cortes, da simplicidade radical contra a sofisticação dos palácios, da adoração do Cristo de Belém e da Crucificação contra a exaltação do Cristo Rei todo poderoso. Eram os valdenses, os pobres de Lyon, o seguidores de Francisco, de Domingos e dos sete Servos de Maria de Florença, nobres que se fizeram mendicantes.
Apesar deste fausto, Inocêncio III foi sensível a Francisco e aos doze companheiros que o visitaram, esfarrapados, em seu palácio em Roma, pedindo licença para viverem segundo o Evangelho. Comovido e com remorsos, o Papa lhes concedeu uma licença oral. Corria o ano 1209. Francisco nunca esquecerá este gesto generoso.
Mas a história dá as suas voltas. O que é verdadeiro e imperativo, chegado o momento de sua maturação, se revela com uma força vulcânica. E se revelou em 1216 em Perúgia para onde fora o Papa Inocêncio III a um de seus palácios.
Eis que ele morre subitamente, depois de 18 anos de pontificado triunfante. Logo sons lúgubres de canto gregoriano se fazem ouvir, vindos da catedral pontifícia. Executa-se o grave planctum super Innocentium (“o pranto sobre Inocêncio”).
Mas nada detém a morte, senhora de todas as vaidades, de toda a pompa, de toda glória e de todo o triunfo. O esquife do Papa jaz à frente do altar-mr: coberto de ouropéis, joias, ouro, prata e os signos do duplo poder sagrado e secular. Cardeais, imperadores, príncipes, monges filas de fiéis se sucedem na vigília. É o bispo Jacques de Vitry vindo de Namur e depois feito Cardeal de Frascati que o conta.
É meia-noite. Todos se retiram pesarosos. Apenas o bruxulear das velas acesas projetam fantasmas nas paredes. O Papa, outrora, sempre cercado por nobres, está agora só com as trevas. Eis que ladrões penetram sorrateiramente na catedral. Em poucos minutos espoliam seu cadáver de todas as vestes preciosas, do ouro, da prata e das insígnias papais.
Aí jaz um corpo desnudo, já quase em decomposição. Realiza-se o que Inocêncio III deixara exarado num famoso texto sobre “a miséria da condição humana”. Agora ela é demonstrada com toda a sua crueza em sua própria condição.
Um pobrezinho, fétido e miserável, se escondera num canto escuro da catedral para vigiar, rezar e passar a noite junto ao Papa. Ele tirou a túnica rota e suja, túnica de penitência. E com ela cobriu as vergonhas do cadáver violado.
Sinistro destino da riqueza, grandiosidade do gesto da pobreza. A primeira não o salvou do saque, a segunda o salvou da vergonha.
Concluíu o Cardeal Jacques de Vitry: ”Entrei na igreja e me dei conta, com plena fé, quanto é breve a glória enganadora deste mundo”
Aquele que todos chamavam de Poverello e de Fratello nada disse nem pensou. Apenas fez. Ficou nu para cobrir o nu do Papa que um dia lhe aprovara o modo de vida. Francisco de Assis, fonte inspiradora do Papa Francisco de Roma.
- Leonardo Boff é Teólogo/Filósofo e autor do livro Francisco de Assis: ternura e vigor (Vozes) 1999.
https://www.alainet.org/pt/articulo/75250
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