Sociedade civil propõe ao Papa Francisco de falar sobre a dívida social com relação a crianças de rua
25/07/2013
- Opinión
De acordo com o último levantamento divulgado pelo Governo Federal, em 2011/2012 o Brasil apresentava 23.973 crianças e adolescentes vivendo nas ruas de 75 cidades do país com mais de 300 mil habitantes. Esse cenário reflete a violação dos direitos de crianças e adolescentes que estão entregues à própria sorte e sobrevivem nas ruas e praças das grandes cidades brasileiras, expostos a toda forma de violência.
Tal realidade faz parte do país há muito tempo, mas só em 23 de julho de 1993 a população brasileira foi impulsionada a agir, diante do episódio memorável acontecido na cidade do Rio de Janeiro, conhecido por "Chacina da Candelária”, onde em frente à Igreja da Candelária policiais abriram fogo contra cerca de 70 crianças e adolescentes que dormiam no entorno da Igreja.
Com o intuito de mudar esta perspectiva, foi criada a Campanha Nacional de Enfrentamento à Situação de Moradia nas Ruas de Crianças e Adolescentes – Criança Não é de Rua (1) -, uma iniciativa para a construção efetiva de uma nova realidade, capaz de gerar alianças e propostas de mudanças imediatas e de longo prazo, visando viabilizar a construção de uma alternativa real à vida nas ruas.
A ação distingue "a criança e o adolescente em situação de trabalho na rua” da "criança e do adolescente em situação de moradia na rua” e "da criança e do adolescente que moram com a sua família na rua”.
A Campanha, formada por organizações da Sociedade Civil e do Poder Público, incentiva o diálogo sobre a importância da aproximação feita pelos educadores sociais na rua, da convivência familiar e comunitária, dos espaços de acolhimento institucionais governamentais e não governamentais, além das políticas públicas, financiamento governamental, e tecnologias sociais que envolvem as crianças e os adolescentes nesta triste situação.
Em entrevista à ADITAL, o secretário geral da campanha, Bernardo Rosemeyer, disse que “Estamos elaborando em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e nossa rede de parceiros da sociedade civil, uma política nacional com programas e ações muito bem definidas e focadas na garantia do direito à convivência familiar e comunitária. Por trás de cada criança abandonada nas ruas à própria sorte, existe uma família que foi abandonada pela ausência de políticas estatais e pela própria sociedade brasileira. Precisamos de uma política que devolva a dignidade para estas famílias, deste modo as crianças não precisarão voltar as costas para seu núcleo familiar. Temos certeza absoluta: investir nas famílias destas crianças é o caminho mais seguro para que elas não pensem em habitar as ruas e praças do país “(2).
Jorge Mario Bergoglio, o novo Papa Francisco I, considera a "dívida social como uma acumulação de privações e carências em diversas dimensões que têm que ver com as necessidades do ser pessoal e social - noutros termos, como uma violação do direito de desenvolver uma vida plena (...) activa e digna, num contexto de liberdade, igualdade de oportunidades e progresso social. E o fundamento ético a partir do qual se há-de julgar a dívida social como imoral, injusta e ilegítima, radica no reconhecimento social que se tem do grave dano que a suas consequências geram sobre a vida, o valor da vida, e, portanto sobre a dignidade humana".
"Os direitos humanos (...) não se violam apenas pelo terrorismo, a repressão, os assassínios, mas também pela existência de condições de extrema pobreza e de estruturas económicas injustas que originam as grandes desigualdades" (3).
O novo Papa já se referiu muitas vezes ao que chama de dívida social imoral e injusta. A viagem do Papa Francisco ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, a primeira de seu pontificado ao exterior, pode ser um oportunidade por considerar a dívida social com relação à problemática dos meninos/as de rua.
Carta aberta à ONU: é necessária uma visão mais completa da realidade das crianças que trabalham ou vivem na rua
Prossegue o debate sobre as modalidades de abordagem à problemática dos meninos e meninas que trabalham na rua.
Para o operador de redes internacionais para a defesa dos direitos da criança na América Latina e co-fundador do Observatório Selvas, Cristiano Morsolin, a violência social, nas suas mais diversas manifestações como conflito armado, criminalidade, violência institucional e de gênero, “é um dos problemas mais graves que existe hoje na América Latina”.
Na ordem do dia dos trabalhos da 19ª Sessão do Conselho dos Direitos Humanos, em Genebra (de 27 de fevereiro a 23 de março 2012), foi a apresentação de uma relação global sobre as crianças, eles/elas, que trabalham ou vivem na rua. Uma carta aberta ao Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Sra. Navanethem Pillay, firmada por 74 especialistas do mundo acadêmico e da sociedade civil de tudo o mundo, toma as distâncias e propõe um novo método.
A carta, realizada com a contribuição de 74 especialistas de todo o mundo, através da coordenação de Cristiano Morsolin, para a América Latina, e de Antonella Invernizzi e Brian Milne, para a Europa, África e Ásia, abre-se manifestando de imediato uma preocupação: “Examinamos os documentos e o material apresentados no sítio, e acreditamos que se deva criar um questionário mais amplo e melhor estruturado de tais conhecimentos, para sustentar e promover políticas válidas e eficientes, como também para promover os direitos das crianças que trabalham e/ou vivem na rua; estão ausentes alguns aspectos que requerem um aprofundamento maior, como, por exemplo, a importância de reconhecer os direitos econômicos, sociais e culturais (DESC) das crianças e dos adolescentes”.
A carta aberta assinala, além disso, o limitado do estudo, que analisa somente os anos de 2000 a 2010, esquecendo toda a produção acadêmica precedente: “Não estão incluídas todas as opções derivadas das pesquisas e das experiências anteriores a 2000, que acreditamos deveriam estar disponíveis para o planejamento e a formulação de políticas e programas. Não sabemos se este é um resultado esperado ou não; todavia, parece que a abordagem baseada nos direitos humanos está esmagada pela perspectiva protecionista e/ou assistencialista, mas não por uma visão inclusiva”.
Os especialistas propõem um exame exaustivo sobre: as exigências de pesquisa e as metodologias; a agência das crianças e adolescentes e a sua participação; o conjunto das pesquisas e da experiência adquirida nos últimos 30 anos; a variedade dos contextos econômicos, sociais, culturais e políticos; uma abordagem baseada nos direitos humanos, que seja de orientação aos governos e às organizações.
“Acreditamos que seja fundamental que nesse processo se reflitam todas as abordagens e todas as metodologias” – sublinha-se na carta apresentada por ocasião da atual Sessão do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra.
Entre os subscritores da carta estão o Reitor da Universidade Politécnica Salesiana, do Equador, Pe. Javier Herrán; Jaap E. Doek, Presidente da Comissão ONU pelos direitos da criança no 2001-2007; Lucero Zamudio, coordenadora da Rede Latino-americana de Mestrados em direitos da infância; Maurício Roberto da Silva, Professor da Universidade Chapecó-Santa Catarina; Manfred Liebel, coordenador da rede de Universidades Europeias ENMCR; Aurelie Leroy-CETRI (4).
Essa carta foi apresentada no IV Congresso Internacional de Pedagogia Social CIPS (5)- ocorreu em duas universidades de Campinas (UNICAMP e UNISAL) e em São Paulo (PUC/USP/MACKENZIE) no julho 2012 e no Brasil teve o apoio do Senador Cristovam Buarque, já Ministro da Educação (6).
O espaço do IV Congresso Internacional de Pedagogia Social (7) foi importante por despertar interes sobre a carta aberta no dialogo com o mundo acadêmico e os movimentos sociais da infância como o Movimento Meninos/as de Rua do Brasil, como explicou Jacyara Silva de Paiva, docente da Universidade Estácio de Sá-ES e Verônica Regina Muller, coordenadora do Programa Multidisciplinar de Estudos, Pesquisa e Defesa da Criança e do Adolescente, da Universidade Estadual de Maringá.
Muito interessante foi à apresentação do livro “Crianças dos países de língua Portuguesa: historias, culturas e direitos”; Verônica Regina Muller explicou que “fala-se português na África, na Ásia, na Europa e na America do Sul, o que nos permite afirmar que os achados deste estudo revelam uma dinâmica representativa da diversidade na percepção da infância presente no mundo globalizado”.
Shara Jane Holanda Costa Adad, professora adjunto no Departamento de Fundamentos da Educação, do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Piauí, falou sobre seu livro “Corpos de Rua – Cartografia dos saberes juvenis e o sociopoetizar dos desejos dos educadores”.
Jacyara Silva de Paiva, professora da Universidade Estácio de Sá-ES, apresentou sua tesis COMPREENDENDO AS VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS, PRODUZIDAS NA EDUCAÇÃO SOCIAL DE RUA: DESVELAMENTOS PERTINENTES AO EDUCADOR SOCIAL DE RUA, Tese de doutorado apresentada ao Curso de Doutorado em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo com co-orientador: Prof. Dr. Roberto da Silva.
Participação politica frente à violência e criminalização
Es importante analizar às causas econômicas, sociais e culturais das formas de violência no Brasil.
“Ser pobre não significa apenas não obter serviços de educação e saúde adequados, ou trabalho, mas também sofrer violência em seus territórios e suas casas envolvendo a exclusão. Há uma estereotipagem dos pobres como criminosos através da mídia e até autoridades públicas, fazendo com que pessoas, em especial os jovens negros, sejam estigmatizadas pelo local onde moram”, afirmou Michael Miller, um dos diretores da OMCT.
Uma das soluções apontadas no relatório “A Criminalização da Pobreza no Brasil” - preparado pela ONG Justiça Global, junto ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e a Organização Mundial Contra Tortura (OMCT), é a diminuição da violência nos territórios mais afetados pela força policial e a potencialização cultural e econômica desses locais. O treinamento policial mais adequado, encorajando o uso de armas não letais, e a possibilidade real de acesso à educação de qualidade e a boa remuneração no setor formal, ao invés da discriminação, também são alternativas apresentadas no relatório.
No processo de produção ocorreram missões em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Segundo Eulange Souza, integrante do MNMMR, Recife foi escolhido por ser uma das regiões mais violentas do país onde as crianças e adolescentes sofrem diretamente com essa situação. “A apresentação do relatório ao 42ª Sessão do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas foi muito importante, porque levou à tona a situação dos moradores de rua e dos meninos, é um instrumento muito bom contra a violência no Brasil”, afirmou Eulange (8).
Catarina Tomás, Professora Auxiliar do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho (Braga – Portugal) e Veronica Muller, professora da Universidade Estadual de Maringá, trabalhan a temática da participação infantil, numa perspectiva ampla que se cruza com a globalização e a democracia, a partir de dois movimentos sociais de crianças no Brasil: o movimento das crianças filhas de trabalhadores rurais sem terra (MST) e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua.
Consideram que “os movimentos sociais de crianças (MSC) são um fenómeno complexo que contribuem para pensar outras formas de globalização e de democracia, através de discursos e práticas diferenciadas dos discursos e práticas dominantes e realizam-se a três níveis: local, a partir da acção das crianças e das crianças com os adultos, ou seja, há reivindicações e lutas de base local para garantir direitos e espaços para tomada de decisões; nacional, que se traduz em campanhas, alianças e/ou coligações de forma a mobilizar a opinião pública para as suas reivindicações; e global, através de alianças com outros movimentos e instituições a nível transnacional.
Os MSC e as lutas das crianças pela defesa dos seus direitos contribuem para a democratização dos sistemas de valores. E ao colocarem publicamente os seus problemas e apresentarem propostas de acção e de reivindicação dos seus direitos, conferem-lhes uma dimensão política e um estatuto de questões políticas legítimas. Apesar de serem um fenómeno recente, têm assumido publicamente uma crescente importância nos discursos políticos e nas ONG porque se considera a participação das crianças, mesmo que na maioria das vezes simbólica, como algo de fundamental para a própria mudança social. Por conseguinte, a dimensão pública dos MSC tem de ser considerada, até mesmo porque os movimentos sociais se encontram submergidos nessa luta simbólica, de que há vários exemplos” (9).
Hay que recordar que Veronica Muller acaba de publicar uma interessante investigação “Social participation and political training. Paving the way“ (4 idiomas) junto a Rede mundial “Dynamo International-Street Workers Network” (10), um actor estrategico pela luta colectiva a nivel mundial.
O proximo espacio de debate es o seminário internacional da educação social e XI Semana da Crianza Cidada da Universidade Estadual de Maringá (Parana) no final do septembro de 2013 (11).
NOTAS
(6) Especialistas alertam que urbanização exclui milhões de crianças, 07 MARÇO 2012 http://cristovam.org.br/portal3/index.php?option=com_content&view=article&id=4704:especialistas-alertam-que-urbanizacao-exclui-milhoes-de-criancas&catid=160:infanciaejuventude&Itemid=100124
(9) Maringá: EDUEM. Müller, Verónica e Tomás, Catarina (2011). Quando a participação das crianças faz parte do processo de intervenção: O caso do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Em Almeida, A.T. e Fernandes, N. (Org.). Intervenção com crianças, jovens e famílias: estudos e práticas (pp.32-44). Coimbra: Almedida.
- Cristiano Morsolin, operador de redes internacionais para a defesa dos direitos da criança na América Latina. Co-fundador do OBSERVATÓRIO SELVAS.
23.07.2013
https://www.alainet.org/pt/articulo/77989