Teologia da Libertação em tempos de Francisco

21/08/2013
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A imagem de um pontífice proposto a governar para os pobres e a discutir os problemas do Vaticano, ao mesmo tempo que anima teólogos como Leonardo Boff e Frei Betto, causa desconforto em outros, como Ivone Gebara
 
Embora Francisco seja o primeiro latino-americano a ser escolhido papa e venha utilizando um discurso característico da Teologia da Libertação (TdL), muito tem se discutido sobre o que, de fato, pensa o argentino sobre esta teologia. E o que pensam os teólogos da libertação sobre ele. 
 
 
O novo papa não se priva em repetir que quer uma “Igreja dos pobres”, “com os pobres” e uma “Santa Sé mais austera” – aspirações de longa data da TdL que sempre foram ignoradas por papas anteriores. 
 
Diante disso, poucos não foram os que não se surpreenderam com a possibilidade de que a visão de Igreja defendida pela TdL tenha, enfim, encontrado ressonância na instituição. 
 
A imagem de um pontífice proposto a governar para os pobres e a discutir os problemas internos da Igreja animou teólogos da libertação destacados, como Leonardo Boff e Frei Betto. Até então, a Teologia da Libertação, desenvolvida no final dos anos 60 para ser uma teologia que desse conta do “subdesenvolvimento” da América Latina – a partir da perspectiva da realidade socioeconômica deste continente e não da europeia –, vinha sendo tratada pelo Vaticano como uma teologia marginal. 
 
Sob a alegação de que o uso seletivo do marxismo feito por ela a incriminava, esse tipo de teologia chegou até mesmo a ser condenada por João Paulo II e Bento XVI. 
 
Com a mudança de direção no Vaticano, Boff e Betto, outrora rechaçados por defenderem reformas estruturais radicais – como o direito ao sacerdócio das mulheres e a ruptura com o sistema capitalista como única forma de libertação dos povos oprimidos –, têm sido só elogios a Francisco. Por outro lado, outros teólogos da libertação, como Ivone Gebara, não estão tão contentes assim. 
 
Sinal de alerta
 
Fato é que passados quatro meses da entronização de Francisco, uma luz amarela parece ter acendido durante uma longa conversa que o papa teve com bispos do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), ao final da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro (RJ). Ali, pela primeira vez publicamente, o novo papa pode ter sinalizado a sua aversão à Teologia da Libertação. 
 
Ao falar das “tentações contra o discipulado missionário”, Francisco alertou quanto aos perigos da ideologização da mensagem evangélica, ou seja, o perigo de “procurar uma hermenêutica de interpretação evangélica fora da própria mensagem do Evangelho e fora da Igreja”. E que, entre as ideologizações, a do “reducionismo socializante” seria a mais fácil de se descobrir. 
 
Disse ele: “Trata-se de uma pretensão interpretativa com base em uma ‘hermenêutica’ de acordo com as ciências sociais. Engloba os campos mais variados, desde o liberalismo de mercado até a categorização marxista”. 
 
Não há dúvidas de que o recado teve como alvo a Teologia da Libertação – a única das teologias a propor uma “hermenêutica” com base em uma “categorização marxista”. De qualquer modo, para Frei Betto, a fala de Francisco, mesmo sem fazer uma alusão explícita, não contradiz a Teologia da Libertação já que não há uma hermenêutica “pura” sem o uso da ciência. 
 
“Sem dúvida, há uma visão deturpada da TdL que ainda predomina em Roma e na Igreja Católica da Argentina, tradicionalmente conservadora. Ocorre que não existe hermenêutica teológica ou bíblica sem respaldo das ciências, inclusive as sociais. A teologia oficial da Igreja, vigente hoje, é a de Santo Tomás de Aquino, baseada na filosofia de um pagão grego chamado Aristóteles. A TdL, ao analisar a realidade, utiliza o método de um alemão ateu chamado Marx. É um equívoco julgar que o marxismo é uma religião e a fé cristã uma ideologia. Maior ainda equiparar laranja e banana como se as duas fossem abacate”, avaliou Frei Betto ao Brasil de Fato
 
Para Boff, no fundo, não importa se o papa Francisco quis fazer alusão à Teologia da Libertação ou não. “O que importa é que ele agiu e se comportou como sempre quis e disse a Teologia da Libertação, que nunca tem apenas uma direção: existe aquela dos afrodescendentes, dos indígenas, das mulheres, dos oprimidos economicamente, dos discriminados socialmente.” 
 
Boff, que foi condenado a um ano de “silêncio obsequioso”, em 1984, pela Congregação da Doutrina da Fé, presidida pelo então cardeal Joseph Ratzinger, acredita ainda que o discurso do papa faz menção aos métodos que não passam pelo contato com os pobres e oprimidos. 
 
“Coisa que acontece entre os chamados marxistas que apenas veem a dimensão de classe e não a dimensão humana sofredora, a pessoa que tem outras fomes para além daquela de pão, de comunicação, de diálogo, de ser escutado.” 
 
Ruptura com o capitalismo
 
Historicamente, o termo “libertação” que dá nome à teologia surgiu exatamente em contraposição à “dependência” econômica dos países do continente em uma época que o território vivia a frustração do desenvolvimentismo e a euforia do fortalecimento de lutas revolucionárias e populares. Nesse sentido, a visão hegemônica da TdL sempre postulou que a libertação só seria possível se houvesse a ruptura com o capitalismo. 
 
Para Frei Betto, no entanto, o modo de se alcançar essa libertação estrutural depende da conjuntura histórica. “Sob ditaduras militares na América Latina, não havia alternativa fora da revolução armada. Agora, conquistada a democracia relativa, pode-se buscar a libertação através da pressão popular e pela via pacífica. De qualquer modo, há sim que buscar uma ruptura com o sistema capitalista, intrinsecamente injusto.” 
 
Sem pobreza
 
A pergunta que fica é até que ponto o novo papa pode representar transformações concretas na Igreja e na sociedade que possam ir além da sua imagem de pessoa simples, cordial e preocupado com os pobres. 
 
Ao pedir uma Igreja com os pobres e para os pobres, sem levantar a questão de se acabar com a pobreza, as falas de Francisco nos remetem invariavelmente àquela clássica frase de dom Hélder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que os pobres não têm comida, me chamam de comunista”. 
 
Para a coordenadora do grupo “Católicas pelo Direito de Decidir”, Regina Soares Jurkewicz, ainda não está claro se as posições do papa são estratégicas ou não. “Não dá pra gente ter muita esperança de achar que agora a Igreja mudou. Enquanto não mudar as relações concretas, a questão econômica, os posicionamentos mais fundamentados, ainda não é possível pensar em mudanças estruturais”, ressalta. 
 
A freira e feminista Ivone Gebara é ainda mais contundente. Para ela, a eleição do papa é, sem dúvidas, “parte de uma geopolítica de interesses divididos e de equilíbrio de forças no mundo católico”.  Em seu artigo, Novo papa – a Geopolítica do poder, Gebara chega citar que “um chefe político da Igreja, vindo do Sul vai equilibrar as pedras do xadrez mundial, bastante movimentadas nos últimos anos pelos governos populares da América Latina e pelas lutas de muitos movimentos, entre eles, os movimentos feministas do continente com reivindicações que atormentam o Vaticano”.
 
21/08/2013
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/78617
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