Crianças robotizadas
03/10/2013
- Opinión
Todos nós já vimos uma menina dar de beber à boneca, embora ela saiba perfeitamente que bonecas não bebem, assim como meninos conversam com cães como se estes fossem capazes de responder na mesma linguagem.
É imprescindível à nossa saúde psíquica desfrutar ao máximo, na infância, o nosso universo onírico. Embora bonecas não bebam o suco que lhes é oferecido, nem cães possam estabelecer diálogo com uma criança, esta atribui à boneca e ao animal estados emocionais que são próprios de seres humanos.
Toda criança é uma atriz, capaz de desempenhar múltiplos papéis. A menina é mãe, babá, irmã, professora e médica da boneca. Há uma interação entre as duas. A boneca, graças à projeção onírica da criança, responde, chora, come, bebe e faz manha.
A fantasia é o recurso mimético que permite à criança transportar, à sua maneira, o universo dos adultos ao seu mundo e, ao mesmo tempo, é o complemento da sabedoria infantil, provedora de sentido e animação ao que, aos olhos adultos, carece de sentido e permanece inanimado.
O menino, montado no cabo de vassoura, sente-se confortável em seu cavalo. Dê a ele um cavalo de brinquedo, com arreios e crina, e é bem provável que, dias depois, ele abandone o presente para voltar à vassoura – que dialoga com a sua imaginação.
Exaurir a infância de tudo que ela tem de próprio, como atividades lúdicas, brincar de roda, de esconde-esconde, e enturmar-se com os amiguinhos, é essencial para o futuro saudável do adulto.
Hoje em dia essa exigência se torna mais difícil. A rua é, agora, lugar perigoso, ameaçado pela violência e pelo trânsito. As crianças ficam retidas em casa, confinadas em apartamentos, entregues a jogos eletrônicos, TV e internet.
A diferença com as gerações passadas é que, agora, o protagonista da fantasia não é a criança. É a animação do desenho virtual, como se a tecnologia “soubesse” por ela. A criança é relegada à condição de mera espectadora. A fantasia não brota dela, resulta do aplicativo ou do desenho animado ou filme projetado na TV e na internet.
Na missa de domingo vi duas crianças compartilhando um smartphone, enquanto seus pais participavam da liturgia. Passaram todo o tempo atentas ao homem-aranha arrasando seus adversários.
O que esperar de um adulto que, quando criança, divertia-se com a violência virtual e passava horas praticando assassinatos via bonequinhos eletrônicos? E de uma menina que, aos 4 ou 5 anos, se maquia como adulta, fala como adulta, manifesta desejos de adulta, padecendo a esquizofrenia de ser biologicamente infantil e psicologicamente “adulta”?
A puberdade, momento crítico para todos nós, é mais angustiante para essa geração que não exauriu seu potencial de fantasias. O medo do real é mais acentuado, assim como a dependência familiar, que mantém jovens de 25 e 30 anos ao abrigo do lar paterno.
Essa insegurança frente ao real é a porta de entrada para a vulnerabilidade às drogas. O traficante, graças a uma perversa intuição profissional, oferece de graça sua mercadoria aos adolescentes, como se advertisse: “Você já não pode sonhar com a própria cabeça. Mas não tema. Há outro jeito de fugir da realidade e “viajar” legal. Só que agora depende da química. Experimente isso.”
Preocupam-me também as crianças robotizadas que cumprem, além da escola, agendas apertadíssimas, com aulas de idiomas, natação etc, sem tempo para brincar com outras crianças e, assim, se educar nos códigos da sociabilidade, como saber admitir seus próprios limites e reconhecer o direito dos outros.
Talvez essa robotização explique um fenômeno tão comum nas grandes cidades: adolescentes e jovens que, em ônibus e metrô, se fazem de cegos ao ver, de pé, idosos, portadores de deficiência e mulheres grávidas, e permanecem tranquilamente sentados, se lixando para a mais elementar educação.
- Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – autobiografia escolar” (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/79839
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