O que Marx e Keynes tem a dizer a 2014
28/10/2013
- Opinión
Um congresso sobre marxismo numa Europa devastada pela recessão e o desemprego, fruto da austeridade pró-mercados, seria a última pauta do mundo para a grande mídia conservadora.
Esse é um dos motivos pelos quais é importante existir pluralismo informativo (ademais de condições estruturais e econômicas para que ele possa ser exercido).
Carta Maior decidiu cobrir o II Congresso Karl Marx, em Lisboa, por considerar que o Brasil vive uma transição de ciclo de desenvolvimento fortemente condicionada pelas determinações internacionais. E pelas escolhas históricas embutidas nesse divisor.
As condicionalidades precisam ser entendidas para que possam ser afrontadas ou ao menos mitigadas –e isso passa pela compreensão que a análise marxista propicia sobre a natureza da crise atual.
A maior crise do capitalismo desde 1929 marmoriza o debate sobre o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro mais do que desconfiam, ou gostariam de admitir, os protagonistas reconhecidos e pretensos da disputa de 2014.
É com esses olhos que devem ser lidos os vários despachos enviados pela correspondente em Lisboa, Cristina Portella.
Não se trata de transpor as condições europeias para a singularidade de nossa equação de desenvolvimento.
Mas o que aqui se apregoa como sendo um ‘novo’ caminho para o Brasil, como alardeiam os presidenciáveis Campos, Marina , Aécio, seus colunistas e o dispositivo emissor que os ancora, encontra preocupantes pontos de identidade com as políticas de ajuste que jogaram a Europa no moedor de carne analisado no II Congresso Karl Marx.
Da entrevista feita por Cristina com o economista português Francisco Louçã, por exemplo, do Bloco de Esquerda, ou da conversa carregada de angústia com o filósofo grego Stathis Kouvelakis, dirigente do Syriza, a Coligação da Esquerda Radical (leia nesta pág), avultam advertências implícitas às receitas de arrocho redentor (contração expansiva, diz-se elegantemente) embutidas no discurso do conservadorismo brasileiro.
Seria essa a alternativa ao que se acusa de ‘intervencionismo de baixo crescimento’ do governo Dilma.
Um aumento brutal da exploração social. Nisso consiste o ajuste a mercado das economias europeias, achatadas em endividamento e déficits fiscais vitaminados pela própria mecânica do arrocho em curso.
“O que a burguesia europeia pretende é a estabilidade de um regime que permita assegurar esse aumento da extração da mais-valia”, diz Louçã na entrevista a Carta Maior. “ A redução da taxa de lucro é respondida pela afirmação das políticas liberais (...) o aumento da dívida (pública) e o aumento da exploração. E a dívida é uma forma de exploração, porque é uma garantia do valor dos salários que é pago no futuro sobre a forma de impostos”, diz Louçã.
As consequências políticas da supremacia da lógica financeira sobre os interesses da sociedade são devastadoras, explica o dirigente do Syriza, Stathis Kouvelakis.
Na Grécia, reduzida a um laboratório de ponta do arrocho neoliberal, todo o antigo sistema político se dissolveu na convulsão mercadista.
“Um pouco da forma como o velho sistema político boliviano ou venezuelano desapareceram depois do choque das reformas neoliberais”, diz ele.
A receita só se viabiliza, na verdade, com a concomitante desintegração do próprio aparelho de Estado, uma vez que se trata de erradicar a dimensão pública da economia.
A singularidade terminal do caso grego, segundo Kouvelakis, é que essa liquefação não se restringiu à esfera social e dos serviços. Sua virulência atingiu o próprio núcleo duro do Estado. “Incluindo o aparelho repressivo, o próprio Exército, que também foi atingido pela contração da atividade e os cortes orçamentais”, explica.
“Há uma atmosfera geral de que a autoridade do Estado já não se sustenta, e isto cria situações absolutamente explosivas na Grécia. E muito contraditórias’, desabafa o dirigente do Syriza na entrevista a Carta Maior.
“Há uma radicalização política tanto na esquerda quanto na direita, e a ascensão pela primeira vez, no contexto da Europa ocidental, de um movimento fascista, com apoio real em certos setores da sociedade, e também com a capacidade de infiltrar-se em certos setores do Estado, e até da polícia, como vimos recentemente”.
A derrota do Syriza nas eleições de 2012, mesmo sendo por pequena margem de votos, teve um efeito desmobilizador dramático na Grécia, facilitando a sangria conservadora.
Quem considera indiferente no Brasil a vitória de Dilma, Campos ou Aécio deve abrir os olhos à experiência da história.
‘Os tempos são muito duros, porque foram implementadas as mesmas políticas, a sociedade está ainda mais traumatizada do que há um ano e meio, os fascistas tornaram-se a terceira força política; existe uma corrida entre as alternativas progressistas, como a do Syriza, ou soluções extremamente perigosas e autoritárias, como as defendidas não só pelos fascistas, mas também por todo um setor do Estado e das forças políticas dominantes’, adverte Kouvelakis.
A tragédia grega exacerba uma marca do nosso tempo.
A mesma que perambula dissimuladamente como virtude no discurso conservador brasileiro. Às vezes fantasiada da leveza verde.
Esse é um tempo em que a saúde dos mercados e a deriva da sociedade e do seu desenvolvimento não são realidades contraditórias.
Antes, exprimem uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção política que enquadre os mercados e instrumentalize o Estado para agir nessa direção.
Sintomas dessa dualidade funcional podem ser pinçados nesse momento na Espanha, por exemplo.
A austeridade jogou 26% da força de trabalho na rua (seis milhões de pessoas), mas os banqueiros saúdam ‘a recuperação’.
Despejos atingiram milhares de famílias espanholas, enquanto 750 mil imóveis novos encontram-se encalhados e mais 500 mil inconclusos.
Segundo o jornal ‘El país’, especialistas discutem a conveniência de se demolir uma parte dessa ‘sobra’.
Para recuperar os preços do mercado imobiliário.
O absurdo foi implementado nos EUA e na Irlanda. Com bons resultados, dizem os analistas de negócios.
O que parece ser exceção é a norma.
Corporações saudáveis, nações devastadas. Populações acuadas, ambientes asfixiados pela desigualdade, a violência e o desalento.
O que importa reter, das lições ecoadas no II Congresso Karl Marx, é a tendência mais geral de um capitalismo que, deixado à própria sorte, mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva e elevado desemprego.
Ou não será exatamente isso, deixa-lo à vontade para funcionar assim, o que tem pregado a agenda conservadora no Brasil?
Duas em cada três manchetes do jornalismo econômico que a ecoa manifestam irritação com o pleno emprego, com o fomento ‘desenvolvimentista do BNDES’, com as exigências de índice de nacionalidade nas encomendas do pré-sal, com a fórmula ‘inflacionária’ de reajuste do salário mínimo, com a baixa alocação de superávit fiscal aos rentistas e a ‘gastança’ dos programas sociais.
Comandar socialmente o investimento, puxando-o pelas rédeas do Estado, como se inclina a fazer o governo, desde 2008, sem dúvida é uma dos antídotos ao arrocho que devasta a Europa e alguns querem trazer ao Brasil.
Mas ser keynesiano em tempos de capital monopolista e desordem neoliberal tem um preço que o governo brasileiro hesita em pagar.
O keynesianismo em si tornou-se uma teoria desprovida de conteúdo histórico.
A democracia precisa avançar sobre a supremacia dos mercados para abrir espaço de coerência à macroeconomia necessária ao fomento da produção e da justiça social em nosso tempo.
Em outras palavras, o desenvolvimento que afronta a coagulação histórica do capital requer um projeto social que o conduza.
Logo, um protagonista coletivo que o lidere.
Essa defasagem da democracia brasileira explica, em boa medida, o difícil parto do passo seguinte da história nesse momento.
Esgotada a fase alegre dos consensos, como é o caso, e o será cada vez mais, uma sugestão ao governo é de que aproveite a boa fase atual e se articule.
A disputa de 2014 pode ser uma oportunidade para recuperar o tempo perdido nesse quesito incontornável: erguer pontes de compromissos e políticas que harmonizem a democracia política com as tarefas sociais e econômicas de um novo ciclo de desenvolvimento.
A ver.
Esse é um dos motivos pelos quais é importante existir pluralismo informativo (ademais de condições estruturais e econômicas para que ele possa ser exercido).
Carta Maior decidiu cobrir o II Congresso Karl Marx, em Lisboa, por considerar que o Brasil vive uma transição de ciclo de desenvolvimento fortemente condicionada pelas determinações internacionais. E pelas escolhas históricas embutidas nesse divisor.
As condicionalidades precisam ser entendidas para que possam ser afrontadas ou ao menos mitigadas –e isso passa pela compreensão que a análise marxista propicia sobre a natureza da crise atual.
A maior crise do capitalismo desde 1929 marmoriza o debate sobre o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro mais do que desconfiam, ou gostariam de admitir, os protagonistas reconhecidos e pretensos da disputa de 2014.
É com esses olhos que devem ser lidos os vários despachos enviados pela correspondente em Lisboa, Cristina Portella.
Não se trata de transpor as condições europeias para a singularidade de nossa equação de desenvolvimento.
Mas o que aqui se apregoa como sendo um ‘novo’ caminho para o Brasil, como alardeiam os presidenciáveis Campos, Marina , Aécio, seus colunistas e o dispositivo emissor que os ancora, encontra preocupantes pontos de identidade com as políticas de ajuste que jogaram a Europa no moedor de carne analisado no II Congresso Karl Marx.
Da entrevista feita por Cristina com o economista português Francisco Louçã, por exemplo, do Bloco de Esquerda, ou da conversa carregada de angústia com o filósofo grego Stathis Kouvelakis, dirigente do Syriza, a Coligação da Esquerda Radical (leia nesta pág), avultam advertências implícitas às receitas de arrocho redentor (contração expansiva, diz-se elegantemente) embutidas no discurso do conservadorismo brasileiro.
Seria essa a alternativa ao que se acusa de ‘intervencionismo de baixo crescimento’ do governo Dilma.
Um aumento brutal da exploração social. Nisso consiste o ajuste a mercado das economias europeias, achatadas em endividamento e déficits fiscais vitaminados pela própria mecânica do arrocho em curso.
“O que a burguesia europeia pretende é a estabilidade de um regime que permita assegurar esse aumento da extração da mais-valia”, diz Louçã na entrevista a Carta Maior. “ A redução da taxa de lucro é respondida pela afirmação das políticas liberais (...) o aumento da dívida (pública) e o aumento da exploração. E a dívida é uma forma de exploração, porque é uma garantia do valor dos salários que é pago no futuro sobre a forma de impostos”, diz Louçã.
As consequências políticas da supremacia da lógica financeira sobre os interesses da sociedade são devastadoras, explica o dirigente do Syriza, Stathis Kouvelakis.
Na Grécia, reduzida a um laboratório de ponta do arrocho neoliberal, todo o antigo sistema político se dissolveu na convulsão mercadista.
“Um pouco da forma como o velho sistema político boliviano ou venezuelano desapareceram depois do choque das reformas neoliberais”, diz ele.
A receita só se viabiliza, na verdade, com a concomitante desintegração do próprio aparelho de Estado, uma vez que se trata de erradicar a dimensão pública da economia.
A singularidade terminal do caso grego, segundo Kouvelakis, é que essa liquefação não se restringiu à esfera social e dos serviços. Sua virulência atingiu o próprio núcleo duro do Estado. “Incluindo o aparelho repressivo, o próprio Exército, que também foi atingido pela contração da atividade e os cortes orçamentais”, explica.
“Há uma atmosfera geral de que a autoridade do Estado já não se sustenta, e isto cria situações absolutamente explosivas na Grécia. E muito contraditórias’, desabafa o dirigente do Syriza na entrevista a Carta Maior.
“Há uma radicalização política tanto na esquerda quanto na direita, e a ascensão pela primeira vez, no contexto da Europa ocidental, de um movimento fascista, com apoio real em certos setores da sociedade, e também com a capacidade de infiltrar-se em certos setores do Estado, e até da polícia, como vimos recentemente”.
A derrota do Syriza nas eleições de 2012, mesmo sendo por pequena margem de votos, teve um efeito desmobilizador dramático na Grécia, facilitando a sangria conservadora.
Quem considera indiferente no Brasil a vitória de Dilma, Campos ou Aécio deve abrir os olhos à experiência da história.
‘Os tempos são muito duros, porque foram implementadas as mesmas políticas, a sociedade está ainda mais traumatizada do que há um ano e meio, os fascistas tornaram-se a terceira força política; existe uma corrida entre as alternativas progressistas, como a do Syriza, ou soluções extremamente perigosas e autoritárias, como as defendidas não só pelos fascistas, mas também por todo um setor do Estado e das forças políticas dominantes’, adverte Kouvelakis.
A tragédia grega exacerba uma marca do nosso tempo.
A mesma que perambula dissimuladamente como virtude no discurso conservador brasileiro. Às vezes fantasiada da leveza verde.
Esse é um tempo em que a saúde dos mercados e a deriva da sociedade e do seu desenvolvimento não são realidades contraditórias.
Antes, exprimem uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção política que enquadre os mercados e instrumentalize o Estado para agir nessa direção.
Sintomas dessa dualidade funcional podem ser pinçados nesse momento na Espanha, por exemplo.
A austeridade jogou 26% da força de trabalho na rua (seis milhões de pessoas), mas os banqueiros saúdam ‘a recuperação’.
Despejos atingiram milhares de famílias espanholas, enquanto 750 mil imóveis novos encontram-se encalhados e mais 500 mil inconclusos.
Segundo o jornal ‘El país’, especialistas discutem a conveniência de se demolir uma parte dessa ‘sobra’.
Para recuperar os preços do mercado imobiliário.
O absurdo foi implementado nos EUA e na Irlanda. Com bons resultados, dizem os analistas de negócios.
O que parece ser exceção é a norma.
Corporações saudáveis, nações devastadas. Populações acuadas, ambientes asfixiados pela desigualdade, a violência e o desalento.
O que importa reter, das lições ecoadas no II Congresso Karl Marx, é a tendência mais geral de um capitalismo que, deixado à própria sorte, mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva e elevado desemprego.
Ou não será exatamente isso, deixa-lo à vontade para funcionar assim, o que tem pregado a agenda conservadora no Brasil?
Duas em cada três manchetes do jornalismo econômico que a ecoa manifestam irritação com o pleno emprego, com o fomento ‘desenvolvimentista do BNDES’, com as exigências de índice de nacionalidade nas encomendas do pré-sal, com a fórmula ‘inflacionária’ de reajuste do salário mínimo, com a baixa alocação de superávit fiscal aos rentistas e a ‘gastança’ dos programas sociais.
Comandar socialmente o investimento, puxando-o pelas rédeas do Estado, como se inclina a fazer o governo, desde 2008, sem dúvida é uma dos antídotos ao arrocho que devasta a Europa e alguns querem trazer ao Brasil.
Mas ser keynesiano em tempos de capital monopolista e desordem neoliberal tem um preço que o governo brasileiro hesita em pagar.
O keynesianismo em si tornou-se uma teoria desprovida de conteúdo histórico.
A democracia precisa avançar sobre a supremacia dos mercados para abrir espaço de coerência à macroeconomia necessária ao fomento da produção e da justiça social em nosso tempo.
Em outras palavras, o desenvolvimento que afronta a coagulação histórica do capital requer um projeto social que o conduza.
Logo, um protagonista coletivo que o lidere.
Essa defasagem da democracia brasileira explica, em boa medida, o difícil parto do passo seguinte da história nesse momento.
Esgotada a fase alegre dos consensos, como é o caso, e o será cada vez mais, uma sugestão ao governo é de que aproveite a boa fase atual e se articule.
A disputa de 2014 pode ser uma oportunidade para recuperar o tempo perdido nesse quesito incontornável: erguer pontes de compromissos e políticas que harmonizem a democracia política com as tarefas sociais e econômicas de um novo ciclo de desenvolvimento.
A ver.
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