Conferência da OMC destrava negociações comerciais
19/12/2013
- Opinión
A 9ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada entre 3 e 6 de dezembro em Bali, na Indonésia, alcançou um acordo em torno de três questões: mecanismos de facilitação de comércio, pontos relacionados à agricultura e determinados tratamentos diferenciados aos países menos desenvolvidos.
É o primeiro acordo substantivo alcançado pela OMC desde o início de seu funcionamento em 1995, quando substituiu o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (Gatt na sigla em inglês). Sua primeira Conferência de Ministros, realizada em 1996 em Cingapura, basicamente referendou princípios de funcionamento, bem como seu mecanismo de solução de controvérsias, e também apontou uma série de temas a serem negociados no futuro. A conferência seguinte, em 1998 em Genebra, limitou-se a celebrar os 50 anos do Gatt e do sistema multilateral de comércio. A de 1999, em Seattle, propunha lançar uma nova rodada de negociações comerciais, rechaçada, no entanto, pelos países em desenvolvimento ainda mal recuperados da abertura econômica decorrente da Rodada Uruguai do Gatt, concluída em 1994, além de a cidade ter se tornado palco de expressivas manifestações antiglobalização.
Foi somente na quarta conferência, em 2001 em Doha, que se aprovou o início de uma nova rodada de negociações comerciais, ainda assim por meio de muita manobra do seu presidente e pressão do governo americano. Este utilizava o ataque de 11 de setembro como argumento, afirmando que “o terrorismo é fruto da pobreza e o livre-comércio é o meio de combatê-la, portanto quem é contra o livre-comércio (nova rodada de negociações) é a favor dos terroristas”. A agenda de negociações de quase vinte itens foi reduzida a quatro após o fracasso da Conferência Ministerial em Cancún, em 2003, e levou à criação do G-20, por iniciativa brasileira, para articular os países favoráveis a um acordo sobre o comércio de bens agrícolas.
Essa iniciativa transformou a geopolítica da organização, pois até então as grandes decisões no Gatt e depois na OMC eram definidas inicialmente pelo chamado Quadrilátero (EUA, Canadá, União Europeia e Japão) para em seguida ser “vendidas”, de uma forma ou de outra, aos demais integrantes, apesar de todos os membros terem direito a um voto. A oposição dos países menos desenvolvidos à negociação dos chamados Temas de Cingapura – que, entre outros, incluíam compras governamentais, meio ambiente e proteção a investimentos – e a formação do G-20, coordenado pelo Brasil e pela Índia, provocaram em 2004 uma reunião desses dois países, em nome dessa articulação, com o Quadrilátero e a Austrália, representando o Grupo de Cairns (países exportadores de bens agrícolas), gerando a atual agenda da Rodada Doha – negociação de bens não agrícolas (Nama), agricultura, serviços e facilitação de comércio.
Mas a conferência de Hong-Kong, em 2005, não resultou em acordo e a rodada entrou em impasse, mesmo com várias tentativas de retomar as negociações até 2008, quando se chegou mais próximo de um consenso. Este, porém, não se efetivou, em razão da resistência dos EUA e da União Europeia em eliminar seus subsídios à agricultura. De lá para cá, as negociações estagnaram, pois, além das dificuldades já mencionadas, o mundo desenvolvido entrou em grave crise econômica, situação que normalmente favorece o protecionismo comercial.
Dessa forma, o chamado Pacote de Bali representa o destravamento das negociações comerciais multilaterais e trouxe pelo menos um resultado economicamente positivo. A facilitação de comércio, que implica a desburocratização alfandegária e simplificação de normas, facilita a vida dos exportadores e tende a ampliar o volume do comércio em valores estimados em até US$ 1 trilhão ao ano. Os demais itens do pacote são a “cláusula de paz”, que permite por até quatro anos a formação de estoques de produtos agrícolas, sem questionamentos na OMC, pelos países em desenvolvimento e seu direito à manutenção de cotas de exportação de bens agrícolas com baixas tarifas, mesmo quando não utilizadas integralmente. Também entrou na agenda a perspectiva da negociação de transferência de tecnologia relacionada ao comércio.
A redução da agenda alcançada em 2004 pelos países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, foi uma vitória importante, mas mesmo assim as negociações continuaram muito desequilibradas. É muito difícil alcançar um acordo balanceado entre os ganhos que os países industrializados obteriam com a redução das tarifas em Nama e os dos países exportadores de commodities agrícolas com acesso aos mercados dos países desenvolvidos, pois a variação dos preços de produtos agrícolas é imponderável diante do clima, da especulação e de outros fatores. Além disso, há assimetrias ainda não superadas entre os países negociadores que impediriam um acordo justo no setor de serviços e mesmo o atual acordo sobre medidas de facilitação de comércio tende a favorecer mais os maiores produtores e exportadores.
Por outro lado, a assimetria é ainda maior quando se trata de acordos regionais que setores empresariais brasileiros vêm defendendo com muita insistência, em particular a negociação do Mercosul com a União Europeia, para depois retomar as negociações com os Estados Unidos. A direita brasileira apoia essa posição sob o argumento do fracasso das negociações multilaterais desde 2008 e de que o comércio só avança regional e bilateralmente. Para reforçar esse ponto, mencionam a assinatura de duas centenas de acordos desse tipo nos últimos anos.
Na verdade, a maioria deles tem pouca expressão econômica. As iniciativas que podem ter maior impacto sobre o comércio são a tentativa dos EUA de formar a Parceria Trans-Pacífico, voltada para países da bacia do Oceano Pacífico, e o Tratado Trans-Atlântico, com a União Europeia, mas nenhum deles foi concluído até o momento e, de qualquer forma, o Brasil não os integra.
O que realmente está posto é o retorno da visão de inserção externa subordinada dos anos FHC por meio do “encaixe” da indústria brasileira nas cadeias produtivas globais, estimulado pelo atual momento em que o câmbio brasileiro está valorizado diante da “guerra cambial” promovida pelos países desenvolvidos para enfrentar a crise, e muitas empresas estão importando componentes para montar seus produtos aqui para vender no mercado doméstico ou exportar.
Aceitar essa ideia significa subordinar definitivamente o que resta de nossa indústria aos desígnios das empresas multinacionais, cuja maioria tem sede na Tríade (EUA, União Europeia e Japão), distante, portanto, de qualquer possibilidade de influência brasileira, transformando-nos em montadores de bugigangas. A proposta significa também uma grave ameaça ao Mercosul, pois os defensores de um acordo com a União Europeia – que, aliás, tem o mesmo conteúdo da falecida Alca – pretendem que este ocorra com ou sem Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela.
Diante dessa disputa de visões de desenvolvimento, o acordo obtido na OMC, com grande mérito de seu novo diretor-geral, Roberto Azevedo, é um reforço à visão de que, apesar de tudo, o multilateralismo oferece maiores perspectivas para os países em desenvolvimento. Não obstante a dificuldade de encontrar consensos entre quase 160 países, quando há acordo como o ocorrido agora, este tem maior legitimidade e alcance.
- Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais
É o primeiro acordo substantivo alcançado pela OMC desde o início de seu funcionamento em 1995, quando substituiu o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (Gatt na sigla em inglês). Sua primeira Conferência de Ministros, realizada em 1996 em Cingapura, basicamente referendou princípios de funcionamento, bem como seu mecanismo de solução de controvérsias, e também apontou uma série de temas a serem negociados no futuro. A conferência seguinte, em 1998 em Genebra, limitou-se a celebrar os 50 anos do Gatt e do sistema multilateral de comércio. A de 1999, em Seattle, propunha lançar uma nova rodada de negociações comerciais, rechaçada, no entanto, pelos países em desenvolvimento ainda mal recuperados da abertura econômica decorrente da Rodada Uruguai do Gatt, concluída em 1994, além de a cidade ter se tornado palco de expressivas manifestações antiglobalização.
Foi somente na quarta conferência, em 2001 em Doha, que se aprovou o início de uma nova rodada de negociações comerciais, ainda assim por meio de muita manobra do seu presidente e pressão do governo americano. Este utilizava o ataque de 11 de setembro como argumento, afirmando que “o terrorismo é fruto da pobreza e o livre-comércio é o meio de combatê-la, portanto quem é contra o livre-comércio (nova rodada de negociações) é a favor dos terroristas”. A agenda de negociações de quase vinte itens foi reduzida a quatro após o fracasso da Conferência Ministerial em Cancún, em 2003, e levou à criação do G-20, por iniciativa brasileira, para articular os países favoráveis a um acordo sobre o comércio de bens agrícolas.
Essa iniciativa transformou a geopolítica da organização, pois até então as grandes decisões no Gatt e depois na OMC eram definidas inicialmente pelo chamado Quadrilátero (EUA, Canadá, União Europeia e Japão) para em seguida ser “vendidas”, de uma forma ou de outra, aos demais integrantes, apesar de todos os membros terem direito a um voto. A oposição dos países menos desenvolvidos à negociação dos chamados Temas de Cingapura – que, entre outros, incluíam compras governamentais, meio ambiente e proteção a investimentos – e a formação do G-20, coordenado pelo Brasil e pela Índia, provocaram em 2004 uma reunião desses dois países, em nome dessa articulação, com o Quadrilátero e a Austrália, representando o Grupo de Cairns (países exportadores de bens agrícolas), gerando a atual agenda da Rodada Doha – negociação de bens não agrícolas (Nama), agricultura, serviços e facilitação de comércio.
Mas a conferência de Hong-Kong, em 2005, não resultou em acordo e a rodada entrou em impasse, mesmo com várias tentativas de retomar as negociações até 2008, quando se chegou mais próximo de um consenso. Este, porém, não se efetivou, em razão da resistência dos EUA e da União Europeia em eliminar seus subsídios à agricultura. De lá para cá, as negociações estagnaram, pois, além das dificuldades já mencionadas, o mundo desenvolvido entrou em grave crise econômica, situação que normalmente favorece o protecionismo comercial.
Dessa forma, o chamado Pacote de Bali representa o destravamento das negociações comerciais multilaterais e trouxe pelo menos um resultado economicamente positivo. A facilitação de comércio, que implica a desburocratização alfandegária e simplificação de normas, facilita a vida dos exportadores e tende a ampliar o volume do comércio em valores estimados em até US$ 1 trilhão ao ano. Os demais itens do pacote são a “cláusula de paz”, que permite por até quatro anos a formação de estoques de produtos agrícolas, sem questionamentos na OMC, pelos países em desenvolvimento e seu direito à manutenção de cotas de exportação de bens agrícolas com baixas tarifas, mesmo quando não utilizadas integralmente. Também entrou na agenda a perspectiva da negociação de transferência de tecnologia relacionada ao comércio.
A redução da agenda alcançada em 2004 pelos países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, foi uma vitória importante, mas mesmo assim as negociações continuaram muito desequilibradas. É muito difícil alcançar um acordo balanceado entre os ganhos que os países industrializados obteriam com a redução das tarifas em Nama e os dos países exportadores de commodities agrícolas com acesso aos mercados dos países desenvolvidos, pois a variação dos preços de produtos agrícolas é imponderável diante do clima, da especulação e de outros fatores. Além disso, há assimetrias ainda não superadas entre os países negociadores que impediriam um acordo justo no setor de serviços e mesmo o atual acordo sobre medidas de facilitação de comércio tende a favorecer mais os maiores produtores e exportadores.
Por outro lado, a assimetria é ainda maior quando se trata de acordos regionais que setores empresariais brasileiros vêm defendendo com muita insistência, em particular a negociação do Mercosul com a União Europeia, para depois retomar as negociações com os Estados Unidos. A direita brasileira apoia essa posição sob o argumento do fracasso das negociações multilaterais desde 2008 e de que o comércio só avança regional e bilateralmente. Para reforçar esse ponto, mencionam a assinatura de duas centenas de acordos desse tipo nos últimos anos.
Na verdade, a maioria deles tem pouca expressão econômica. As iniciativas que podem ter maior impacto sobre o comércio são a tentativa dos EUA de formar a Parceria Trans-Pacífico, voltada para países da bacia do Oceano Pacífico, e o Tratado Trans-Atlântico, com a União Europeia, mas nenhum deles foi concluído até o momento e, de qualquer forma, o Brasil não os integra.
O que realmente está posto é o retorno da visão de inserção externa subordinada dos anos FHC por meio do “encaixe” da indústria brasileira nas cadeias produtivas globais, estimulado pelo atual momento em que o câmbio brasileiro está valorizado diante da “guerra cambial” promovida pelos países desenvolvidos para enfrentar a crise, e muitas empresas estão importando componentes para montar seus produtos aqui para vender no mercado doméstico ou exportar.
Aceitar essa ideia significa subordinar definitivamente o que resta de nossa indústria aos desígnios das empresas multinacionais, cuja maioria tem sede na Tríade (EUA, União Europeia e Japão), distante, portanto, de qualquer possibilidade de influência brasileira, transformando-nos em montadores de bugigangas. A proposta significa também uma grave ameaça ao Mercosul, pois os defensores de um acordo com a União Europeia – que, aliás, tem o mesmo conteúdo da falecida Alca – pretendem que este ocorra com ou sem Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela.
Diante dessa disputa de visões de desenvolvimento, o acordo obtido na OMC, com grande mérito de seu novo diretor-geral, Roberto Azevedo, é um reforço à visão de que, apesar de tudo, o multilateralismo oferece maiores perspectivas para os países em desenvolvimento. Não obstante a dificuldade de encontrar consensos entre quase 160 países, quando há acordo como o ocorrido agora, este tem maior legitimidade e alcance.
- Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais
Teoria e Politica, Edição 119, 17 dezembro 2013
https://www.alainet.org/pt/articulo/81861?language=en
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