A Guerra Fria por outros meios

13/03/2014
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O conflito sobrevive ao fim do império soviético e o anti-comunismo sobrevive ao comunismo. Ao preço da derrubada de governos democraticamente eleitos
 
 
“Na medida em que violar a soberania está em causa, a Rússia deveria salientar que os EUA invadiram o Panamá para prender Noriega, invadiram Granada para impedir os cidadãos americanos de serem tomados como reféns (mesmo que eles não tenham sido tomados como reféns), invadiram o Iraque por motivos espúrios alegando que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa, e agora matam pessoas em outros países com drones, etc, etc. Em outras palavras, para os EUA, pregar a um presidente russo sobre o respeito pela soberania e preservação da integridade territorial pode parecer uma reivindicação de direitos especiais não permitidos a outros.”
 
Jack Matlock, ex-embaixador dos EUA em Moscou
 
 
 
O fato objetivo é este: a Guerra Fria sobrevive ao fim do império soviético e o anti-comunismo sobrevive ao comunismo, ainda que ao preço da derrubada de governos democraticamente eleitos e do açulamento de turbas fascistas e neonazistas, e antissemitas – paramilitares e terroristas – como as que em Kiev depredaram e incendiaram prédios públicos  e, por fim, espalharam o caos em toda a Ucrânia. Ação preparatória do golpe de Estado imediatamente chancelado por Washington e Bruxelas, que  o apoiaram nas sombras, como apoiam os distúrbios na Venezuela, país que conta, também ele, com governo democraticamente eleito – independentemente dos erros e acertos de Maduro.
 
Há algo novo nas manifestações, que não é apenas a ânsia de liberdade e democracia.
 
Um dos mais proeminentes oráculos dos ‘valores do Ocidente’ na conturbada Ucrânia é Oleh Tyahnybok, líder fascista do Partido Svoboda, cujo discurso conclama os ucranianos a se levantar contra o que chama de ‘máfia moscovita-judaica’ (já há notícia de sinagoga atacada por coquetéis Molotov), com quem Victoria Nuland, a secretária de Estado adjunta (dos EUA) para Assuntos Europeus e da Eurásia se reuniu em meio à crise, em Kiev.
 
Os EUA parece nada haverem aprendido com o 11 de setembro, ação conduzida pelas forças que haviam alimentado para se contraporem no Afeganistão à União Soviética.
 
Obama não está preocupado com a integridade territorial da Ucrânia, o ‘Ocidente’ não está chocado com a corrupção escandalosa do governo Yanukovich, nem Putin está pensando na segurança das minorias russas na Ucrânia.
 
Os EUA que desmantelaram a Iugoslávia, fizeram a Guerra dos Bálcãs e se alimentaram do território mexicano não podem arriscar-se a uma Guerra contra uma potência atômica simplesmente para defender a soberania de um território distante habitado por um povo estranho. Nem Putin nem Obama podem falar em defesa dos princípios do direito internacional. Falta-lhes a necessária autoridade moral. A Carta da ONU (1945) proíbe a violência nas relações internacionais, admitindo apenas duas exceções: legítima defesa ou autorização prévia do Conselho de Segurança. Quem autorizou a invasão, pelos EUA, de Granada, do Panamá, do Iraque, do Afeganistão? Ou os ataques ao Sudão? De quem a França recebeu mandato para invadir o Mali? Com o mandato de quem a Rússia invadiu a Geórgia? Como condenar o separatismo, se o Ocidente promoveu Kosovo (1999) e se prepara para aplaudir a independência da Escócia e da Catalunha?
 
As disputas vêm de longe, na lenta aplicação da teoria do Departamento de Estado segundo a qual, para permanecer como a única superpotência, os EUA precisam deter o controle da Eurásia, a ponte entre a União Europeia e o leste da Ásia.
 
A questão  é claramente geopolítica e diz respeito aos interesses militares dos EUA (e, por via de consequência, da OTAN) de abrir uma cabeça de ponte na Ásia – a região mais promissora e próspera do século, onde se acha uma China hiperbólica, potência econômica e militar. Para isso, é preciso empurrar os russos ainda mais para leste,  de quebra garantindo acesso a corredores de oleodutos e gasoduto, acessando reservas de petróleo e gás natural.
 
O parágrafo precedente é simples releitura do que Zbigniew Brzezinski, assessor de Carter para segurança (1977/1981) escreveu na Foreign Affairs – uma das mais influentes revistas de política internacional dos EUA ou seja, do mundo:
 
“Dado o tamanho [da Rússia] e sua diversidade, um sistema político descentralizado e uma economia de livre mercado seriam a mais provável via para desencadear o potencial criativo do povo russo e [explorar] os vastos recursos naturais da Rússia. Uma Rússia vagamente confederada – composta pela República da Rússia Europeia, uma República da Sibéria, e uma República do Extremo-Oriente – também tornaria mais fácil cultivar relações econômicas mais estreitas com seus vizinhos.
 
Cada uma dessas regiões confederadas seria capaz de explorar o seu potencial criativo local, sufocado por séculos de controle da pesada mão burocrática  de Moscou. Além disso, a Rússia descentralizada seria menos suscetível a uma mobilização de tipo imperial.”
 
(“A geoestratégia para a Eurásia”, 1977).
 
A tese aí advogada é, portanto, o condicionamento da política externa do antigo império à geopolítica dos EUA e à estratégia militar da OTAN.
 
Aos que desejarem conhecer melhor o projeto imperialista estadunidense aconselho a leitura de O grande tabuleiro de xadrez: a primazia americana e seus imperativos geoestratégicos (The Grand Chessboard: American Primacy and it’s Geostrategic Imperatives, 1998) talvez a principal obra de Brzezinski. Trata-se de um roteiro de como estabelecer a hegemonia militar, política e econômica dos EUA – da Eurásia ao Oriente Médio.  
 
Como se vê, de nada adiantou, para os russos, o desmantelamento da URSS e a adesão ao capitalismo... 
 
A Rússia que, ao tempo da URSS, tinha os  ‘escudos’ formados pela presença de tropas soviéticas na  Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Bulgária, Romênia, Letônia e Lituânia, hoje vê esses países na OTAN e se encontra na iminência de ter ao seu lado uma Ucrânia hostil,  Ucrânia que é seu berço cultural e histórico (uma das primeiras medidas tomadas pelo governo interino foi proibir o ensino da língua russa, majoritária no país), fechando seu acesso ao  Mar Negro e pondo por terra o sonho da União Euroasiática (Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Ucrânia e China). Não é pouco.
 
A alternativa de Putin é a federalização do leste e do sul da Ucrânia (pró-Rússia) e sua posterior integração à futura União Euroasiática.
 
Talvez seja bom reproduzir uma recomendação de Kissinger descurada pela Casa Branca e ignorada, por ignorância mesmo,  pelos nossos cientistas mediáticos:
 
“O Ocidente precisa entender que, para a Rússia, a Ucrânia jamais será apenas um país estrangeiro. A história russa começou na chamada Kiev-Rus. A religião russa se propagou a partir dali. A Ucrânia fez parte da Rússia durante séculos e suas histórias já estavam entrelaçadas antes disso.
 
Algumas das mais importantes batalhas pela liberdade russa, a começar pela Batalha de Poltava, em 1709, foram travadas em solo ucraniano. A Frota do Mar Negro, o meio de a Rússia projetar o poder no Mar Mediterrâneo, está baseada mediante um arrendamento de longo prazo em Sebastopol, na Criméia. Até mesmo dissidentes famosos, como Alexander Soljenitsyn e Josep Brodsky, insistiam que a Ucrânia era parte integral da história russa, e, de fato, da Rússia.”
 
(Henry Kissinger, “Como resolver a crise ucraniana”O Estado de S. Paulo, 7/3/14)
 
O que está em jogo e, explica a crise, é o intento de promover o ingresso  da Ucrânia na OTAN, candidatura  posta em 2008, na Cúpula da OTAN em Bucareste. Trata-se, portanto, de uma ameaça concreta.  É que, alcançado esse objetivo geoestratégico, Moscou ficará a menos de 500km (uma Rio-São Paulo) dos mísseis da OTAN. Não podendo reagir e impedir a ameaça, restaria à Rússia renunciar ao seu papel político na Eurásia, renunciar à sua própria independência e, por fim, derrotada sem dar um tiro, ingressar na OTAN... e, assim, finalmente ficar livre de ameaças. A partir daí, descer do pódio atômico, e preparar-se para sua própria divisão. Entende-se, pois, a reação de Putin e o apoio que vem recebendo dentro do país. A História sabe como os EUA reagiram à presença de mísseis soviéticos em Cuba, e todos podemos antever qual seria sua reação se bases soviéticas fossem  instaladas no Alaska ou em Porto Rico. Ou se no México ou no Canadá assumissem governos beligerantes.
 
A História, porém, não é um videogame: os fatos, muitas vezes, adquirem vida própria e podem se apartar do controle dos estrategistas. Todo cuidado é pouco com o urso ferido, mas ainda com dentes e garras atômicas.
 
Leia mais em www.ramaral.org
 
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/83954?language=es
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