Um ano contra a pobreza, o mercado, os bombardeios na Síria e a pedofilia
20/03/2014
- Opinión
Poucos se lembram que quando Jorge Mario Bergoglio foi eleito papa, o primeiro “acidente” se passou logo de início no Vaticano. O novo pontífice se recusou a vestir a sofisticada roupa papalina, costurada com fios de ouro e enriquecida com pedras preciosas, de igual maneira que também rejeitou os principescos sapatos em tecido, preferindo em seu lugar as suas antigas botas ortopédicas, que normalmente usava em Buenos Aires.
Para os “vaticanistas” – isto é, os especialistas em assuntos relativos ao Vaticano –, esse primeiro “acidente” foi desconsiderado. Muitos disseram que isso fora apenas “uma manifestação da forte personalidade de um arcebispo de origem latino-americana, ligado ao contexto de Buenos Aires”.
Na realidade, a teimosia de Francisco Bergoglio em querer aparecer, pela primeira vez, na Praça São Pedro, sem as esmeraldas nos dedos e os ricos paramentos bordados em ouro – mas vestindo apenas uma roupa branca e calçando suas botas portenhas – foi uma mensagem direita e exclusiva para os mandatários do conservadorismo católico, que durante os últimos dois pontificados se apoderaram do Vaticano.
Uma mensagem que tem muito a ver com o conflituoso processo que nos últimos anos acendeu animadas confrontações na Cúria Romana e, consequentemente, no seio da Igreja Católica, cuja dimensão mundial alimenta ainda mais o debate sobre as perspectivas do catolicismo no mundo.
Por que Bergoglio?
Na história da Igreja Católica a eleição de Jorge Mario Bergoglio não foi casual. Ela foi considerada oportuna, visto que os 27 anos de regência de João Paulo II (Karol Józef Wojtyła) no lugar de ampliar as dimensões da Igreja Católica, na realidade, as limitaram, promovendo, apenas a visão conservadora e dogmática de uma Igreja que se tornou cada vez mais fechada e verticalizada.
Tais características levaram o próprio papa João Paulo II a cometer um erro que permitiu às igrejas evangélicas, às pentecostais e às metodistas ganhar o coração de imensas faixas de populações pobres, na América Latina, na América Central e na África.
De fato, em 1983, durante sua viagem à capital da Nicarágua, Manágua, João Paulo II condenou duramente a “Igreja Popular” por esta apoiar o programa do governo sandinista. A seguir, para diminuir a imagem do bispo Oscar Romero, João Paulo II se recusou a condenar as violações dos direitos humanos em El Salvador e depois durante três longos anos (1984/1986) o papa João Paulo II utilizou a Congregação para a Doutrina da Fé – dirigida pelo então cardeal Joseph Aloisius Ratzinger – para oficialmente condenar as teses da Teologia da Libertação e, consequentemente, desarticular toda a sua organização.
É bom lembrar que o frade Leonardo Boff foi uma das tantas vítimas dos processos que a referida Congregação moveu contra todos aqueles que desafiavam o “verbo” de João Paulo II. Isso também explica por que o cardeal Ratzinger sucedeu a João Paulo II sob o nome de Bento XVI.
Portanto, se Wojtyła e depois Ratzinger conseguiram dar à Igreja Católica um novo status político e diplomático é necessário lembrar que a Cúria Romana havia transformado o Vaticano em um complexo centro de poder, inclusive com perversas ligações com o mundo das finanças especulativas.
Neste âmbito, João Paulo II e Bento XVI nunca conseguiram ampliar a imagem ética e moral cristã do Vaticano que, com eles ficou mais obsequiosa e dócil com os poderosos, sejam eles ditadores, banqueiros ou políticos da ordem.
É preciso lembrar que na Igreja Católica sempre houve uma vontade de renovação para manter aberto o diálogo com o mundo moderno. Um sentimento que ficou evidente com o pontificado de João XXIII, que surpreendentemente convocou o Concílio Vaticano II para promover a renovação da Igreja com a massificação pastoral do ecumenismo.
Para isso, João XXIII – o papa bom, como era chamado aqui em Roma – escreveu oito encíclicas, das quais a mais importante foi “Pacem in Terris” (Paz na Terra). Um pensamento ecumênico que devia ser recolocado por João Paulo I, eleito aos 26 de agosto de 1978, mas que “inesperadamente” morreu após um mês.
Por isso tudo a renúncia de Bento XVI, aos 20 fevereiro de 2013, tem diferentes leituras. A mais simples é a do arcebispo Luigi Betazzi, que sustenta a precariedade do estado de saúde de Ratzinger. Uma tese muito pouco convincente já que, por sua parte, serviu para silenciar as críticas, inclusive da mídia, que começavam a submergir o Vaticano à causa das escandalosas denúncias de pedofilia contra muitos padres e bispos, associadas ao obstinado silêncio de Bento XVI.
Um novo ciclo
A renúncia de Bento XVI foi determinante para fechar o ciclo do conservadorismo e iniciar outro em que a Igreja Católica vai massificar a pastoral do ecumenismo. O líder desse pensamento e dessa nova postura para com a doutrina católica foi Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires e da ordem dos jesuítas. Pois, é bom lembrar que Bergoglio, em 2005, disputou com Ratzinger a eleição recebendo da Cúria Romana 10 votos. Isso significa que ele, em 2005, já era uma personalidade, pouco conhecida pela mídia, mas muito estimada no mundo católico.
Por outro lado, não devemos esquecer que o posicionamento de Bergoglio, ao se tornar papa Francisco, não podia ser diferente das atitudes que ele manteve quando era arcebispo de Buenos Aires, inclusive por ser um jesuíta, cuja formação cultural e religiosa é diferente das outras ordens eclesiásticas.
De fato, na última Conferência Episcopal Latino-Americana, Bergoglio formulou uma aguda crítica ao regime capitalista. Um posicionamento que tem muito a ver com a sua vivência junto aos pobres de Buenos Aires. Por outro lado, como jesuíta ele conhece melhor do que ninguém o drama das populações indígenas e dos fluxos e refluxos que submergiram na pobreza as populações da América Latina sejam elas indígenas ou de imigrantes europeus.
Um contexto que permite entender por que, ao falar do mercado, papa Francisco argumenta de que se trata “de uma teoria do desperdício” que está de pé graças à “manipulação por parte daqueles que detêm o poder econômico”. Palavras fortes que muitos “vaticanistas” tentaram espalhar em um vago debate sobre as injustiças sociais existentes no mundo contemporâneo.
Em resposta, Francisco voltou ao argumento e foi ainda mais contundente ao dizer na praça São Pedro que “a Igreja Católica e sua essência apostólica deviam se posicionar e ir às raízes das injustiças sociais” que, na sua maioria, “dependem de problemas estruturais, pois se não se resolvem esses problemas, também não será possível resolver as injustiças sociais”.
Na prática, Francisco aponta o dedo contra o sistema capitalista e contra a sua globalização mercadológica porque ”sem resoluções estruturais vai se afirmando uma situação de injustiça que vai levar a humanidade em direção a uma grande crise, que não será apenas a crise da igualdade e da justiça, mas também será uma crise ambiental por causa do modelo extrativista, consumista e depredador da natureza. Um modelo que nos empurra ao limite da subsistência enquanto espécie humana”.
Voz unívoca
Hoje, papa Francisco é o principal guia espiritual do mundo católico. De fato, suas palavras podem influenciar o comportamento e a moral dos católicos, visto que em uma de suas intervenções dominicais teve a coragem e o ardor de dizer “Jovens, façam barulho, empurrem a Igreja! Esta civilização mundial foi para além dos limites e criou um culto para o deus Dinheiro. Por isso, agora estamos em frente de uma filosofia e de uma práxis de exclusão dos dois polos da vida e que, por isso, afetam o futuro dos povos”.
Também foi o único que teve a coragem de apontar o dedo contra a campanha midiática que, sobretudo na Europa, estava criando um clima favorável para os EUA e para a Otan iniciarem os bombardeios na Síria, o que determinaria, assim, uma situação geoestratégica praticamente incontrolável.
Um posicionamento crítico que, oficialmente, justificou nos EUA e na Grã-Bretanha o surgimento de uma frente “anti-Francisco” que, agora, intervém, sobretudo na mídia, todas as vezes que as homilias e as intervenções de “Francisco Bergoglio” incomodam o pensamento do mercado e de seus respectivos líderes.
Nesse âmbito, a rede de TV CNN, o movimento estadunidense Tea Party, o Conselho das Igrejas Britânicas, a Fundação Ford e a poderosa organização lobista NED (National Endowment for Democracy) transformaram Francisco em seu alvo preferido, já que tais instituições mantém relações privilegiadas com jornalistas, editores e, sobretudo com os donos de jornais e das televisões.
Foi nesse âmbito que “Francisco Bergoglio” começou a ser atacado duramente na imprensa estadunidense com adjetivos incomuns para um papa, pois segundo alguns comentaristas e editores, Francisco seria um papa “ligado aos extremistas que se parece muito com os comunistas, que luta contra as leis do mercado etc. etc.”.
Críticas, adjetivações pesadas e manipulações artificiais, típicas de uma imprensa estadunidense servil, que por outro lado demonstra quão grande é o medo por se ter um papa que pela primeira vez na história da Igreja Católica teve a coragem de enfrentar abertamente o mercado e todos os exploradores da humanidade.
Um papa que em seu primeiro ano de pontificado já ratificou oito reformas que devem mudar por completo a ostentação principesca da Cúria Romana, o sistema bancário do IOR (Banco do Vaticano) e os poderes da Secretaria de Estado do Vaticano, transformando, assim, a Catedral de São Pedro no verdadeiro centro espiritual e evangélico da Igreja Católica.
- Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália e editor do programa TV “Quadrante Informativo”.
20/03/2014
https://www.alainet.org/pt/articulo/84135?language=es