Putin, tovarish?

20/03/2014
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É preciso dissipar a confusão pela qual a esquerda e a opinião pública democrática tendem, de um lado, a aplaudir a coragem, mas, de outro, a acabar comprando a narrativa das agências de notícias brasileiras, alicerçadas nas congêneres internacionais dos Estados Unidos e da União Europeia, sobre o gigante do Leste
 
O establishment dos EUA e da União Europeia assiste atônito aos acontecimentos na Ucrânia. Além de ter bloqueado um golpe de Estado na Síria, a Rússia se impõe sobre uma armação golpista na antiga república soviética. É mais um ato da nascente verdadeira nova ordem mundial, na qual Brics e suas associações regionais se elevam a desenhar um mundo realmente multipolar. E é preciso dissipar a confusão pela qual a esquerda e a opinião pública democrática tendem, de um lado, a aplaudir a coragem, mas, de outro, a acabar comprando a narrativa das agências de notícias brasileiras, alicerçadas nas congêneres internacionais dos EUA e da UE, sobre o gigante do Leste. A Rússia não joga o jogo em curso à toa e Putin e seu governo têm muito mais a ver com o projeto alternativo que se quer para o mundo do que sonha a vã filosofia que o tira por tudo, menos por um aliado estratégico.

Para início de conversa, na Rússia existe sufrágio universal, voto direto em regime de liberdade de organização, reunião e expressão à imagem e semelhança das democracias ocidentais. Pela tradição liberal, não há como desdizer que a Rússia seja democrática. Assim como vários outros países que gozam dessa reputação, ainda necessita de avanços, mas de modo muito similar a qualquer outro onde ainda se reprimem passeatas.

Para seu primeiro mandato como presidente (2000-2004), Vladimir Putin foi eleito com 53% dos votos. Em 2004, reeleito com 71%. Em 2012, venceu no primeiro turno com 63%. Nessa última eleição, o bilionário Mikhail Prokhorov levou apenas 7% dos votos, vindo de um partido pró-Kremlin que pretendia atrair a classe média e os empresários em torno de um projeto que não se opusesse ao partido majoritário Rússia Unida, conformando uma base de 70% ao projeto governante. De acordo com pesquisas de opinião pública conduzidas pela ONG Levada Centre, em 2007, a aprovação popular de Putin era de 81%, muito superior à de qualquer líder internacional, e de lá para cá nunca caiu para menos de 65%.
 
E por que o atual presidente russo se tornou esse fenômeno eleitoral? Basicamente porque, após o desmonte da URSS, a ofensiva neoliberal liderada por Boris Ieltsin implementou um programa radical de privatizações – Terapia de Choque – que beneficiou diretamente bem colocados atores da cúpula da antiga Nomenklatura e, como resultado, produziu um declínio da economia ainda pior que o da Grande Depressão nos Estados Unidos. Dessa forma, Putin se elegeu pela primeira vez com a promessa de reconstruir o país e a cumpriu, reestruturando parte da intervenção estatal que Ieltsin destruíra por completo.

Nos governos de Putin, a indústria, alicerçada numa potente logística ferroviária (85.500 quilômetros, a segunda maior do mundo), cresceu o montante acumulado de 76%; os investimentos, 125%; o crédito, 4.500%. A pobreza caiu em 50% e, logo, a classe média saltou de 8 milhões para 55 milhões de pessoas. A economia, por sua vez, registrou 7% de crescimento, em média (2000: 10%; 2001: 5,1%; 2002: 4,7%; 2003: 7,3%; 2004: 7,2%; 2005: 6,4%; 2006: 8,2%; 2007: 8,5%). Esse resultado fez com que o país saísse do 22º lugar para o 10º no ranking mundial, em termos de PIB, superando inclusive o da URSS em 1990. Refletindo o nível de integração do país com a economia mundial, os efeitos da crise fizeram seu PIB recuar 7,8% em 2009, retração seguida por uma retomada que o descolou do baixo desempenho dos outros países da Europa (2010: 4,5%; 2011: 4,3%; 2012: 3,4%). Tais resultados colocam a Rússia em uma posição muito próxima do pleno emprego, com a taxa de desemprego em 5,6% – menos da metade da taxa da zona do euro (12%).

O controle e/ou indução estatal do uso de seus vastos recursos naturais foi um dos elementos que explicam a ascensão soberana de Moscou. Os rendimentos do petróleo, cuja produção faz da Rússia líder mundial, com 10,1 milhões de barris diários, foram revertidos para a quitação dos encargos da dívida externa, em especial o montante restante da URSS; para um fundo voltado ao estoque de reservas como precaução ante crises econômicas mundiais; e para um fundo de bem-estar nacional, para assegurar estabilidade a desempregados, aposentados e pensionistas.

Outra diretriz da política econômica de Putin foi o estímulo aos "campeões nacionais", empresas de setores estratégicos às quais se incentiva uma atuação econômica pelo "avanço nos interesses da nação", a dizer: Gazprom, Rosneft e Corporação Aeronáutica Unificada. A força dessas empresas, e não apenas uma disposição geopolítica, recolocou a Rússia como player global de peso, como nesse caso da Ucrânia/Crimeia.

É deveras suspeito que o novo governo de Kiev dê preferência a um acordo econômico com países em recessão, que estão a desmontar o serviço público, reduzir direitos de pensionistas e têm como símbolos mundiais de “prosperidade” não mais indústrias, e sim consultorias financeiras.

A Rússia, entretanto, não se transformou numa chaminé poluidora. Ao contrário dos EUA, em 2004 assinou o Protocolo de Kyoto e lançou programas de proteção para animais raros em risco de extinção, como o tigre siberiano, a baleia-branca, o urso-polar, o leopardo-das-neves, entre outros.

Em suma, um modelo cuja semelhança com qualquer outro praticado no Brasil e em países democráticos da América do Sul, ou mesmo dos antigos Estados de Bem-Estar Social, não é mera coincidência, mas sim grata convergência em como reconstruir países após os devastadores efeitos do livre-cambismo.

Para sustentar e levar adiante essa recuperação da nação, o presidente sabia que tinha poderosos desafios a enfrentar e, não sendo a Rússia um pequeno, pouco populoso e pobre país, as lutas a seguir tinham profundas dimensões nacionais e internacionais. No primeiro caso, para impedir que cada região organizasse a agenda econômica e social como bem quisesse. E, aqui, há de se destacar a enorme penetração e domínio do crime organizado, fruto do processo de privatizações dos tempos de Ieltsin e seus protagonistas no poder político local nos interiores do país, os laços orgânicos desses setores com o capital internacional e os interesses estadunidenses e da cúpula da União Europeia. No segundo caso, complementando essa primeira situação, Putin não poderia fechar os olhos para uma antiga estratégia dos EUA:

"Dado o tamanho (da Rússia) e sua diversidade, um sistema político descentralizado e uma economia de livre mercado seriam a mais provável via para desencadear o potencial criativo do povo russo e (explorar) os vastos recursos naturais da Rússia. Uma Rússia vagamente confederada – composta por uma Rússia europeia, uma república da Sibéria e uma república do Extremo Oriente – também tornaria mais fácil cultivar relações econômicas mais estreitas com seus vizinhos. Cada uma dessas regiões confederadas seria capaz de explorar seu potencial criativo local, sufocado por séculos de controle da mão burocrática pesada de Moscou. Além disso, a Rússia descentralizada seria menos suscetível a uma mobilização de tipo imperial” (Zbigniew Brzezinski, "A Geoestratégia para a Eurásia").

Nesse sentido, em seu primeiro mandato, o presidente colocou as 89 subdivisões do país sob o controle de sete distritos cujos dirigentes eram indicados diretamente por ele, fez aprovar uma lei que lhe assegurava a primazia de despedir chefes das subdivisões federais e, finalmente, extinguiu as eleições para governadores por voto direto. Com isso, bloqueou os movimentos separatistas em maior ou menor grau conectados com o crime organizado e a persuasão estrangeira.

Implementada essa "reforma política" necessária para desmantelar o sistema de poder político-financeiro-oligárquico estruturado com a queda da URSS, justamente para controlar a Rússia desde fora de seu território, no interstício presidencial de Dimitri Medvedev, quando Putin se torna seu primeiro-ministro, as eleições diretas para governadores foram retomadas, o registro de partidos políticos simplificados, assim como reduzidas as assinaturas necessárias para o lançamento de candidatos independentes à presidência da Federação Russa. Oligarcas foram denunciados, condenados e presos e o crime organizado e o terrorismo entraram em decadência, o que gerou, por tabela, uma redução cabal da violência e dos assassinatos, melhorando os indicadores da segurança pública.

Simbolicamente, Putin organizou seu modelo fundindo representações da Rússia imperial, da União Soviética e da Rússia democrática, e, para sua sociedade, as coisas se casam perfeitamente em termos de projeção de poder, importância geopolítica, conquistas sociais e direitos cidadãos. Os EUA e, novamente, seus aliados ficaram confusos em como denunciar o projeto. Não podem dizer que há abertura econômica combinada com ditadura de partido único nem que há pluralismo com estagnação por causa da não aplicação da cartilha do Consenso de Washington. Sobra espalhar a mentira e apostar na desestabilização.

O que os EUA e a Europa não entenderam é que as revoluções que começaram em 1989 não foram contra as conquistas sociais da Revolução Russa, mas contra as perdas graduais dessas conquistas e por falta de liberdades políticas. É presente no imaginário coletivo que a Rússia pré-bolchevique era um país da Idade Média e, no pós-bolchevismo, virou uma potência nuclear e industrial com grandes indicadores sociais. Putin soube aproveitar perfeitamente esse sentimento.

Fora do script programado em 1992, restou aos EUA e à UE iniciarem um processo de desmoralização da Rússia, que seria só em tese um país pluripartidário, mas, na prática, o PCUS teria apenas sido substituído pelo Rússia Unida. Atribuem a popularidade de Putin não como a resultante das profundas melhoras na qualidade de vida do povo e da reinserção da Rússia como player mundial, mas sim a um suposto controle do Estado sobre a mídia, pois lá esse mercado não é desregulamentado. Leia-se: oligopólios controlados pelos oligarcas da privataria de Ieltsin foram desmontados e não são as agências estadunidenses e europeias que organizam a informação e os conteúdos.

Com essa retórica, a Rússia passou a ser classificada como um inferno cruel para as liberdades: 154ª posição (de 178) na lista dos países menos corruptos; 140ª (de 175) em liberdade de imprensa; e 136ª (de 180) entre os havidos como os países mais democráticos. Quem faz a lista são sempre ONGs e instituições com alto grau de relação com os países estrangeiros que tentam desmoralizar e desestabilizar o país, como é praxe antiga dos EUA ao redor do mundo e ao longo da história desde o século 20. Nesses três casos, classificações, respectivamente, da Transparência Internacional, dos Repórteres Sem Fronteiras e de uma tal de World Audit.
 
Mas não bastou a campanha difamatória. Em 2012, numa estratégia de desestabilização semelhante à usada na Ucrânia, a imprensa internacional começou a  vender uma "crise" fundada em supostas "fraudes" da eleição que Putin ganhara com 63% dos votos. Fotos e imagens da "mobilização dos jovens" eram reproduzidas nos quatro cantos do planeta. Não apareceu o raciocínio óbvio de que, em cerca de 60% de eleitores, a presença de uma "juventude putiniana" fosse marcante. Tampouco de o partido Rússia Unida ter feito comícios que reuniam de 30 mil a 100 mil pessoas, enquanto a oposição tinha reles 2 mil. Putin venceu o embate, mobilizando a população em Moscou, outros centros urbanos e interiores.

Em 2011, foi acusado por Ariel Cohen, especialista sênior em assuntos da Rússia e da Eurásia da Heritage Foundation, no New York Times: "A ajuda dos EUA falhou na Rússia em termos de implantação de uma governança transparente e participativa". Dois anos depois, Putin desmoralizava os críticos ao abrigar simplesmente Edward Snowden, denunciante dos crimes cibernéticos do governo estadunidense e ícone da transparência e dos direitos individuais básicos na modernidade. Ou seja, enquanto abriga o denunciante da espionagem generalizada a empresas, governos, países e cidadãos pelos EUA, com a conivência da UE, a Rússia o protege de uma condenação por "traição" que o levaria à pena perpétua ou capital. Quem pode falar em compromisso com a transparência?

Claro que há dilemas e problemas, mas não os apontados pelo dito Ocidente. O principal deles, no que tange aos direitos civis da população LGBT, emana de um forte papel da Igreja Ortodoxa na construção da consciência coletiva do país, mas não tem na Rússia um caso à parte. Nos EUA, apenas alguns estados legalizaram a união estável homoafetiva. Na França, foi aprovada por apertada margem e com direito a muita demonstração de força dos neonazistas de Le Pen e do próprio Vaticano intervindo nos debates da sociedade francesa. No Brasil, a força da bancada evangélica, em aliança com a bancada ruralista, bloqueia mais avanços, além daqueles conquistados por meio do Supremo Tribunal Federal, como o projeto de lei que criminaliza a homofobia.

Com certeza, é uma tarefa civilizatória dos movimentos sociais, tal como ocorreu, por exemplo, em Cuba, a partir da liderança de Mariela Castro, filha de Raúl. E a diplomacia brasileira pode se empenhar, como tem feito nos fóruns da ONU em geral, em convencer a Rússia do equívoco dessa postura. Uma pena que o Partido Comunista da Federação Russa, herdeiro do PCUS, não compreenda isso e se situe na oposição a Putin, com um programa nostálgico de "restaurar a URSS", distante da disputa real colocada na geopolítica global, e nem sequer cumpra um papel de ser a ala que tensiona por mais direitos e democracia, tendo uma posição ainda pior que a da Rússia Unida sobre a questão LGBT.

Ao cabo, quem deve prestar contas sobre posições dessa natureza são os EUA e a União Europeia, que, no caso ucraniano, sustentam uma coalizão que vai de neoliberais a neonazistas – aliança que, parece, se estenderá ao mundo, já que, ao contrário da primeira década do século 20, socialistas e nacionalistas jogam juntos por um mundo multipolar.

Em tempo: por falar em neofascistas, encerramos este artigo na coincidência da convocação da reedição da Marcha da Família, pela extrema direita brasileira, para o dia 22 de março. A isso, opomos: vão Шакалить у иностранных посольств ("estrebuchar em frente de embaixadas estrangeiras"). Com essa frase, em 2012, Putin se referiu à oposição não parlamentar russa, caracterizando-a como um grupo sem nenhum apoio da população que implora por dinheiro e suporte dos governos estrangeiros.

Referências
 
Bábkin, Vladímir. “20 anos após fim da URSS, Rússia enfrenta desafios políticos”. Gazeta Russa, 9/12/2011

Beylin, Boris. “Filtro presidencial”. Vesti.FM, 15/12/ 2011

Whitney, Mike “Ucrânia: o plano mais idiota do mundo”. Carta Maior. Tradução: Louise Antonia León.

- Fernando Pacheco é coordenador de Relações Internacionais da Executiva Nacional da Juventude do PT
- Leopoldo Vieira é secretário do Núcleo Petista Celso Daniel de Administração Pública e assessor especial da Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
 
 
Teoria e Debate, Edição 122, 20 março 2014
https://www.alainet.org/pt/articulo/84137

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