Fome de pão e justiça

12/06/2014
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Olivier De Schutter, belga, 45 anos, encerrou neste semestre seu mandato de seis anos como relator da ONU para o direito à alimentação. Declarou que, se dependesse de uma única decisão para erradicar a fome no mundo, optaria pela “generalização da proteção social” que, nos países pobres, representaria menos de 7% do PIB.
 
Segundo a FAO, há 842 milhões de pessoas (12% da população mundial) em situação de desnutrição crônica. De Schutter acredita que o dado da FAO está subestimado, pois considera apenas quem passa fome 12 meses por ano, e não a carência sazonal.
 
Ele avalia em 1 bilhão o número de famintos crônicos. E admite que “cometemos o erro de apostar demasiado nos ganhos de produtividade, e não investimos o suficiente na proteção e no apoio aos pequenos agricultores”.
 
Acrescenta que faliu a “solução” apontada pela OMC (Organização Mundial do Comércio): os países com mais poder de produção agrícola exportarem para os países com menos. A prática demonstrou que isso é mero neocolonialismo, para reforçar a dependência dos pobres em relação aos ricos, e eliminar a agricultura familiar dos países importadores.
 
Nos últimos 50 anos, a produção de alimentos aumentou anualmente 2,1%, enquanto as vítimas da fome diminuíram pouco. Dados da FAO indicam que em 1990 elas eram 900 milhões.
 
Está provado que não basta ampliar a produção nem promover a desaceleração demográfica para resolver o problema. Se não há carência de alimentos nem excesso de bocas, é obvio que a causa reside na falta de justiça social.
 
De Schutter propõe um novo paradigma na produção alimentar favorável à agricultura familiar e à agroecologia: “Não nos colocamos a questão de saber se a industrialização da agricultura era compatível com o respeito pelos ecossistemas, e negligenciamos a questão da saúde, da diversidade alimentar. São três dimensões – justiça social, sustentabilidade ambiental e saúde”.
 
O ex-relator da ONU aponta como uma das dificuldades o descompasso entre o governo e a iniciativa privada. Das empresas surgem as decisões estratégicas. Elas vinculam o produtor ao consumidor. O grave, segundo ele, é que “tomam decisões em função do lucro esperado, e as questões de sustentabilidade, desenvolvimento rural e igualdade na compensação dos atores não as preocupam muito”.
 
Acelera-se, hoje, a mercantilização dos produtos alimentares e também de suas fontes, como a terra e a água: “Os consumidores do Norte (do mundo), que querem carne e biocombustíveis, fazem concorrência aos do Sul, que querem a mesma terra e água para as suas necessidades essenciais. É um problema ético e jurídico”.
 
O Brasil se gaba de ser um dos pioneiros em matéria de biocombustíveis. Eis o que destaca De Schutter: “A corrida à produção de biocombustíveis produz três tipos de impactos: primeiro, vincula o mercado alimentar ao da energia. Quanto mais sobe o preço do petróleo, mais rentável se torna a produção de biocombustíveis, e mais aumenta a produção sobre o mercado agrícola. Segundo, os biocombustíveis fazem pressão sobre a terra arável do Sul. Terceiro, o mercado de biocombustíveis encoraja a especulação financeira, pois quando a União Europeia e os EUA anunciam metas de produção e consumo de biocombustíveis até 2020, eles dão um recado aos investidores: ‘Independentemente de variações, os preços vão continuar a subir. Especulem!’”.
 
De Schutter elogia a preocupação de José Graziano da Silva, ex-ministro de Lula e atual diretor geral da FAO, quanto ao desperdício no mundo, que atinge, hoje, a cifra de 1/3 dos alimentos produzidos! Ao todo, 1,3 bilhão de toneladas por ano. Isso equivale a mais da metade dos cereais cultivados anualmente.
 
Agora, entendo por que minha mãe dizia quando, na infância, eu mirava inapetente o prato de comida: “Come, menino. Há muito gente passando fome”. Por uma questão de justiça.
 
- Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.
Twitter:@freibetto.
 
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