Futebol mercadoria

23/06/2014
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Desde as jornadas de junho do ano passado que a realização da Copa, nos padrões impostos pela Fifa, vem merecendo um amplo questionamento em nos­sa sociedade. O foco da maior parte das manifestações apontava para a diferença de tratamento existente no que se refere à prioridade na concessão dos recursos públicos. Em um contexto de compressão das despesas orçamentárias para áreas sociais, a liberação de verbas para as obras vinculadas ao certame mundial de fute­bol passou a ser objeto de críticas no interior do movi­mento popular.
 
Na verdade, a forma como a Copa do Mundo foi con­cebida, planejada e realizada apenas reflete um proces­so profundo e crescente de transformação do futebol em simples mercadoria. Essa tendência pode ser iden­tificada por diversos aspectos. As cifras bilionárias as­sociadas à construção dos estádios chamam a atenção, em especial para cidades onde não existe a necessária tradição dessa modalidade esportiva a justificar tal de­cisão. Os valores também expressivos relativos à ven­da de imagem e de espaços de publicidade para as re­des de comunicação confirmam o potencial de realiza­ção de consumo de produtos e serviços globalizados.
 
Toda essa movimentação do capital em um único evento, que se realiza a cada quatro anos em escala planetária, é um coroamento periódico e regular da crescente mercantilização que afeta as atividades es­portivas de maneira geral. Porém, como somos co­nhecidos como o país do futebol, a mercantilização desse esporte nos traz consequências especiais. As ci­fras astronômicas que constam dos contratos dos jo­gadores mais famosos – em geral atuando em clubes no exterior – terminam por banalizar o quadro das desigualdades sociais e econômicas que ainda nos são características.
 
A vida e a carreira dos grandes astros terminam por ser determinadas pelos interesses das grandes empre­sas patrocinadoras, sempre envolvidas com a divulga­ção de sua imagem. Como o futebol tende a se mer­cantilizar – mais e mais a cada dia que passa – o con­junto das atividades vinculadas a ele torna-se objeto de acumulação de capital e formação de riqueza finan­ceira. Os clubes cada vez mais são convertidos em em­presas do “setor de atividades esportivas”, com preo­cupação voltada exclusivamente à geração de lucro. A necessidade permanente de “girar os recursos” reduz a vida útil dos profissionais, que começam a falar em “aposentadoria” quando se aproximam de meados da terceira década de vida. Afinal, o sistema exige a en­trada contínua de novos espaços de acumulação, os jogadores mais jovens – quase adolescentes.
 
A decisão de hospedar a Copa da Fifa em nossas ter­ras aprofundou tal processo, principalmente em razão da aceitação das exigências impostas por essa institui­ção que atua praticamente como uma empresa trans­nacional do futebol. Não há argumentos, por exem­plo, que justifiquem a privatização da utilização da imagem da seleção brasileira e a negociação de direi­tos de transmissão das partidas como se fossem sa­bonetes, perfumes ou automóveis. O monopólio e a exclusividade outorgados aos patrocinadores duran­te o período em que o certame ocorre atentam contra a soberania nacional e afetam diretamente os interes­ses econômicos locais e símbolos importantes de nos­so patrimônio cultural.
 
A postura passiva perante o processo de transfor­mação do futebol em mercadoria compromete a pró­pria natureza do esporte como atividade importante em nosso país, como elemento integrante da própria formação sociocultural brasileira. A prioridade da ação do Estado deveria ser na direção de construir de forma efetiva uma narrativa para o esporte como política pú­blica. Isso significa generalizar as oportunidades para a prática esportiva de qualidade nas escolas públicas e nos espaços de prática da cidadania.
 
- Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.
 
24/06/2014
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/86636
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