A guerra que não haverá
16/01/2003
- Opinión
É anunciada para início de 2003 uma guerra que não haverá. Porque
será uma guerra virtual – uma ficção. Não haverão mortos, nem feridos e
muitos menos mutilados; apenas luzes no céu.
Assim deve ser a cobertura pela imprensa brasileira da guerra que os
Estados Unidos farão contra o Iraque. Como a fonte é uma só – o
Departamento de Defesa dos Estados Unidos – espera-se o contumaz
tratamento de entretenimento. Jornalismo de guerra é uma espécie de
disneylândia.
Não se trata de exagero. Na Guerra do Golfo – salvo exceções –, a
imprensa se limitou a reproduzir o noticiário da CNN, que, por sua vez,
estava submetido à censura do Departamento de Defesa dos Estados Unidos.
Ou seja, a gente viu e leu o que os militares americanos queriam. Por
isso a Guerra do Golfo, feita pelo pai do atual presidente dos Estados
Unidos, foi na aparência uma guerra limpa, sem sangue, lembrando o
réveillon nas praias do Rio de Janeiro.
Depois os Estados Unidos invadiram a Iugoslávia e a imprensa repetiu
o tratamento.
Quando explodiram as duas torres de Nova York, a imprensa foi mais
infeliz ainda – não apenas se submeteu ao crivo dos militares, à leitura
dos releases do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, como colaborou
na criação do inimigo que eles queriam. Sem provas concretas, a imprensa
orientou a opinião pública à aceitação dessa guerra contra o inimigo-
fantasma – o tal do terrorismo, escondido num dos países mais pobres do
mundo, e liderado por Osama bin Laden.
A guerra da vez era o Afeganistão. E mais uma vez vimos uma guerra
sem mortos nem feridos. Em contrapartida, vimos repórteres embasbacados
diante da parafernália bélica; eles babavam ao descrever os artefatos
capazes de aniquilar as almas dos primitivos afegãos. Estes mesmos
jornalistas anunciaram ao mundo que depois da intervenção americana a
população afegã era feliz porque já podia fazer a barba e assistir aos
filmes americanos.
Quantos morreram nos Afeganistão? Talvez cinco ou seis americanos.
Mas, e afegãos? Só se sabe o que os EUA informaram.
O 11 de setembro (também sem mortos ou feridos, somente heróis) foi
transformado pelos Estados Unidos em um bom motivo para expansão militar.
A presença militar americana no mundo aumentou em 20% depois do 11 de
setembro. São 300 mil soldados presentes em 140 países, velando pelo
império dos Estados Unidos. De acordo com Juan Carlos Galindo, os Estados
Unidos aproveitaram-se do ataque às duas torres para praticar mais
terrorismo ainda. Até meados de 2002, os EUA tinham base no Usbequistão,
2 mil soldados; Tadjiquistão e Quirguistão (ex- Quirguízia), 3 mil;
Afeganistão, 5 mil. No Golfo Pérsico, com o apoio das monarquias déspotas
do lugar, mantém hoje 60 mil soldados, sendo mais de 1 mil entre Oman,
Emirados Árabes e Catar; mais 1 mil em Barein, onde fica o Estado-Maior
da Quinta Frota; e 4.800 no Kuwait. Na Arábia Saudita os Estados Unidos
têm três bases militares e mais de 5 mil soldados. Na Turquia existem 2
mil marines, para sustentar a guerra contra o Iraque.
No mínimo, hipocrisia
Na América Latina e no Caribe são 21 bases americanas. Mais de 2 mil
soldados. Há instalações militares em Aruba-Curaçao (Antilhas
holandesas), Comalapsa (El Salvador) e Manta (Equador) – esta permite
vigiar toda região andina. Na ilha de Vieques, a sudeste de Porto Rico,
os ianques testam seus novos armamentos. No governo FHC fizeram um acordo
para dominar a Base Espacial de Alcântara, no Maranhão, que deve ser
rasgado por Lula.
A imprensa brasileira aceita a existência deste aparato assassino. E
não diz o óbvio: que se trata de uma guerra de domínio geopolítico. Não
informa que os Estados Unidos estão quebrados, com limitação de fontes de
energia, e precisam garantir o controle sobre os poços de petróleo na
região.
Quando caíram as duas torres do World Trade Center, a imprensa
americana, modelo para muita gente, acatou as decisões do Departamento de
Defesa, e praticamente pediu a censura. Na época, George Bush falou um
monte de bobagens e os jornais consideraram normal. Inspirado em Adolf
Hitler, ele disse que quem não estivesse com os Estados Unidos estaria
contra ele. E ninguém o tratou como um petulante, insano ou um psicopata
em busca de vingança. Mesmo quando Bush definiu que os EUA e seus aliados
eram o "eixo do bem", e quem fosse contra eles faria parte do "eixo do
mal", não foi chamado de palerma – que é o melhor adjetivo para
qualificá-lo ao dizer bobagens desse tamanho.
Imbuído do mais profundo ideal nazista, os Estados Unidos criaram uma
lei em que estabelecem o direito de atacar qualquer nação que eles
considerem um perigo. E fizeram a lista dos inimigos, o eixo do mal:
Cuba, Líbia, Iraque, Afeganistão, Coréia do Norte. Curiosamente, somente
nações pobres. Sim, a corajosa nação só briga com os mais fracos.
Já invadiram o Afeganistão e estão planejando invadir o Iraque e a
Coréia do Norte. Os argumentos de ataque mudam conforme o inimigo e o
momento. Numa época, fazia-se guerra porque eram "comunistas"; depois,
por causa das drogas (caso da Colômbia), agora é o "terrorismo"
(Afeganistão); e, mais recentemente, produção de "armas de destruição em
massa" (Cuba, Iraque, Coréia do Norte). Se os jornais fossem honestos,
informariam à população que se trata de uma farsa criada pelos Estados
Unidos para espalhar seu império. Diriam que os Estados Unidos se
constituem na única nação do mundo condenada pela ONU pela prática de
terrorismo; e diriam ainda que os Estados Unidos são os maiores
produtores de armas de destruição em massa do mundo – querer que os
outros não tenham armas é, no mínimo, uma hipocrisia.
Treinamento no Fantástico
E não é só isso. Os Estados Unidos são o país que mais têm bases
militares no mundo, o que mais invadiu outros países, o que mais praticou
atos de terrorismo, o que mais pagou mercenários para ações terroristas,
o que mais colaborou ostensivamente para implantação de ditaduras no
mundo, o que mais matou em guerras...
No ano passado, para invadir Cuba espalharam a fofoca, a futrica, o
boato de que a ilha estava produzindo armas de destruição em massa. Os
jornais cumpriram o papel determinado pelo Departamento de Defesa
americano e difundiram a mentira. Mas Cuba chamou um ex-presidente, Jimmy
Carter, para averiguar isso na ilha. Carter foi lá. Comprovou que era
mentira. E o assunto morreu. Mas a imprensa não disse a verdade: que o
objetivo era destituir Fidel e implantar um governo pró-Estados Unidos. O
mesmo que se pretende com essa agressão ao Iraque e à Coréia do Norte.
A imprensa, na verdade, tornou-se cúmplice de um país que tem
pretensões nazistas – o domínio do mundo. Para esses repórteres e chefes
de reportagens, e seus editores, não parece haver constrangimento em
mentir ao mundo que os Estados Unidos vão invadir o Iraque porque ele
teria armas de destruição em massa.
Esses repórteres parecem achar normal que um imperador informe ao
mundo quem presta e quem não presta, e saia matando aquilo que ele
considera que não presta.
A política de hegemonia americana inclui a desestabilização de países
que não aceitam seu mando. O Iraque, detentor de riquezas em petróleo,
era amigo dos EUA até o momento em que resolveu ser independente. O mesmo
se pode dizer de vários ditadores que os EUA apoiaram na história, em
todos os continentes. E não apenas ditadores. Vale citar os presidentes
apoiados pelos EUA para a América Latina nestes tempos neoliberais: caso
de Carlos Ménem, na Argentina; Fujimori, Peru; Fernando Henrique Cardoso,
Brasil – só para citar os mais conhecidos, e que fazem parte do eixo do
bem.
Lula, que está assumindo agora, já foi ameaçado por eles: se
estabelecer relações com Venezuela ou Cuba fará parte do eixo do mal.
Tudo isso é ridículo, é uma agressão à inteligência de qualquer pessoa,
mas a imprensa aceita como normal. Pior, compactua.
No programa Fantástico da TV Globo, de 5 de janeiro de 2003, foi
apresentada uma "matéria" sobre o treinamento americano para ocupação das
casas de Bagdá durante uma invasão ao Iraque. Mostraram-se dois grupos,
os que ocupavam a região e os que iriam invadi-la. Os soldados usavam
balas de festim e armas a laser. Quem fosse atingido "morreria".
Censura dos militares
Ora, aquilo era evidentemente um release-ficção cedido pelos
militares. É evidente que nenhuma nação em guerra revela seu treinamento.
Mas o Fantástico desprezou a nossa inteligência e apresentou aquilo como
matéria jornalística. Era uma brincadeirinha, um filminho, um joguinho de
guerra, feito para distrair a opinião pública mundial. Era
entretenimento. Então, quando se questiona o conteúdo da TV brasileira, é
preciso indagar sobre o que a sociedade ganha com o jornalismo
transformado em entretenimento.
Com a previsão de uma guerra, pergunta-se: cadê o jornalismo? Um
jornalismo que não se aprofunda. A guerra é apresentada como um evento,
como um fato irreversível, e que começa e acaba ali.
Cadê o jornalismo que não procura os 600 prisioneiros mantidos na
base de Guantánamo, Cuba, pelos Estados Unidos, com tratamento desumano,
para dizer o mínimo? Estas pessoas foram levadas para lá sem acusação
formal, não têm direito a defesa, estão sendo interrogadas, talvez
torturadas, talvez mortas... E ninguém se interessa em investigar isso.
Na verdade, os Estados Unidos seqüestraram essas pessoas e as levaram
para um território neutro onde podem fazer o que querem. Nessa base não
precisam ser tratadas como prisioneiras de guerra. Graças a informes
alternativos, que correm fora da grande mídia, é que se sabe da
existência e do tratamento dado a eles.
O pior nessa imprensa oficial é que seu formato confunde – muita
gente acredita que ela é imparcial, isenta e democrática. Quando é
exatamente o contrário. A população é levada a crer que existe um bem e
um mal no mundo, e que o bem são os Estados Unidos e seus aliados, e o
mal são os outros, os que não se submetem ao seu poder. Um país que tem
uma imprensa como esta não pode ter auto-estima.
Em 1897, quando estourou a Guerra de Canudos, na Bahia, o exército, a
imprensa, as classes dominantes determinaram que Canudos era uma ameaça
(o eixo do mal) e deveria ser exterminada. Um fotógrafo de Salvador,
Flávio de Barros, foi contratado para cobrir a campanha. Ele fez as
únicas fotos conhecidas até hoje. Numa batalha em que devem ter morrido
mais de 20 mil pessoas, só há um cadáver em meio aos destroços do
arraial. Na maioria das fotos os militares estão posando, ou simulando um
combate. Olhando estas fotos tem-se a impressão de que os soldados
estavam fazendo um treinamento, e não uma guerra de extermínio (o que
sobrou do Arraial de Canudos foi queimado e derrubado; o que sobrou de
gente foi degolada).
Euclides da Cunha, que era capitão da reserva, cobriu essa guerra
para o jornal A Província (depois Estado de S. Paulo). Mas não foi o
único. Jornais como A Gazeta e o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro,
também tiveram noticiaristas militares. Mas houve alguns repórteres
civis, claro. De um modo geral, porém, todos tiveram que se submeter à
censura dos militares.
Porta-voz da Casa Branca
Passados mais de 100 anos dessa guerra, pelo visto a imprensa
brasileira continua se submetendo às mesmas condições. Não, hoje é pior.
Pior porque jornais que poderiam agir com independência e fazer um
jornalismo decente, mostrando os vários aspectos dos confrontos, os prós
e os contras, limitam-se a mostrar apenas um lado.
A cobertura é falsa e superficial. São raras as análises sobre o que
acontecerá ao mundo caso esta guerra contra o Iraque seja deflagrada. Até
parece que nada vai mudar. Não se diz que o preço do petróleo pode subir
e disparar a inflação em termos mundiais, provocando o caos nos países
mais pobres. Uma vez que estão dominados politicamente pelo império
americano, grupos terroristas se formarão em reação a esta violência, e
assim a paranóia mundial será maior ainda. Surgirão novos focos de
guerras em todo planeta como reação natural ao nazismo norte-americano.
Os desastres ecológicos devido ao transporte, manuseio e utilização de
armas químicas, radioativas, biológicas e biotecnológicas, serão comuns;
o uso de armas como estas, provocarão catástrofes ambientais. Movimentos
populares organizados serão tratados como terroristas. Os gastos com essa
guerra anunciada – em torno de US$ 200 bilhões – serão pagos por nós. E,
finalmente, existe a possibilidade real de ocorrer uma Terceira Guerra
mundial.
Hoje, graças aos Estados Unidos, espalha-se sobre o planeta uma onda
de belicismo e medo. A paranóia deles será a nossa. Devido a essa
política externa perversa, pensadores, grupos radicais e movimentos
populares estão reagindo, cada qual ao seu modo, com palavras, paus ou
pedras. Para os EUA é o terror. E todas as nações são chamadas a lutarem
contra isto. Como os EUA precisam de guerras para ocultar e ao mesmo
tempo alavancar sua falida economia, elas são estimuladas em todos os
confins do mundo. É uma luta sem fim: o país mais odiado do mundo
estimula mais ainda esse ódio.
No caso, a imprensa brasileira não tem nem a honestidade de
apresentar as muitas manifestações de intelectuais e estudiosos, ou
líderes de movimentos dos próprios Estados Unidos, que são contra essa
política belicosa. Lá existem centenas de pessoas com qualificação
apontando os erros da política americana. Gente como James Petras, Noam
Chomsky, Jerome Rikfkin, para citar os mais conhecidos. Mas, como não
interessa a Bush, eles não são ouvidos pelos nossos repórteres, que se
limitam a reproduzir o que manda a Casa Branca.
Enfim, diante dessa guerra anunciada, seria mais honesto da nossa
imprensa substituir seus repórteres pelo porta-voz da Casa Branca ou do
Departamento de Defesa. Não criaria na gente a falsa impressão de que
isso é jornalismo. E não nos deixaria a impressão de que está relatando
uma guerra que não existe.
(*) Jornalista, escritor, integrante da Comissão de Acompanhamento da
Mídia da Câmara dos Deputados
https://www.alainet.org/en/node/106888
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