Pra que tanta celeuma sobre a participação social?
03/09/2014
- Opinión
A ganhadora do Nobel Elinor Ostrom provou que bens relevantes
são mais bem geridos por quem é afetado pela gestão
A recente discussão sobre a política de participação social traz consigo uma grande indagação. Por que uma proposta de participação direta, em diferentes instâncias, de formulação de políticas públicas poderia gerar tanta controvérsia?
Controvérsia incompreensível, por razões óbvias. Participação popular nunca se opôs à democracia. É, ao contrário, o seu corolário. Participação popular também nunca se opôs à tomada consequente e bem informada de decisões. É, ao contrário, seu requisito. Não é preciso ir longe nem se valer de exemplos históricos, para demonstrar as duas afirmações.
Quanto à primeira, basta ler o artigo 1º, parágrafo único de nossa Constituição Federal: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Mas como, aparentemente, essa solene declaração constitucional serve de mera fachada para encobrir a permanente realidade oligárquica, é preciso ir mais longe.
Para demonstrar a ligação entre participação popular e democracia, o mais convincente é identificar sua presença nos sistemas que – para o bem e para o mal – sempre foram o exemplo a ser seguido, no discurso majoritário entre nós. O sistema político norte-americano, sob certos aspectos mais sofrível que o nosso (como a eleição minoritária do presidente Bush, em 2000, demonstrou), usa largamente dos instrumentos de participação popular direta. A maioria dos estados norte-americanos e muitos municípios aplicam políticas de iniciativa popular, ou votadas diretamente pelos cidadãos, em conselhos municipais de caráter não só consultivo, mas também deliberativo.
Quanto à ligação entre participação popular e qualidade das decisões públicas, sua demonstração é ainda mais fácil. Só a proximidade com os interesses administrados produz decisões informadas. Mais do que isso, só essa proximidade ajuda a criar uma população apta a discutir de maneira informada os seus interesses nas esferas próprias. Ainda aqui dois exemplos são relevantes.
O primeiro, acadêmico e prático, chama atenção para o valor puro da participação. A primeira mulher a receber o Prêmio Nobel de Economia (2009), Elinor Ostrom, foi agraciada exatamente por suas pesquisas que demonstraram, entre outras coisas, que bens de grande relevância e valor para a coletividade (o que ela chama de common goods – bens comuns) só podem ser convenientemente geridos, quando submetidos à administração dos próprios grupos afetados pela sua gestão. Os exemplos concretos por ela citados, que vão desde a gestão da pesca no Mar do Norte à autogestão de bairros carentes no Peru, são muito reveladores.
O segundo exemplo da importância da participação social na qualidade das decisões a serem tomadas ocorreu na Alemanha. Lá, desde os anos 60 do século XX, criou-se por lei a obrigatoriedade de participação paritária dos representantes de trabalhadores de grandes empresas no seu órgão decisório (Aufsichtsrat). Os resultados, naquele momento, surpreendentes, marcam a economia alemã até hoje. A participação decisória dos trabalhadores incrementou a qualidade da gestão das empresas, levando à sua profissionalização e ao abandono da tradicional gestão familiar. No nível macroeconômico, estimulou a concentração da maior parte dos investimentos das grandes empresas alemãs no longo prazo (que em muitos casos até hoje geram frutos) e não no curto prazo, voltados a produzir os malfadados lucros exorbitantes e imediatos (fontes da crise econômica global de 2008).
Se a participação popular só faz reforçar a democracia e a qualidade das decisões, pergunta-se: por que tanta celeuma? Há duas explicações possíveis. A primeira, mais simples, mas não necessariamente única, é a do momento político. A infeliz coincidência com o calendário eleitoral teria feito que surgissem críticas de pessoas, órgãos e instituições, que em outro momento jamais se manifestariam contra a participação popular.
A segunda é mais complexa, mas não necessariamente menos verdadeira. O oposto de participação popular não é e nunca foi, como visto, a democracia. É, sim, o domínio das decisões tomadas oligarquicamente pelos grupos minoritários mais influentes, política e economicamente. Assim, podadas as iniciativas de participação popular, as políticas públicas, as leis e os regulamentos continuariam nas mãos dos que sempre detiveram, na sombra, o poder soberano.
04/09/2014
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