Da Conquista à ALCA

09/05/2002
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Na literatura indígena - Azteca, Maia e Inca -, dos tempos da invasão européia, descrevem-se dramaticamente guerras, destruição de povos e culturas: "murcharam a flor do nosso canto, para que a flor deles vivesse". Profecias e abominações são comuns nos textos dos escritores indígenas, contra a irrupção dos "estrangeiros". Uma noite, dessas em que fico refletindo sobre acontecimentos da minha infância, fiquei imaginando como os ancestrais descreveriam a situação que nós vivemos até hoje. Foi assim que decidi escrever os seguintes relatos: Relato 01: guerras de ocupação Quando os europeus invadiram os nossos territórios, essa terra madura, Abya- yala, a nossa mãe, éramos, segundo cálculos do lingüista francês Tzevitan Todorov, em torno de 90 milhões. Através de guerras desiguais, caraterizadas muitas vezes por eles como "guerras justas", da escravidão, do trabalho forçado e, sobretudo, de doenças por nós desconhecidas, dizimaram a mais de 75 milhões de irmãos nossos. Só no México, de 25 milhões de parentes em menos de 50 anos desceram para 1 milhão e meio, no Perú, de 9 milhões baixaram para 1 milhão, no Brasil morreram mais de 5 milhões. Ou seja, perdemos mais de 80% dos irmãos nossos. Hoje, os nossos povos são subjugados através do desemprego, da fome e da miséria, e até de guerras abertas ou então nomeadas com eufemismos: guerra de baixa intensidade (como nos tempos do Reagan), guerra contra o narcotráfico (como nos tempos do Clinton), guerra contra o terrorismo (como nos tempos do W. Busch), quando na verdade são guerras de ocupação. Quase o mesmo que ocorreu nos primórdios do mercantilismo, quando a igreja abençoou a guerra contra os nossos ancestrais, etiquetados como enfieis, pagãos, rebeldes e selvagens do "novo mundo". Os tempos se passaram, batizados com diferentes nomes: pré-industrial, industrial e post-industrial. Os nossos povos continuam dominados! Relato 02: A morte do milho Houve um mal tempo em que, como hoje é quase rotina para o povo da região do nordeste do Brasil, fracassou a colheita do nosso milho sagrado. Vieram tempos de penúria, bem na época da chamada "Aliança para o Progresso". À falta do milho, o milho que na nossa língua chamamos de mãe, em troca de serviços, os missionários ofereciam-nos sacos de milharina, um produto que provavelmente eles não consumiam no seu país. A tortilha ou beiju, para dizer algo parecido no Brasil, feito desta farinha seca, não ligava na chapa, rachava todinho, no final, quando assado, virava farelo. Enfim, não tinha como comer conforme os nossos costumes. Os nossos pais eram muito espertos. Tinham seu jeito de guardar e conservar sementes para os novos plantios. Dessa forma, quando o mal tempo passou, voltamos a comer como antes. Nossos pais plantaram milho de todo tipo, tamanho e cor: branco, amarelo, quase amarelo, avermelhado e até roxo. Milho suave, duro, de espiga grande média e pequena, para cada época do ano, para cada clima: frio, quente ou temperado. Passaram-se os anos e aos poucos essa diversidade foi se perdendo, ou melhor seria dizer que foi seqüestrada. Quando demos conta, os nossos pais passaram a plantar um tal de milho híbrido, que eles mesmos chamaram de fraco, que só desenvolvia se fosse encharcado de praguicidas, inseticidas, hervicidas, enfim disso que chamam de agrotóxico. Com o tempo as tortilhas ou beijus, não eram mais fabricadas pelas mãos das nossas mães e irmãs, mas sim por máquinas. O ritual de cozinhar, lavar, moer e amassar o milho acabou. Os supermercados passaram a vender massa pronta, apareceram fábricas de produção em série. Só que a tortilhas industrial não enchia mais como antigamente, e tinha mais gosto de papelão do que de milho mesmo, o nosso alimento sagrado. O pior faltava por vir. Um país poderoso, que em outro tempo nos deu de esmola milharina, como hoje dá milho transgênico para os nossos irmãos pobres da Bolívia, acordou com os homens que dirigem o nosso país que passássemos a produzir outros produtos que não fosse o milho, tais como café, melão, espargos, coisas que o povo dele gostava de comer, e que não tinham nada que ver com as nossas tradições. O ritual de plantar o milho em mutirão acabou. O solo que nós preparávamos durante semanas aquele país arava em horas, com a vantagem de cultivar e colher milho em grande escala, para depois exportá-lo ao nosso próprio país, onde hoje, somos obrigados a comprá-lo, nos armazéns, nas proporções que o nosso miserável vencimento o permite. Conclusão: Como se vê, à hecatombe seguiu a exploração, o extermínio e o etnocídio gradual e silencioso, situação que tende a se agravar sob a égide do neoliberalismo global, a ALCA e outros planos que os Estados Unidos vêem implantando para tomar conta total do continente. Nota: * O presente texto quer mostrar o quanto significou para os povos indígenas de Meso-américa a violência das colonizações sucessivas de que têm sido vítimas, bem como a perda do controle milenar que tinham sobre o milho, considerado por eles sagrado e qué é a base de sua dieta alimentar. Isto, depois que o neoliberalismo avançou sobre a biodiversidade e sequestrou seus conhecimentos tradicionais e seu direito de propriedade intelectual, através de patentes e outras manobras, que não só arrancaram o sustento, mas, sobretudo, pilares fundamentais de sua identidade e cultura, como o é "Co' Mi' Ixim" (o milho mãe - nuestra madre maíz).
https://www.alainet.org/es/node/105901
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